José Ribamar Garcia, ficcionista que transita pela crônica, pelo conto, pelo romance, pelo ensaio de memória
José Ribamar Garcia, ficcionista que transita pela crônica, pelo conto, pelo romance, pelo ensaio de memória

 

Havia, como disse, uma segregação silenciosa e resignada. Aquele negócio de “conhecer o seu lugar”

Dílson Lages - Ribamar, sua crônica em Imagens da Cidade Verde é marcada pela ênfase à memória. Nessa obra, tem-se um painel vivo de valores e costumes de uma Teresina que não mais existe, a Teresina de 1950 e 1960. Para o narrador, que Teresina é essa?

Ribamar Garcia - Como você bem assinalou, aquela Teresina dos anos  50 e 60,  que foi a da minha infância e parte da adolescência, não existe mais. Só existe na memória.   E foi esta Teresina que procurei retratar no meu livro “Imagens da Cidade Verde”. Era uma cidade provinciana, acanhada, romântica, cativante e mágica. Sua magia vinha das águas do rio Parnaíba, de suas lendas,  de seus coriscos e trovões viris, do pôr do sol mais lindo do Brasil, e do teresinense valente que enfrentava assombrações, como a “Num se Pode”, mas temia e se apavorava diante da tísica.

 

Dílson Lages - As praças se constituem em um dos elementos mais valorizados em Imagens da Cidade Verde. Que representação social o senhor espera que os leitores, os que viveram o tempo retratado e os de hoje, construam sobre as praças da Bandeira, Saraiva, Pedro II e do Liceu?

Ribamar Garcia - Quanto às praças, notadamente as da Bandeira, Saraiva, Liceu e Pedro II, além de palcos de romantismo e de certa  pureza, expunham uma segregação  social  silenciosa, resignada, mas explícita. Veja você: A Praça Pedro II era composta de dois planos. No primeiro plano,  parte de cima, em frente ao quartel da Polícia Militar, havia o coreto e os canteiros das plantas, e era frequentado pelas moças pobres e humildes, geralmente empregadas domésticas,  do comércio  e da Fiação (fábrica de tecidos, instalada quase à beira do Parnaíba). Enquanto no segundo plano,  parte de baixo, defronte ao Theatro 4 de Setembro e Cine Rex, desfilavam as moças e rapazes da classe remediada e rica, que não se misturavam com o pessoal da parte de cima. Isso era tão natural, que acabou   virando um costume.

 

Dílson Lages - A diferença de classes é tematizada em várias crônicas. Nesse sentido, há nas crônicas de Imagens da Cidade Verde valorização de figuras do povo, entre as quais se inclui o próprio narrador, em crônicas como “A penitenciária” e o “Clube do Diários”. O que era do ponto de vista da desigualdade social Teresina nas décadas de 1950 e 1960? 

Ribamar Garcia – Havia, como disse, uma segregação silenciosa e resignada. Aquele negócio de “conhecer o seu lugar” E de se conformar com essa, vamos dizer assim, norma consuetudinária.  Isso também era exposto no Clube dos Diários. Só entrava nele quem era sócio ou convidado de um sócio. Pobre não entrava. E negro só se fosse rico ou doutor – coisa rara na época.  Nos bailes ou nas festas  carnavalescas, o povo se contentava em ficar do lado de fora, observando pelo portão os foliões. No hospital  Getúlio Vargas existia uma ala dedica aos indigentes e aos que não tinha dinheiro para custear a internação e a cirurgia.

  

Dílson Lages - Imagens da Cidade verde constrói um painel vivo dos costumes e valores de Teresina em 1950 e 1960. Quais costumes e valores o senhor crê definem com maior exatidão a cidade de sua infância?

Ribamar Garcia - Diria que eram os valores relativos à honra. Embora o conceito de honra, especificamente, em relação à mulher era algo profundamente fundamentalista. Veja você: A moça que perdesse a virgindade estava condenada à execração pública. Essa não conseguia mais  casamento. E dependendo da estratificação social, era expulsa de casa, e, sem ter para onde ir, acabava indo ampliar a galeria dos cabarés da Rua Paissandu. Até a mulher que se  separava do marido, ou que vivesse em regime de união estável era discriminada. Homossexual, então, não tinha vez e o único assumido na cidade era um alfaiate. Também havia um culto à coragem e à valentia.  

