Tetralogia piauiense: um repto aos discursos oficiais
Por Francigelda Ribeiro
Ao longo da Tetralogia piauiense1 composta pelos romances: Beira rio beira vida (1965), A filha do meio-quilo (1966), O salto do cavalo cobridor (1968) e Pacamão (1969) – refinamento estético e debate ideológico estabelecem vínculos dialéticos, culminando em um projeto literário não omisso às pressões do poder sobre as camadas populares. É na perspectiva do oprimido que as narrativas se processam, expondo personagens que asseguram, na sua constituição, um repto aos discursos oficiais. Consciente dessa interligação de texto literário e contexto social, Assis Brasil, em entrevista dada ao crítico Carlos Menezes, no jornal O Globo, declara:

Não costumo separar significação social da significação estética da literatura, porque ela documenta, denuncia, critica a vida ao nível de uma realidade artística, com uma linguagem específica. A cidade de Parnaíba e a minha experiência lá forneceram o material de trabalho, estilizado a partir de uma visão da vida e da literatura: visão universal do homem, a sua condição. A visão particular acaba por ser uma visão panorâmica. Este é o segredo da arte (BRASIL, 1979).

Para se chegar, portanto, a um significado mais profundo da Tetralogia piauiense, não se pode olvidar de que há nela um resgate de quadros sociais do passado que o autor, a partir do seu hic et nunc, objetiva-os esteticamente nos romances. Experiências reais não são reconstituídas na sua integridade quando evocadas, menos ainda quando o souvenir emerge lustrado pelos matizes do processo artístico, todavia as imagens mnêmicas imputam maior expressividade à mímesis literária. Nesse sentido, o próprio autor confessa que a idéia de escrever a Tetralogia “nasceu de uma necessidade urgente de voltar às minhas raízes telúricas, e a experiência de vida, principalmente a infância, foi a matéria-prima para o levantamento de um mundo ficcional” (BRASIL, 1979, p. 483).

A cidade de Parnaíba, situada ao norte do estado do Piauí, transfigura-se no espaço narrativo dos romances da Tetralogia. Assis Brasil, partindo das condições socioeconômicas e culturais da cidade, ergueu o quinhão de engajamento da obra. O escritor e crítico literário Antônio Olinto, após o lançamento do segundo livro do ciclo, A filha do meio-quilo, destaca que Assis Brasil promove o ingresso do Piauí na literatura, propiciando uma espécie de avanço e de integração do estado no conjunto do país.

Assim, temos agora, com Assis Brasil, o Piauí com existência literária, através de uma ficção de valor. As características da tetralogia de Assis Brasil ficarão para ensaio posterior, inclusive para quando os quatro romances tiverem sido publicados. Uma espécie de tetralogia como a de Lawrence Durell segue uma linha mais ou menos impressionista de narração. A de Assis Brasil é realista. Um realismo diferente do comum e servido por um estilo que tenta a objetividade (OLINTO, 1967).

Os aspectos histórico-sociais transpostos ao interior dos romances ganham acentuado vigor, dada a postura realista com a qual o autor constrói a obra, delineada por uma visão conjuntural. Refletindo acerca da realidade ficcional da Tetralogia, o escritor e crítico Fausto Cunha (1923-2004), focalizando o primeiro romance da série, expõe um comentário que viria mais tarde circunscrever os demais romances do ciclo:

É o retrato insolúvel [...] [de] um mundo em que a sociedade se estratificou implacavelmente, onde as prostitutas são prostitutas, os pobres são pobres, os ricos são ricos - quase à revelia do eventual saldo financeiro. Não existem vasos comunicantes. Quem quiser realizar-se, terá de fugir, terá de ir para fora. As dobradiças do sistema estão, porém, de tal modo enferrujadas que a fuga é praticamente impossível (CUNHA, 1979, p. 135).

Assis Brasil, por meio do discurso de suas personagens, expõe a rigidez da exploração social, implicando uma profícua trajetória que desnaturaliza a opressão exercida pelos estratagemas burgueses. Confere sentido estético à representação extra-oficial, tanto por franquear vozes dissonantes – constituintes-mores da alteridade – como centro das narrativas, quanto por credenciar as minorias resistentes às dragas hegemônicas. 

