Um poema e uma leitura
Por Paulo Franchetti Em: 26/05/2020, às 15H49
[* Paulo Franchetti]
Acabo de ouvir a leitura que Alcides Villaça fez do poema “Profundamente”, de Manuel Bandeira. Desde quando fui seu aluno, admiro a sua sensibilidade e forma de ler e de comentar. Naquele tempo, éramos dois jovens, em 1976. Hoje somos dois velhos, mas continuo ouvindo e aprendendo.
E, como sempre fizemos, animado pela leitura, gostaria de conversar sobre ela e sobre o poema a que se dedicou.
Ouvi com muito interesse a narrativa das duas leituras, a primeira, entendendo o “ontem” como se referindo a um tempo passado distante, explicitado na segunda seção do poema; e a segunda – a partir de uma observação “ingênua” de uma aluna – entendendo o “ontem” como o dia imediatamente anterior ao “hoje”.
Creio que a primeira se devia à longa habitação da poesia de Bandeira por Alcides: para uma pessoa como ele, que tanto leu, viveu e ensinou essa poesia, creio que o poema já não “aparece” à leitura de forma sequenciada. Ele termina por ser como um ideograma: um conjunto de traços com um sentido, ou com sentidos concorrentes, mas sempre unidos, como num feixe. E creio que essa primeira leitura de fato só se sustenta como re-leitura – independentemente dos dados factuais, como o fato de existirem ou não existirem bondes no tempo em que Bandeira vivia em Recife.
Digo isso porque, para mim, essa leitura nunca tinha ocorrido. E porque, ainda um pouco distante, não me esquece aquilo que seria, por assim dizer, a fenomenologia da leitura do poema.
Quero dizer: quando se lê pela primeira vez, quando o poema “surge” para nós, o sentido literal se impõe: ontem é o dia anterior. No máximo, qualquer um dos dias anteriores, o passado. Mas numa frase como “quando ontem adormeci, na noite de São João”, a determinação temporal objetiva parece clara. O poeta fala no dia seguinte à noite de São João.
Essa leitura parece confirmar-se (ou ao menos manter-se indisputada), na sequência: acordei no meio da noite, ouvi o ruído de um bonde, vi os balões que passavam e me perguntei onde estavam todos.
Na versão manuscrita desse poema, os versos que vão de “No meio da noite despertei” até “Profundamente” aparecem reentrados, isto é, alinhados alguns espaços mais para a direita do que os anteriores e os posteriores.
Na edição em livro, o poeta desfez essa espacialização e alinhou todos os versos à esquerda.
O que isso sugere? Ou melhor: o que a primeira distribuição espacial destacava? Destacava o paralelismo entre as duas primeiras estrofes de cada parte: Quando ontem adormeci / Quando eu tinha seis anos. Alinhados, a relação ficava clara num bater de olhos. Mas o poeta eliminou o recurso.
Ao fazê-lo, retirando o destaque, como que adiou ou deixou de enfatizar o paralelismo. A leitura por assim dizer “denotativa” corre solta até o último verso dessa primeira parte. Lê-se ali o acordar solitário de um homem no meio da noite e a sensação principal, destacada pela anotação sobre o ruído do bonde, é a de solidão. Nada se ouve: o balão passa silenciosamente, não há vozes nem risos. E a imagem em que comparece o bonde acentua o silêncio. O ruído do bonde corta o silêncio como um túnel. Como bem descreveu Alcides, um túnel corta uma montanha, uma massa de pedra. O silêncio, assim, é maciço, palpável, cortável, quase algo físico.
Do meu ponto de vista, o primeiro estranhamento ou sobressalto da leitura vem do último verso da primeira parte. Ele se reduz à palavra que intitula o poema. Um advérbio em -mente, como o que qualifica o passar dos balões: silenciosamente, profundamente.
O estranhamento a que me refiro é que, na leitura factual, de repente fica estranha a afirmação de que todos dormem profundamente. Digamos assim: até a última estrofe, que constitui a resposta à pergunta que encerra a antecedente, todo o narrado se conformava com a experiência pessoal e subjetiva do poeta. O que ele ouvira até adormecer, o que vira e ouvira ao acordar no meio da noite. Já a afirmação de que todos dormem não é do mesmo tipo. Os que brincavam e riam podem estar no bonde, podem estar acordados como o poeta em silêncio, podem dormir sobressaltadamente... Assim, a mudança do ponto de vista, ou do alcance da visão objetiva que caracterizava o poema até esse ponto, mais a ocorrência da palavra que dá título ao poema, insinuam uma leitura outra, figurada, embora o registro denotativo (“plano”, digamos assim) ainda possa se manter.
