Uma ópera de 1787
Por Bráulio Tavares Em: 29/10/2010, às 08H17
[Bráulio Tavares]
Um artigo de Richard Fairman no Financial Times (http://tinyurl.com/2c2are6) procura imaginar, baseado em documentos de época (cartas, memórias, etc.) como teria sido a première da ópera Don Giovanni de Mozart, que foi apresentada pela primeira vez no Teatro Nacional de Praga, em 29 de outubro daquele ano. Não sei se as avaliações dele são fundamentadas; em todo caso, dão o que pensar. Hoje uma ópera de alto nível é um evento exaustivamente ensaiado por semanas ou meses a fio por cantores, coro e orquestra. Em 1787, diz Fairman, “Mozart ficou perplexo ao chegar em Praga e descobrir que o elenco ainda não estava pronto. Como era costume naquela época, ele havia deixado alguns números musicais para compor depois de chegar na cidade (a abertura, algumas árias e todo o final do segundo ato), talvez para adaptá-los aos recursos dos intérpretes. Mesmo adiando a estreia por duas vezes, parece que a abertura só ficou pronta na véspera do ensaio geral, e a tinta ainda estava úmida nas partituras na noite da estreia”.
Parece mais com o nosso showbiz MPB/Pop do que com o que entendemos por ópera, a menos que a gente lembre que a ópera era o MPB/pop daquele tempo. Hoje, o imenso repertório de óperas dos grandes teatros do mundo é em cima de partituras e libretos com séculos de idade. Um intérprete profissional que sobe ao palco para cantar Mozart ou Verdi já os vem cantando desde o Conservatório.
Havia uma certa descontração, por cima dessa pressa toda, talvez porque uma ópera nem sempre fosse (como um show de MPB de hoje nem sempre é) um espetáculo formal, tenso, onde nada pode dar errado. Em certos ambientes, o texto escrito (música e letra) era apenas um ponto de partida para improvisos dos intérpretes. Fairman cita Luigi Bassi, o jovem (22 anos) intérprete do papel título, comparando a estreia e uma performance posterior em Dresden: “A cena da ceia estava sem a espontaneidade, a liberdade que o Grande Mestre esperava. Em Praga, não cantamos esta cena da mesma maneira duas vezes seguidas. Sem ligar muito para o tempo, trocávamos piadas, piadas novas a cada noite, e ficávamos de olho na orquestra. Tudo era quase que falado, como se estivéssemos improvisando, de acordo com o desejo do próprio Mozart”.
E ele lembra que a audiência não ligava muito, porque apenas uma minoria das 800 pessoas que enchiam o Teatro de Praga iam lá para ouvir a música. O restante ia para “aparecer socialmente” ou para paquerar as cantoras. Não era raro que no intervalo entre dois atos de uma ópera um admirador conseguisse convencer uma cantora a sair com ele, e o resto da apresentação tinha que continuar sem ela. Já ouvi falar que Shakespeare começava suas peças com cenas impressionantes (um fantasma em Hamlet, bruxas em Macbeth) para fazer com que a plateia se calasse. Talvez ele e Mozart ficassem espantados com a gravidade quase religiosa com que são tratados hoje em dia, logo eles, tão populares, tão pop.