Beira rio beira vida (1965) põe em evidência os moradores e trabalhadores do cais: canoeiros, embarcadiços, estivadores, prostitutas, enfim o lumpemproletariado na hostil submissão à deidade-mercadoria. No livro, a prostituição marca gerações de mulheres, que, sufocadas pelo sistema, concebem-na como sina, uma maldição para a qual restava apenas a subserviência. No segundo romance, A filha do meio-quilo (1966), aflora o cotidiano dos barraqueiros de mercado, antípoda ao das famílias abastadas, que lhes fazem refletir, a cada moeda lançada, sua condição de dominados. Em O salto do cavalo cobridor (1968), o eixo narrativo volta-se para a vida rural dos agregados de fazenda, a quem não são menos impostas as assimetrias da estratificação social. Em Pacamão (1969), fechando o ciclo, é ressaltada a arrogância das famílias aristocráticas que, embora carcomidas pelas injunções da nova burguesia comercial, não admitem o deslocamento no projeto liberal, passando à ostentação das aparências, em um expressivo fluxo de avidez e arrogância, na tentativa de não verem malograr seu prestígio social.

Assis Brasil põe em discussão o caráter irreconciliável das classes sociais, focalizando a opressão exercida pela burguesia sobre as camadas subalternas. Assim, desnuda, por meio da seleção dos elementos que compõem os romances, as razões que estão no domínio de tal antagonismo. A exposição cáustica das causas que corrompem a essência humana é evocada pela postura engajada do autor que resulta na dessacralização do objeto literário enquanto um fim em si mesmo, tornando-o um meio a serviço de uma causa ou de um propósito que o ultrapassa.

O ensaísta e crítico literário Fábio Lucas, no ensaio O caráter social da literatura brasileira, enfatiza que, até o período que antecedeu o chamado Ciclo do Nordeste, as verdadeiras causas da opressão social não eram postas às claras nos romances em circulação.  Apesar de os autores dos romances de costume colocarem, em suas obras, situações reveladoras da alienação social, a razão da miséria era sempre deformada; no caso dos romances nordestinos, subsumida à fatalidade da natureza inclemente. As "desigualdades provinham da vontade de Deus e as injustiças dos caprichos da natureza, nunca da organização dos homens" (LUCAS, 1970, p. 54). Para o crítico, somente com o Ciclo do Nordeste é que as falhas da organização social começaram a ser exploradas, havendo uma "antropomorfização do tema dos retirantes e dos oprimidos, não mais tangidos por determinados naturais e condenações da Providência Divina" (1970, p. 78).

No que concerne às causas da miséria social trazidas à feitura dos romances, Assis Brasil exprime, de maneira oportuna, a truculência das opressões ideológicas, renegando as razões místicas. E quando se reporta às causas sobrenaturais, a alusão ocorre de modo congruente com seu projeto de denúncia. Os problemas passam, pois, a existir no plano da organização social: o desejo de poder, a exploração das classes marginalizadas, enfim, os modos de coerção social são ameaçados pelo inconformismo das personagens cuja ação ganha relevância diante dos conflitos narrados.

No seu engajamento, Assis Brasil figura conflitos dominantes na sociedade parnaibana, expondo o paroxismo dos desajustes sociais predominantes no contexto da primeira metade do século XX – tempo no qual a cidade, factualmente, atuava como um dos maiores centros econômicos do Nordeste brasileiro, chegando a atingir, em 1941, um índice de 2,4% do valor total das exportações brasileiras (Cf. Mendes, 2003, p. 102-103). A elite empresarial em célere movimentação financeira impulsionava a cidade rumo ao progresso. Tal é o contexto da Parnaíba que adentra a ficção de Assis Brasil, cuja opção se faz por focalizar as discrepâncias advindas desse momento áureo, conferindo lugar de destaque à coletividade oprimida. Desse modo, faz valer o argumento de Sartre quando defende que “o escritor [...] se coloca em perpétuo antagonismo com as forças conservadoras, mantenedoras do equilíbrio que ele tende a romper” (1993, p. 65) e, assim o faz, visto que considera a idéia de que a palavra implica ação.
 
No processo de configuração dos problemas próprios da época, Assis Brasil utiliza-se de referências a pessoas reais, sobretudo a representantes da elite parnaibana que – dadas as circunstâncias narrativas de denúncia à ideologia das classes privilegiadas – sentiram-se moralmente atingidos, detraídos e ameaçados. O universo ficcional da Tetralogia, mormente o de Beira rio beira vida, revelou-se, pois, como uma espada de Dâmocles a uma parte da burguesia da época. Em relação a esses grupos, expressou o autor:

Devo dizer que eles nada têm a ver com os meus romances: há coincidência de nomes, de situações, o que é mais uma prova de que a “geografia humana” é universal. Que eles tirem a carapuça e vejam Parnaíba (a mesma coisa aconteceu com Dalton Trevisan em Curitiba) como um barro original, de onde parti para a criação. [...] Esta Tetralogia Piauiense, se você quiser abstrair o seu lado de pesquisa da forma e da linguagem literária, é o retrato de um Brasil provinciano, que continua primitivo, abandonado e miserável [...]. E você quer saber de uma coisa trágica? Aqui perto, a 50 quilômetros do Rio, começa a “província” esquecida de que estou falando (O Globo, 1979).

