Um caso de amor bem resolvido
Em: 23/02/2010, às 15H54
Orisvaldo Mineiro
Mestre em Lingüística e Professor da UESPI
Ínclito narratário, data maxima venia, queremos adentrar o âmago de vossa intimidade para discorrer sobre a proeminente sensibilidade poético-jurídica dos autores do poema que adiante transcrevemos. A forma ajuridiquesada deste intróito serve de mote para a discussão que trazemos à baila: a intertextualidade do juridiquês com outros contextos.
Antes, um parêntese para situar o leitor sobre o que vem a ser juridiquês. Juridiquês é apelido dado à linguagem rebuscada e pomposa utilizada pelos operadores do Direito (advogados, juízes, promotores, etc.) permeada de termos e expressões obsoletos e enunciados excessivamente ornamentados, que mais servem para confundir o leitor que propriamente lhe transmitir alguma mensagem. Genericamente, a expressão foi estendida para qualquer texto que se utilize de termos técnicos da esfera jurídica.
É certo que a linguagem jurídica é de uma riqueza lexical (e sintática) sem comparativo entre as demais linguagens técnicas. Esse é um ponto positivo, e os termos técnicos são inevitáveis e essenciais em qualquer área do conhecimento. No entanto, é de bom alvitre que se combata o pernosticismo, o rebuscamento excessivo, que em nada acresce à produção de um bom texto. Essa tarefa foi iniciada há alguns anos pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), ao designar uma comissão para analisar os excessos e proceder a uma “reeducação” dos operadores do Direito, com vista ao uso de uma linguagem mais acessível ao público em geral, mais democrática, sem que traga, no entanto, prejuízo à sua nobreza lingüística.
Sobre os problemas do juridiquês, discutiremos mais profundamente em outra oportunidade. Por enquanto, queremos mostrar apenas que, para obter sucesso em sua empreitada, os operadores do direito (enunciadores) devem, dentre outras técnicas, desenvolver a habilidade de perpassar por outros discursos (jurídicos ou não) o texto que produzem, formando uma unidade de sentido, como deve ser um texto bem produzido. A essa operação, Beaugrande & Dresler, no âmbito da Lingüística Textual, denominam de intertextualidade (na perspectiva da Análise do Discurso, aproxima-se da noção de interdiscursividade).
Alheios à problemática de adequação lingüística do juridiquês e, quiçá, às teorias sobre o texto, pelo descompasso temporal desses fenômenos com sua produção literário-musical, algumas décadas atrás, Noel Rosa e Orestes Barbosa deram exemplo de intertextualidade, no qual conciliam com maestria o discurso jurídico (juridiquês) com o poético, numa simbiose mais que perfeita:
HABEAS-CORPUS
(Noel Rosa / Orestes Barbosa)
No tribunal da minha consciência Os autos do processo da agonia |
Tu tens as agravantes da surpresa Tu vais ser deportada do meu peito |
Numa análise superficial do poema (grifamos para facilitar a reflexão), podemos observar que os autores, utilizando-se da função poética da linguagem, estabelecem a intertextualidade ao fundirem num só texto diversos discursos, vejamos alguns: do poético, tomam de empréstimo a forma do poema em quadras com versos decassílabos, rimas intercaladas e linguagem figurada; buscam no discurso amoroso a temática do amor não correspondido que tem na traição o símbolo da infidelidade amorosa; e do juridiquês trazem a linguagem técnica da processualística penal que, na ótica dos poetas, deve ser o foro legítimo para pôr termo à questão.
Por essa pequena reflexão, queremos mostrar que o espaço da linguagem é democrático e comporta interações de matizes diversas, sem comprometer a compreensão dos sentidos veiculados nos textos, desde que usado com razoabilidade, clareza e bom-senso.