Na sequência, em paralelo, o poeta começa a evocar outro tempo: o sono da criança antes do fim da festa, que equivale ao sono do poeta durante a festa, mas é contrariedade, enquanto o dele é conformação – ele adormece sem se incomodar com o barulho festivo, e parece mais sensível ao silêncio que se sucedeu.
(Um parêntese: vale a pena observar aqui que ao mesmo tempo em que elimina a disposição gráfica que acentua o paralelismo, o poeta interfere em outro nível para o reforçar: substituindo o verbo “dormir” por “adormecer” – muito mais suave, como bem observou Alcides, mas curiosamente usado apenas na segunda versão, pois na primeira usar o “dormir” para referir a ação no tempo dos seis anos, pois a criança cansada dorme, não adormece. E o acerto, a eficácia dessa substituição se evidencia no comentário de Alcides, que radica na utilização da mesma palavra a possibilidade de coincidência temporal ou a retroação do sentido da segunda para a primeira parte).
Retomando o fio da leitura: o paralelo que se dá entre as estrofes que abrem as duas partes agora é claro: dá-se entre as vozes e cantigas do passado imediato, que não são ouvidas no meio da noite pelo poeta, e as vozes que habitavam a infância, “as vozes daquele tempo”. E então, depois de nomear as pessoas desaparecidas e por elas perguntar, surge o termo comum, decisivo para a manifestação da tonalidade do poema: dormem profundamente.
É nesse momento, creio, que se dá o processo de retroação, já insinuado desde o primeiro paralelo. A palavra “profundamente”, na sua terceira ocorrência, faz do despertar no meio da noite uma experiência de perda, uma indagação pelo desaparecimento do passado. Mais que isso: uma pergunta formulada num quadro de impermanência e vacuidade – todos dormem profundamente, e no céu flutuam sem rumo os balões para ninguém ver, no silêncio raramente cortado. Ou seja: o paralelismo das duas estrofes finais de cada parte projeta sobre a primeira a ideia de aniquilação do passado e das “vozes, cantigas e risos ao pé das fogueiras acesas”. Essas mesmas, vozes, cantigas e risos desse momento em diante e para sempre relidas não mais apenas como registros de fato, mas como figuras das alegrias passageiras.
Voltando à leitura de Alcides, creio que foi essa percepção que o fez, num primeiro momento, segundo conta, ler no poema desde o começo o seu efeito total. O que me parece mais interessante na sua segunda leitura é que ela não elimina desde o começo aquilo mesmo que constitui o ato de leitura de um poema: a construção gradual do sentido, pela impregnação dos sons e imagens, até que, uma vez cumprido o percurso, o todo se torne como que uma só palavra.
A questão pode parecer menor, uma vez que chegamos ao mesmo ponto. Mas a mim parece que há uma diferença entre tentar entender e mostrar a forma como o poema se constrói no leitor, pela sucessão do som e do sentido das partes, até que o conjunto de repente surja redimensionado e todas as partes se ressignifiquem mutuamente, e lê-lo de uma maneira, digamos, teleológica – isto é, como se desde o começo estivesse presente, na consciência do leitor (ou fosse a ele de alguma forma acessível) a interpretação só propiciada pelo fim.
Já quanto ao poema em si, na sua construção sonora, chamou-me a atenção a forma rítmica das passagens paralelísticas, porque creio que ela também produz sentido, também nos diz alguma coisa.
Por exemplo, na primeira estrofe é notável a nenhuma regularidade métrica. Temos ali versos de 7, 6, 8, 11, 7 e 8. A única sucessão de ritmos iguais se dá no verso de 11 sílabas, que é um decassílabo da velha medida, formado por dois versos de 5, com cesura.
Já na primeira da segunda parte, o trabalho do poeta foi na mesma direção, porém de um modo muito significativo. De fato, no manuscrito lemos:
Quando eu tinha seis anos
Não vi o fim da festa de S. João
Porque dormi.
O que temos aqui é uma sequência composta por um decassílabo e dois seus quebrados: 6, 10, 4. O decassílabo funciona como momento de equilíbrio entre os quebrados, pois pode decompor-se em 4+6 ou 6+4 sílabas, pois tem tônicas na quarta e na sexta posição. Apesar da polimetria é, portanto, uma estrofe harmônica.
Na versão final, a estrofe ficou assim:
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci.
Bandeira, mais do que qualquer outro poeta modernista, mostrou-se um grande conhecedor da métrica tradicional, envolvendo-se inclusive em longa polêmica sobre o assunto. E basta ler, além de seus textos de reflexão sobre o verso, o Itinerário de Pasárgada para constatar a sua perícia e atenção minuciosa aos jogos sonoros significativos.