Enquanto representantes do grand monde parnaibano se fechavam em uma postura estólida diante da criação literária de Assis Brasil, seu reconhecimento avançava no élan da nova ficção, com uma profícua produção que consta de mais de uma centena de livros lançados. Nas palavras do jornalista Florisvaldo Mattos,

Assis Brasil é um dos mais prolíficos [...] escritores da literatura brasileira atual. Crítico, dramaturgo, ficcionista e antologista, começou muito cedo no Jornal do Brasil, cujo suplemento dominical acompanhava a atualidade literária e artística internacional e difundia o melhor das vanguardas brasileiras (MATTOS, 1999).

O sociólogo Manuel Domingos Neto2 argumenta que a censura imposta pela elite parnaibana aos romances da Tetralogia não se deu senão pelo fato de Assis Brasil ter operado “em rota de colisão com os comerciantes ricos de Parnaíba” (1994, p. 27) por conseguir tematizar os miseráveis com maturidade estética, não somente como “os que comem pouco e morrem cedo na minha cidade de Parnaíba” (1994, p. 25), mas por figurá-los com a sensibilidade de não os ver “como coisa exótica, especial” (1994, p. 25).

No amálgama das formalizações internas da obra, é possível ao leitor entrever valores contrapostos ao corrosivo processo de alienação social, ou seja, a produção literária funcionando enquanto prática social, algo que, por exemplo, foi especificidade tratado pelo crítico britânico Raymond Williams, no ensaio Cultura e sociedade:

A literatura é, em sentido geral e sem que isso requeira argumentações, uma atividade social, e seu valor está, aparentemente, no fato de entrar o autor em contacto com certas forças que surgem e podem ser discutidas em termos literários (isto é, com intenção que se transformou em linguagem). Essas forças, todos concordam, podem ter origem mais-do-que-literária, mas estão dentro do complexo das relações do escritor com a realidade (1969, p. 286).

Considerando a exposição literária que os escritores fazem de tais forças, Raymond Williams cunha a expressão “estrutura de sentimento”, que designa uma sensibilidade social emergente que se opõe às formas hegemônicas. Para o crítico, as

Formações efetivas da maior parte da arte presente se relacionam com formações sociais já manifestas, dominantes ou residuais, sendo principalmente com as formações emergentes (embora com freqüência na forma de modificações ou perturbações nas velhas formas) que a estrutura de sentimento [...] se relaciona (1979, p. 136).

Pode-se perceber, observando a recepção da Tetralogia na cidade de Parnaíba, na época do seu lançamento, a considerável distância de percepção, entre o autor e o público majoritário (pessoas bem formadas intelectualmente, vale ressaltar), acerca dos problemas que se entranhavam às formas de relações sociais. A crítica aos sulcos devastadores das injunções capitalistas proposta ao longo da obra só poderia ter, a contento, a recepção de leitores cuja visão acerca do sistema social fosse, de algum modo, convergente à do autor, ou seja, aqueles que tomassem parte da estrutura de sentimento que sobressai nos romances. Tratava-se de uma nova sensibilidade – como assinalou, sob outra terminologia, o sociólogo Manuel Domingos Neto – diametralmente oposta aos interesses da ordem vigente.

A Tetralogia propõe, não obstante seu caráter universalista, a representação de um espaço regional, circundando um período de vasta movimentação econômica, em termos totalizantes. Desvelando as contradições do fluxo econômico, da primeira metade do século XX, na cidade de Parnaíba, o autor transpõe, ao contexto interno da obra, a tensão entre os grupos sociais desfavorecidos e a ala beneficiada pelo desenvolvimento da cidade. Se por um lado, tal desenvolvimento projetava o potencial empreendedor dos negociantes do cais de Beira rio beira vida: “o cais velho enriqueceu muita gente” (BRASIL, 1979, p. 104); por outro, minguava a esperança dos trabalhadores explorados. Os estivadores carregavam “o dia inteiro saca de arroz, fardo de algodão, quatro arroba de carnaúba de uma vez. Um ou outro, de vez em quando, não agüentava o rojão, ficava cuspindo sangue por aí” (BRASIL, 1979, p. 20). Era o preço da sobrevivência subjugada pelas injunções do sistema que, ulteriormente, ajustando-se às inovações tecnológicas, passavam a comprimi-los em meio à concorrência com as máquinas. Avançando à revelia das possibilidades dos trabalhadores locais, desumanizados pelas crivadas relações de propriedade, o progresso da cidade se estabelecia unilateralmente.

