Verdes mares bravios

DIÁRIO

[Verdes mares bravios]

Elmar Carvalho

1º/07/2020

            O meu mar era o pequenino e mimoso Açude Grande, com as suas pequeninas ondas, com as suas águas de chumbo ou plúmbeas, como diziam os poetas.

            Parecia um imenso caleidoscópio, em certas horas do dia, conforme a posição com que os raios solares incidiam em suas águas, e lhe provocavam os reflexos e cintilações de brilhos de vidrilhos.

Sonhava arranjar uma namorada muito bonita para com ela passear e namorar em sua margem; e assistir a um belo pôr de sol. Em vez da namorada muito bonita, que não arranjei, jogava bola num campinho de areia, que na época existia, a dar saltos ornamentais de gato maracajá, em minha posição de goleiro afoito. Depois ia tomar banho em suas águas tépidas, sem medo de poluição, que então não parecia existir.

O açude era o meu imenso mar-oceano.

O mar mesmo eu só conhecia na prosa poética de Iracema, a linda índia de Alencar, de longos e escorridos cabelos negros, mais negros que a asa da graúna: “verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba”...

As carnaúbas, com sua beleza esbelta, com suas palmas farfalhando ao vento, com seus quebros e requebros de moça faceira e dengosa, ornavam a orla sinuosa do açude.

O movimento do mar eu só conhecia através da tela panorâmica e technicolor do velho Cine Nazaré, do senhor Zacarias, em filmes de pirata, com sua perna de pau, caolho, braço de gancho, a carregar no ombro o indefectível papagaio, tal como no rótulo do Ron Montilla, ou em filmes épicos de heróis ou deuses da velha Grécia, com suas ilhas paradisíacas.

Uma vez eu quase fui conhecer o mar, quando eu tinha em torno de oito anos. Meu pai, comigo a seu lado, saiu cedo para a estação ferroviária. Iria, em companhia de seus colegas do DCT (Departamento de Correios e Telégrafos) Vicente Ibiapina e Gerson Marques ou Brito (ou os dois, já não tenho nítida lembrança), conhecer Parnaíba e o mar.

Também já não lembro se a locomotiva era uma maria fumaça ou se era uma a diesel. Mas o certo é que ainda conheci de perto uma maria fumaça, com certo receio de suas negras engrenagens, recobertas de fuligem, e suas entranhas quentes, fumegantes, com seus chiados resfolegantes. Mas não conheci; fiquei em Piripiri, hóspede de uns parentes, já não recordo se por parte de meu pai ou de mamãe. Na segunda-feira, com meu pai e seus amigos, voltei à origem.

Contudo, posso dizer que conhecia o mar através dos versos marulhantes de Vicente de Carvalho, com justiça chamado o poeta do mar: “Mar, belo mar selvagem / Das nossas praias solitárias!”... No livro “100 anos de Poesia”, volume I, fiquei sabendo que um poeta, em comentário maldoso (e talvez eivado de inveja) teria dito que ele perdera um dos braços, em acidente, para não se aplaudir a si mesmo. E na Wikipedia, em acesso de hoje, colhi a informação de que um de seus livros, de 1916, se chama “O gol do Romário”. Acaso seria esse Romário um craque da época? Algum bisonho leitor poderia imaginar que o nosso poeta também seria profeta.

Só fui conhecer o mar quando tinha 16 anos, numa “excursão” comemorativa da conclusão do curso ginasial, em que eu e meus colegas de colação de grau do antigo Ginásio Estadual fomos conhecer os verdes mares bravios de Fortaleza. Era como se fosse o pequenino açude grande visto através de uma poderosa lente de aumento. Era um açudão de grandes e verdes ondas, onde tive a audácia de “pegar jacaré”, na temeridade audaciosa de meus verdes anos.

Três anos depois o revi, quando minha família foi morar em Parnaíba, em junho de 1975. Havia o mar bravio de Pedra do Sal, e o manso mar de Atalaia ou Amarração.

Foi nessa época que um amigo me contou que um turista, extasiado ou enlouquecido com a beleza da praia e das ondas, gritava sem pudor: “Que coisa mais linda, meu Deus!”, e corria como louco para se jogar nas águas salgadas e revoltas.

Achei exagerado tanto êxtase, e fiquei a imaginar de que seria capaz esse turista quando viesse a contemplar uma bela e exuberante mulher nuinha, pela primeira vez. Talvez ficasse alumbrado, como o poeta Manuel Bandeira: “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho / Fiquei parado o coração batendo/ Ela se riu / Foi o meu primeiro alumbramento”.

Talvez agora o entenda. A sua exclamação de júbilo acaso seria a sua maneira de completar e arrematar o clímax de seu gozo estético, ante a beleza e sedução do mar.

O mar foi para mim quase uma epifania, um deslumbramento, e já o cantei tantas vezes, em versos ondulantes, carregados de salsugens e maresias, extraídos dos búzios e do vento, e que por aí estão, nas páginas de meus livros e nos mares virtuais da internet.