Nesta nova estrofe, a leitura percebe um verso de seis sílabas, seguido de um de 12, que não é um alexandrino clássico, pois não tem cesura. É antes um verso de 12 sílabas composto de dois de 6, sendo o primeiro segmento terminado em paroxítona. Assim, o ritmo se impõe, e visualmente o verso breve que encerra sugere que ali também se encontraria o mesmo padrão. Mas isso não ocorre. Pelo contrário, dentro do padrão estabelecido pelos anteriores, trata-se de um verso truncado: 5 sílabas, terminado em oxítona. Seja qual for o valor que se dê a essa dissonância, ela é clara e parece ter sido o objetivo da alteração. Porque a simples manutenção da forma original (“porque dormi”), em número par de sílabas, seria menos dissonante.
Já nas estrofes que encerram as duas partes, a alteração é mínima: os verbos passam do imperfeito para o presente. O efeito de sentido semântico é claro. Na primeira estrofe, “estavam”, um verbo conjugado no passado a partir do presente imediato, indica uma ação que não é terminal. Estavam dormindo, quando acordei no meio da noite. É isso que se diz. Nada se diz sobre se continuam dormindo e no contexto é de supor que não. Já na última o tempo presente do verbo obriga à atualização do sono como conhecida metáfora da morte. O sentido aqui é tão evidente que quase dispensaria o comentário, não fosse pelo fato de que o imperfeito tem uma sílaba a mais que o perfeito. E isso produz um efeito de sentido que vale a pena comentar.
No autógrafo, a última estrofe da primeira parte era assim:
Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados dormindo
Profundamente
E, como já foi dito, essa estrofe estava no trecho reentrado (deslocado para a direita). Na versão em livro, quando o poeta eliminou esse recurso, evidenciou-se não só o paralelo da primeira estrofe de cada parte (como parecia ser o objetivo da disposição), mas também o da última. E por isso talvez essa estrofe ficou sendo:
- Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Se lermos de modo “normal” esses versos, temos 3 segmentos de sete sílabas, pois “dormindo profundamente” é um perfeito verso de redondilha maior. Já na primeira versão, como a palavra “dormindo” ocupava o final do verso, repetindo a do verso anterior, a leitura corrente dificultaria a formação do sintagma “dormindo profundamente”, porque se teria antes imposto a leitura “estavam todos deitados dormindo”. E assim a palavra “profundamente” ficaria isolada após uma pausa.
Com essa disposição, além da possibilidade de recompor o verso de 7 sílabas e assim dotar o trecho de maior regularidade, isto é, pacificação rítmica, o paralelo visual com a última estrofe fica perfeito.
Vejamos agora a última.
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Do ponto de vista métrico, esta é mais complexa do que a outra. Com os verbos no presente, temos 2 versos de seis sílabas, seguidos por um de 2 e um de 4. Mas a leitura que, na primeira, produz a regularidade métrica, aqui a destrói, pois, com se viu, “dormindo profundamente” tem 7 sílabas e o conjunto seria, portanto, assim: 6 6 7.
A única forma de obter equilíbrio rítmico aqui, nos moldes da versificação tradicional, é forçar a pausa depois de “dormindo”, pois assim a estrofe teria: 6 6 2 4. Isto é, dois hexassílabos e dois quebrados dele.
O efeito de sentido dessa leitura seria algo como destacar a última palavra, que é justamente a que dá título ao poema e concentra a sua carga emocional. A estrofe perde em velocidade. A última palavra fica mais “pesada”. Diria mesmo que mais lentamente pronunciada. Fato que parece ter sido algo almejado pelo poeta, que no manuscrito a grafou de uma maneira muito especial, espalhando-a graficamente, separando as suas sílabas, como se a quisesse alongar.
Na versão escrita, com o reforço do paralelismo, por meio da eliminação do recurso da indentação de parte do poema, e pela inserção de um travessão a iniciar cada uma dessas estrofes de resposta ao ubi sunt, o ritmo fez o que era preciso para que a palavra-título tivesse o peso que o poeta nela queria pôr.
E com estas observações pontuais, que não visam senão retomar o saudoso diálogo, rendo aqui a minha homenagem ao admirável leitor de poesia, com quem tenho podido aprender sempre ao longo de todos estes anos.
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Nota: os autógrafos reproduzidos estão no volume Manuel Bandeira. Libertinagem / Estrela da Vida inteira. Edição crítica de Giulia Lanciani. Madrid: ALLCA XX, 1998, p. 359-360.
(*) Paulo Franchetti é crítico literário, escritor e professor aposentado do Departamento de Teoria Literária da Universidade Estadual de Campinas. É mestre pela Unicamp, doutor pela USP e livre-docente pela Unicamp. De 2002 a 2013 dirigiu a Editora da Unicamp.