Vale ressaltar que, simultaneamente à fase ascensional da cidade de Parnaíba, expandiu-se uma considerável massa de excluídos: empregados do comércio, contramestres, marinheiros, remadores, estivadores, trabalhadores rurais, desempregados, dentre outros que compunham a base da pirâmide social – indivíduos que surgiam no élan das novas e complexas relações comerciais. Apesar de a região passar por um período convulsivo de desenvolvimento, ainda permanecia, na base dessas relações sociais, o modelo político coronelista (Cf. Medeiros, 1995). Alguns fazendeiros menores, aderindo aos negócios da importação-exportação, passaram, posteriormente, a constituir uma burguesia comercial. Ainda que defendessem interesses específicos, não suscitaram possibilidades de inovação no quadro do desenvolvimento econômico, ao contrário, assimilaram o modus vivendi do latifundiário tradicional.

Nesse sentido, acrescenta o sociólogo Antônio José Medeiros que somente o “surgimento de outras classes e grupos sociais e a considerável diferenciação cultural é que representarão o elemento de tensão transformadora” (1995, p. 167); situação verificável quando se unem pequenos comerciantes, profissionais liberais, artesãos, funcionários públicos, empregados envolvidos com as navegações, dentre outros que se posicionam como portadores de interesses diferenciados, tensionando o espaço de dominação ampla da elite, uma vez que buscavam oportunidade representacional, embora não fossem capazes, conforme comenta Medeiros, de “quebrar a rigidez da dominação oligárquica” (1995, p. 167).

Não são as marcas desse contexto meros reflexos na tessitura dos romances, mas trata-se do “momento histórico da emergência de suas possibilidades lingüísticas, [que possibilita] a função específico-situacional de sua estética” (JAMESON, 1992, p. 9). Assis Brasil mapeia, na reconstrução artística dessa conjuntura, a organização social da cidade de forma a legitimar o papel de denúncia social da obra.
 
1 Os romances da Tetralogia, aqui analisados, estão reunidos em um volume único, publicado pela editora Nórdica, em 1979.
2 O pesquisador parnaibano Manuel Domingos relata no artigo A primeira vez que li Assis Brasil (1994) que para ler Beira rio beira vida teve que infringir as ordens do avô Ranulpho Torres Raposo, líder empresarial e jornalista. A proibição deu-se sob a alegação de que “o livro seria um ‘desrespeito às famílias parnaibanas’, jogaria ‘lama sobre homens honrados’” (1994, p. 24). Aguçado pelas razões expostas, o ainda adolescente Manuel Domingos, passou à leitura do romance trancado no banheiro ou durante as furtivas saídas para a praça Santo Antônio. Ranulpho Torres Raposo, mesmo sendo um intelectual de vasto conhecimento, juntou-se ao coro dos ofendidos, sobretudo ao notável amigo Darcy Mavignier, um dos que mais se incomodou por seu nome ser dado a uma personagem considerada de má conduta. Ademais Ranulpho Torres julgou um desrespeito a referência feita à morte do filho Ranulphinho, que morrera afogado no rio, de fato, mas que não fora encontrado “todo comido de piranha”, conforme o comentário dos moradores do cais de Beira rio beira vida (BRASIL, 1979, p. 101).

REFERÊNCIAS
BRASIL, Assis.  Tetralogia piauiense. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979.
______. ‘Tetralogia piauiense’ assinala 25 anos de ficção de Assis Brasil. O Globo, Rio de Janeiro, 06 abr. 1979. Entrevista concedida a Carlos Menezes.
CUNHA, Fausto. A consciência do autêntico. In: BRASIL, Assis. Tetralogia piauiense. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979.
DOMINGOS NETO, Manuel. A primeira vez que li Assis Brasil. In: Almanaque da Parnaíba, n. 61. Parnaíba: UFPI, 1994.
JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992.
LUCAS, Fábio. O caráter social da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970.
MATTOS, Florisvaldo. A poesia em pânico. Fortaleza, 1999. Disponível em: <http://assisbrasil.org/jp1.html> Acesso em: 20 abr. 2007.
MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais. In: SANTANA, R. N. Monteiro (Org). Piauí: formação, desenvolvimento, perspectiva. Teresina: Halley, 1995.
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SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1993.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade: 1780-1950. São Paulo: Nacional, 1969.
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