Cunha e Silva Filho

                             Théophile Gautier (1811-1872) uma vez recomendara aos jovens que lessem o dicionário. Algo dessa declaração faz sentido com a visão geral de sua poesia e de sua obra, pois não foi só poeta, mas jornalista, novelista, contista, romancista. Seu livro principal, no gênero poético, intitula-se Émaux et camées (1852), do qual extraí o poema cuja tradução em português, na forma bilíngüe, entrego, agora, ao leitor. 
                            Não podemos definir este escritor sem associá-lo ao Parnasianismo francês, do qual foi um dos precursores. Todo o esforço de Gautier foi, no campo da arte, a procura pela forma ideal da Beleza, da Palavra, minuciosamente escolhida, dos ritmos, dos sons, rimas, que deveriam primar, antes de tudo, pela rigor da forma, pelo apuro da linguagem. Esse cultor da Beleza e da Forma, todavia, não se confina aos estreitos esquemas da impessoalidade exigida pelos parnasianos ortodoxos, e nisso guarda afinidade com alguns de nossos parnasianos. Estudara primeiro pintura, mas logo foi vencido pelas musas, que não o largaram nunca. Entretanto, sua poesia é visual, pictórica, rastros que lhe deixou sua passagem pela pintura. Embora parnasiano, sua poesia mescla elementos diversificados, que vão do exótico, do concreto, do plástico-visual ao sonho, porém a um sonho que, segundo P. G Castex e P. Surer , “submete a criação poética às leis rigorosas”. Ainda segundo os mesmos críticos,  para Gautier – o que seria um princípio definitivo de sua estética -, o homem que desejaria ser seria alguém “para quem o mundo exterior existe”.

PREMIÈRE SOURIRE DU PRINTEMPS


Tandis qu’à leurs oeuvres perverses
Lês hommes courent haletants,
Mars, que rit, malgré es averses,
Prépare en secret le printemps.

Pour les petites pâquerettes,
Sournoisement, lorsque tout dort,
Il repasse des collerettes,
En ciselle des boutons-d’or.

Dans le verger et dans la vigne,
Il s’en va, furtif perruquier,
Avec une houppe de cygne
Poudrer à frimas l’amandier.

La nature au lit se repose,
Lui descend au jardin désert
Et lace les boutons de rose
Dans leur corset de velours vert.

Tout em composant des solfèges,
Qu’aux merles il sifle à mi-voix,
Il sème aux près lês perce-neiges
Et les violettes aux bois.

Sur le cresson de la fontaine
Où le cerf boit, l’oreille au guet
De sa main cachée il égrène
Les grelots d’argent du muguet.

Sous l’herbe, pour que tu la cueilles,
Il met la fraise au teint vermeil,
Et te tresse un chapeau de feuilles
Pour te garantir du soleil.

Puis, lorsque as besogne est faite
Et que son règne va finir,
Au seuil d’Avril tournant la tête,
Il dit: “Printemps tu peux venir”!

PRIMEIRO SORRISO DA PRIMAVERA

Enquanto os homens, com suas obras perversas,
Ofegantes correm
Malgrado os aguaceiros,,
Março, que ri, prepara em seguida a primavera.

Para as alvas e pequenas margaridas,
Quando tudo adormecido está,
Dissimuladamente ele, mais uma vez, repassa a gola
E amarelos ranúnculos.cinzela.

No pomar e na vinha
Lá se vai, furtivo barbeiro,
Com uma borla de cisne
A amendoeira, na geada, polvilhar.

Descansa, no leito, a natureza.
Sobre ele desce um jardim deserto
Enlaçando os botões de rosa
Em seu espartilho de veludo verde.

Tudo são solfejos
Que aos melros, à meia noite, silva
Nos prados campainhas brancas semeia
Nos bosques, violetas.

Sobre o agrião da fonte
Onde bebe o cervo, a orelha em pé,
Com a mão oculta, do lírio-do-vale
Os guizos d’ouro debulha.

Sob a erva, pra que a colha,
O morango de tom vermelho põe
E te trança um chapéu de folhas
A proteger-te do sol.

Em seguida, concluída a tarefa,
Vendo o fim de seu reinado.
Ao limiar de Abril, voltando a cabeça
Lhe diz: “Podes vir, ò primavera”!