Uma vez numa terra remota
Por Bráulio Tavares Em: 28/11/2016, às 08H40
[Bráulio Tavares]
“Uma vez, numa terra remota, havia uma donzela. Ela morava perto de uma grande floresta. E o pai dela disse: ‘Não entre no bosque’. Mas ela era uma menina má e não obedeceu. Ela queria saber o que tinha lá dentro. Ela achou que ia poder entrar lá somente um pouquinho. A floresta é muito escura, e cheia de barulhos que dão medo. A donzela falou assim consigo mesma: ‘Eu não gosto disto aqui’, e ela tentou voltar, mas ela não conseguia mais avistar a trilha por onde viera, e estava ficando de noite, e de repente alguma coisa pulou em cima dela! Era um urso. E o urso disse: ‘O que você está fazendo na minha floresta?’ ‘Oh, senhor Urso, por favor não me coma!’, disse a donzela. ‘Eu me perdi e não estou conseguindo voltar para minha casa.’ Agora: o urso era um urso bom, mesmo tendo cara de cruel, e ele disse: ‘Eu posso lhe ajudar a sair de dentro da floresta’, e a donzela disse, ‘Mas como? Está tão escuro’, ‘Bem, então vamos perguntar à coruja’, disse o urso, “ela pode ver no escuro’. Ela continuou a falar, inventando à medida que avançava, sentindo um estranho conforto naquilo.
O parágrafo acima é uma síntese de uma cena aparentemente banal, uma moça de vinte e poucos anos, solteira, botando para dormir um menina de cinco, à qual se afeiçoou. A autora é Connie Willis, uma escritora muito popular e premiada nos EUA, autora de contos ora engraçados, ora sentimentais, mas sempre com leveza. Este romance, O Livro do Juízo Final (Doomsday Book, 1992) deverá sair pela Suma de Letras, com tradução minha.
Willis tem mais formação literária do que científica. Não quer dizer que ela não entenda de ciências, mas quando ela inventa aqui no seu romance uma máquina do tempo, ela, como H. G. Wells, fornece apenas informações genéricas sobre como a máquina é posta a funcionar. Não se dá o trabalho de explicar como se obtém um resultado tão espantoso, nem parece perder muito sono com isto. (Em termos das redes sociais de hoje, Willis é uma escritora de Humanas.)
Seu interesse é o paralelismo entre os tempos, as rimas de pequenos acontecimentos ou dramas refletindo um ao outro através dos séculos, e alguém sendo capaz de perceber isso. Esta sua série de narrativas sobre viagens temporais leva historiadores de Oxford a diferentes momentos da História. Uma espécie de Túnel do Tempo.
“Firewatch” (1982), o conto que deu origem a esta série, mostra um desses estudantes vindo do futuro para ajudar a proteger a Catedral de São Paulo, em Londres, durante os bombardeios alemães na II Guerra.
Nesse conto inicial já se menciona, meio indiretamente, uma aluna chamada Kivrin, que acabou de chegar da Idade Média, bastante abalada. Doomsday Book é a narração do que aconteceu a essa personagem citada de passagem em alguns parágrafos do “Firewatch”
O parágrafo transcrito no começo deste texto, a história da donzela que mergulha na floresta escura, é a própria história da mulher que a está contando, uma estudante de História na faculdade de Brasenose, em Oxford, que recua ao século 14 para examinar as condições de vida do campesinato inglês durante a Guerra dos Cem Anos.
Kivrin Engle, a estudante, traz um sobrenome em homenagem a uma famosa autora de viagem temporal, Madeleine l’Engle, autora do clássico juvenil A Wrinkle in Time (1963), livro que a geração de Willis (ela nasceu em 1945) provavelmente leu na juventude.
Kivrin tem algo de quase Nikita, quase uma Lara Croft crononauta. Estuda plantas medicinais, latim, religião, equitação, toma umas quinze vacinas diferentes, passa o pente fino na história e na geografia da época. Instala um tradutor simultâneo no cérebro. Instala um minigravador camuflado no pulso e ativado ao pressionar juntas as palmas das mãos. Desse modo, ao se misturar ao mundo do passado, poderá gravar seus relatórios enquanto dá a impressão de estar rezando em voz baixa.
Em alguns momentos, Kivrin me lembrou também a Psicóloga, de outro livro que traduzi, o Aniquilação (Ed. Intrínseca) de Jeff VanderMeer. Uma mulher jovem, expedita, imaginativa mas atenta, capaz de se virar sozinha, e um tanto introspectiva. Disposta a saltar num abismo e saber que, mesmo que continue viva, essa pessoa que ela é agora deixará de existir durante essa experiência.