Um terror sem clima de terror
Por Miguel Carqueija Em: 21/02/2019, às 17H27
UM TERROR SEM CLIMA DE TERROR
Miguel Carqueija
“As dez torres de sangue” (Carlos Orsi Martinho) — Coleção Fantástica 3 (setembro de 1999) — capa: Cerito — prefácio: Cesar Silva.
Para o prefaciador, a novela de Carlos Orsi Martinho pode ser enquadrada em três gêneros: horror, ação e aventura e, finalmente, fantasia ibérica. Ela é, de fato, uma narrativa insólita pelo inusitado de seu tema, e narrada com segurança, não fôra Martinho um autor de reconhecido talento.
Entretanto, quem conhece a obra deste escritor sabe que, nas suas incursões pelos domínios do terror e do mistério sobrenatural, com freqüência os seus textos são crus, fortes e sanguinolentos. Curiosamente, “As dez torres de sangue” carrega mais no clima gótico e até em peripécias de aventuras, onde um aventureiro sem pátria — Suleiman Ibn Batil, conforme um dos seus nomes — e uma ladra, Teresa, se juntam numa missão que pode salvar a humanidade da misteriosa ameaça de Antares, a proibida cidade das Dez Torres de Sangue, no interior do tenebroso Mar de Dunas.
As melhores partes do livro são aquelas em que Suleiman dá explicações que erguem um pouco o terrificante véu de mistério que envolve o interior do Saara.
“Ninguém, exceto os mais degenerados entre os traficantes de escravos, vem ao Mar de Dunas em sã consciência. Até o mais corajoso dos guerreiros treme ao imaginar o tipo de profanação que ocorre dentro da cidade de torres vermelhas; profanação que os povos do deserto só ousam mencionar aos sussurros, e com o sol ainda alto.
Os árabes dizem que, antes de criar o homem, Alá deu o mundo a um grupo de sultões inumanos, muito mais sábios que qualquer pessoa de nossa espécie jamais poderia pensar em ser. Mas esses “sultões que precederam a Adão” de que fala o mito teriam utilizado a sabedoria para criar pecados e iniqüidades tais que clamavam aos Céus por vingança... (...) Durante eras, a cidade foi o maior tabu do Norte da África. Nenhum europeu jamais ouviu falar nela. Nenhum europeu jamais viu os obeliscos negros. As Torres de Sangue e o Mar de Dunas são demônios muito grandes e poderosos, poderosos demais para que os povos da África se dêem ao luxo de discutir o assunto com estranhos.”
Martinho colheu dados em antigas mitologias e o resultado é muito curioso, inclusive com a aparição de Adão Kadmon, xará do Adão humano mas que seria um dos tais “sultões inumanos” anteriores à humanidade. Há muitas referências à religião católica e de forma bem tradicional, até com a incursão no próprio inferno e o encontro dos dois aventureiros com o próprio Satã. A história explora a rivalidade entre Kadmon e Satã e apresenta inúmeras idéias que sugerem uma epopéia fantástica através de milhões de anos; o desígnio dos sultões inumanos — desconstruir o universo — é incompreensível. Em suas especulações Ibn sugere que outras cidades com torres de sangue estejam espalhadas pelo universo, não faltando uma referência a Giordano Bruno, para quem o universo era infinito (o drama se passa aparentemente no século XVII). No fim de contas há um excesso de idéias, a solução inverossímil de jogar duas entidades perversas um a contra a outra, e o que parece ser um furo — que o diabo pudesse estar aprisionado no próprio inferno, narcotizado por Kadmon, sem que os outros anjos caídos o ajudassem na briga. Na verdade a visão do inferno, mostrada no texto, é inconvincente.
Apesar de tudo a história prende a atenção por sua estranheza, por situações inusitadas como a luta contra o escorpião metálico, o encontro com o “lupinotauro” e a jornada por estranhas passagens que partem da cidade maligna de Antares e saem da Terra de forma misteriosa. O final é um anticlímax, que deixa muitas perguntas no ar, como se o autor estivesse cansado da novela e quisesse encerrá-la.
Rio de Janeiro, 5 a 7 de outubro de 2009.