Tributo aos "malditos"
Por Cunha e Silva Filho Em: 20/09/2009, às 15H01
Cunha e Silva Filho
Na literatura universal, e aí incluindo a brasileira - por que não? - merecerão sempre meus aplausos todos aqueles escritores, poetas, romancistas ou dramaturgos que, lato sensu, estariam compreendidos numa relação que não é tão pequena assim, pois incluiria nomes como Baudelaire, Rabelais, Bukovski, Antonio Fraga, Gregório de Matos, Oscar Wilde, Edgar Allan Poe, François Villon, João Antônio, Plínio Marcos, entre muitos outros dos diversos países. Estou empregando o termo “maldito” no conceito ora mais, ora menos, associado à expressão francesa ‘poète maudit,” originária de um ensaio de Verlaine, Les poètes maudits (1884), dos quais seriam exemplos Rimbaud e Mallarmé. A expressão se estenderia não somente a poetas mas a escritores em geral que, na obra e na biografia, representariam forte oposição ao valores consagrados pela burguesia, artistas rebelados com a sociedade e suas normas ortodoxas, às quase não aderiam e, ao contrário, estariam continuamente desafiando-as através de seus comportamentos anticonvencionais, sua solidão, sua pobreza, sua forma de se vestir, de se comportar, mas tendo como meta maior a seriedade e a procura de uma realização fundada na verdade artística.
Não fossem essas figuras de intelectuais excêntricos, diria melhor, verdadeiros em suas convicções e escolhas de modos de vida, - outsiders do meio intelectual elitista -, o lado sujo da sociedade, pelo caminho da literatura, em seus principais gêneros, estaria empobrecido e impedido de ser visto pelo establishment cultural.
Já se imaginou a literatura do Ocidente sem a forte presença desses párias da literatura? Não seria a mesma a história literária de todos os tempos.
Em suas várias épocas e em patamares diversos de nível literario, os “malditos”, os marginalizados pela chamada literatura séria, nobre, solene, comprometida historicamente com a aristocracia clássica, renascentista, tanto quanto com a burguesia que surgiria após a queda das monarquias européias, não teriam tido a oportunidade de se manifestar como criação ficcional, poética ou dramatúrgica.
Era preciso que essas vozes dissonantes e olhadas de esguelha se levantassem e se fizessem ouvidas artisticamente. Essa oposição de estilos, linguagens e temas literários teve indubitavelmente um papel de complementaridade cultural que perdura até hoje, mesmo com as necessárias modificações advindas das novas linguagens cujo marco podemos localizar com o advento da sociedade industrial e com o consequente avanço científico-tecnológico até os dias de hoje.
A chamada grande literatura, nos vários gêneros de composição, focalizando realidades da nobreza, da aristocracia, em seguida, da burguesia capitalista, i.e., da realidade dos vencedores economicamente, trazendo para a literatura a suntuosidade da vida, e ao mesmo tempo a sensaboria dos problemas existenciais de seus personagens ou de sua poética ou dramaturgia apoiadas na vida vazia ou mesmo conflituosa de seus atores sociais, não se sustentaria sozinha. O mundo é múltiplos e múltiplos são os temas e as subjetitvidades envolvidas isoladamente.
Os escritores “malditos”, desprezando convencionalismos sociais e os formalismos estéticos consolidados, os ambientes físicos refinados, os comportamentos sociais cristalizados pelas classes privilegiadas, produziram suas obras na contramão dos sistemas de classes dominantes.
Deles, em geral, nasceu uma literatura fortemente impregnada da biografia dos autores, precisamente porque foram escritores cuja vida não se pautou pelos modelos da civilização bem comportada, a começar da linguagem e de sua visão diversa da que lhes interessava explorar do mundo repugnado e desprezado pela finesse da intelectualidade.
Os “malditos”, até na aparência física, na indumentária, nos hábitos sociais, nos relacionamentos reprovados pela sociedade e nos ambientes freqüentados, mantinham certa homologia com a natureza de suas obras, dos seus personagens, da sua dicção poética ou dramatúrgica. Cada qual, na sua época, exibia suas idiossincrasias, suas posições anticonvencionais, sua linguagem embrutecida ou semanticamente rebaixada (sermo vulgaris), exibindo palavrões, cenas fortes, escatologia, psicopatias, exclusão social, fome, criminalidade, erotismo acentuado, ausência de códigos morais, ausência de clima de religiosidade, promiscuidade, psicopatias, mortes horripilantes, delírios, necrofilia, cenas fantasmagóricas.
A grande contradição da história desse grupo de escritores, cuja literatura se posicionava à margem da literatura burguesa, residia no fato de que eram recusados pela burguesia, porém, à medida que, com o tempo, passaram a integrar a história literária do passado recuado ou mesmo próximo de nossa contemporaneidade, se tornavam autores apreciados pela própria pequena burguesia ou pela burguesia propriamente dita, i.e., por leitores que começaram a consumi-los e mesmo admirá-los.
Entende-se facilmente a justificativa para essa contradição. E por quê? Porque esse grupo de “malditos” escreveu obras de alto ou mesmo altíssimo valor literario. Não foram somente os temas, os ambientes sórdidos ou pavorosos, os personagens problemáticos do submundo das cidades que os tornaram grandes escritores, mas sim suas formas de linguagem, sua criatividade, sua genialidade de criação, assim como sua profundidade de entendimento da alma humana, seja qual fosse sua condição social, ou melhor, sua marginalidade de vida, sua carência física, moral ou cultural.
Em decorrência disso, é que os “malditos” transpuseram as fronteiras do tempo e dos estilos literários. A salvação deles, ou seja, seu sucesso se deveu, enfim, à originalidade das formas literárias. Daí que, acima dos temas por eles desenvolvidos, paira a seriedade – dado fundamental na arquitetura de uma obra literária -, de que souberam urdir seus diferentes mundos inventados, mundos esses que nos surpreendem pela singularidade de seus processos de criação perdurável através do tempo.