 

Dílson Lages - Retratando Teresina das décadas de 1950 e 1960, a época de sua infância, o que o senhor elegeu como projeto literário, a fim de se distanciar de outros cronistas que escreveram sobre Teresina?

Ribamar Garcia - Sem dúvida, grandes escritores já escreveram sobre Teresina. Dentre eles Abdias Neves ( no romance “Um Manicaca”), Vitor Gonçalves Neto, A. Tito Filho (o cronista mor), H. Dobal, Carlos Said, Matias Augusto de Oliveira Matos, Rodrigo M. Leite (com sua “Cidade Frita) e vários outros. No entanto,   procurei registrar  em “Imagens da Cidade Verde” a cidade provinciana, romântica, acanhada e cativante por dentro,  revelando sua atmosfera, sua magia, seu espírito, através das ruas, dos logradouros, das lendas, dos hábitos e costumes dos teresinenses. Tentei fazer um Raio X da cidade de 120 mil habitantes.   

 

Dílson Lages - Avaliando a Teresina retratada em suas crônicas e a Teresina de hoje, que paralelo o senhor faz entre elas?

Ribamar Garcia - Teresina cresceu, desenvolveu-se e até ficou mais bonita, mas não tem magia. Aquela coisa que cativa e não se sabe porque se é cativado. A juventude não se reúne mais em clubes sociais, mas em shoppings e em boates. Isso não é mal, apenas novo hábito. A desigualdade social cresceu em proporções inadequadas em relação ao número de habitantes, atualmente, por volta   de 900 mil, sendo que quase a metade é de emigrantes, principalmente do interior do Estado. O teresinense não perdeu a hospitalidade, porém, está adquirindo a mania da ostentação, pecado decorrente da pobreza de espírito. A cidade deixou de ser verde e isso certamente deixaria triste o escritor maranhense Coelho Neto, que a denominou  de Cidade Verde. Mas. No entanto, algo animador é que a juventude leva a vida a sério, interessada, e preocupada com os estudos. Percebeu que só se consegue ser grande na vida através dos estudos. 

 

Dílson Lages - Ribamar, percebi em sua crônica paradoxalmente, uma busca rigorosa da objetividade.  Essa busca rigorosa pela objetividade é realmente uma meta sua do ponto de vista do estilo?

Ribamar Garcia -  Sinceramente, não sabia que a forma de eu desdobrar certos assuntos dentro do texto, mas sem perder a coesão e a coerência, atingiria a objetividade. Você tem razão. Só que faço isso intencionalmente. É claro que ao escrever, procuro ser claro, direto e objetivo, assim como fujo dos “lugares comuns” e de quaisquer clichês – que julgo abomináveis.  O desdobramento dos temas, a construção de frases curtas, às vezes, até sincopadas e as pinceladas de ironia, atribuo ao meu temperamento. Alguém já não disse que o estilo é o temperamento?  

 

Dílson Lages - O senhor transita por gêneros diversos: o conto, o romance, a crônica. Em qual desses gêneros o senhor se sente mais à vontade para a criação literária?

Ribamar Garcia - Creio que seja no romance, porque sinto mais liberdade e mais espaço para  relatar, dissertar, vaguear,  descrever cenários e pintar os personagens,  enfim, criar o que me proponho a fazer. E fazer sempre, buscando  uma verossimilhança e da melhor forma de contar. Entretanto, a crônica me serve para registrar acontecimento agradáveis e também desagradáveis, deixando-me livre para expressar minha opinião e até a indignidade, sem medo de cair na panfletagem. Já o conto, que acho muito difícil de fazer, utilizo quando quero contar uma história curta que não me exige muito fôlego.  

 

Dílson Lages - Para finalizar nossa conversa, o que é hoje afetivamente Teresina para o escritor José Ribamar Garcia?

Ribamar Garcia - A Teresina do livro é uma lembrança que me persegue e me inquieta. E a atual, continua sendo uma das minhas paixões e vício. Um vício que  me revigora física e emocionalmente. 

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