Um Rubai para Antônio Cícero
Em: 27/10/2024, às 10H30
[Halan Silva - ficcionista, crítico literário e filósofo]
Não recordo bem a data, sei apenas que foi durante um SALIPI, o breve encontro que tive com o poeta Antônio Cícero. Ele veio participar do seminário Língua Viva e falou sobre os heterônimos de Fernando Pessoa. Após a palestra, o poeta Salgado Maranhão me apresentou para ele. Na porta do Theatro 4 de Setembro, principiamos uma conversa descontraída, algo em torno da sua ascendência piauiense, do avô que viveu em Campo Maior, o cel. Antônio Cícero Correia Lima. Ao me ouvir chamar seu avô de coronel, Antônio Cícero começou a rir, como que tomado de um grande espanto:
- O quê, coronel?
- Em Campo Maior o seu avô era conhecido por cel. Antônio Cícero, respondi-lhe.
Interessado no assunto, ele continou a conversa, dizendo-me:
- Então você deve conhecer o meu outro avô.
- Talvez eu conheça, se você me disser o nome dele.
O poeta disse que ele se chamava Higino Cunha. No que acrescentei, Higino Cícero da Cunha. Ele teve outra reação de espanto, mas prossegui:
- Higino Cunha é um escritor importante para nós, nasceu aí do outro lado do rio Parnaíba, na atual cidade de Timon. Ele era primo de segundo ou de terceiro grau do Sargento-Mor João José da Cunha Fidié, o soldado português que protagonizou um capítulo memorável de nossa história - a Batalha do Jenipapo.
De saída para um jantar na zonal leste, Salgado Maranhão e Antônio Cícero convidaram-me a ir junto com eles, para que terminássemos a conversa iniciada. Antônio Cícero relatou que seus pais eram de Teresina, mas se conheceram no Rio, e que seus ascendentes viveram em três cidades do Piauí: Teresina, Campo Maior e Parnaíba. Após um silêncio, ele mudou de assunto, falou um pouco mais sobre Fernando Pessoa, ocasião em que lhe relatei que estava lendo um livro muito curioso, uma edição portuguesa (fac-similar) de uma tradução do Rubaiyat, de Omar Khayyám, feita por Fernando Pessoa em 1931, e intitulada “Canções de Beber”:
[1931]
Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo ou nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.
Vivemos nas encostas do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.
Fernando Pessoa, Canções de Beber.
O Antônio Cícero disse que não conhecia esse trabalho de Fernando Pessoa e anotou, num guardanapo de papel, a sua caixa postal para que lhe enviasse a referência bibliográfica de “Canções de Beber”, obra agrupada na poesia ortônima de Fernando Pessoa e editada pela primeira vez em 1997. Dias depois, conforme o prometido, enviei para ele a referência bibliográfica da tradução mais singular do Rubaiyat que conheço.
Agora que Antônio Cícero não mais se encontra presente neste plano existencial, perdi a esperança de conversar com ele sobre o poeta e poliglota Alarico da Cunha que, de passagem por este mundo, quis a providência divina que ele fosse seu ancestral.