Se casou com um pescador daqui das redondezas, o Romero. Só que a mulher era fogosa demais e quando o marido ia pescar no mar ela começou a arranjar amante. As comadres logo perceberam o movimento na casa da vizinha. Um entra e sai da casa quando o marido tava fora. E logo começaram a ficar preocupadas com próprios casamentos. Ora a mulher era danada de bonita podia ter qualquer um que quizesse.
As mulheres queriam contar pro marido dela, mas ninguém queria atrair pra si a fama de fofoqueira. A galega já tinha dado em cima do Ronaldo um dos pescadores que trabalhavam com ele e marido da cumadre Josefa.
Aí já viu né? Mulher enciumada é bicho tinhoso. A Josefa começou a ir recebe-los na praia com a desculpa de trazer uma merenda para os pescadores. Nisso ela dava um jeito de se chegar no Romero e comentar, como quem não quer nada sobre como tinha sido o dia da galega.
- Nossa cumpadre a tua casa passou a manhã fechada hoje, tá tudo bem com a cumadre?
E assim dia após dia ela ia cultivando suspeitas no Romero.
A pulga atrás da orelha dele cresceu tanto que um dia ele resolveu testar os mexericos da Josefa.
Numa tarde chegou com a esposa e disse que no dia seguinte ia pescar mais longe e que passaria três dias fora de casa. Ora se ela estivesse com caso seria uma oportunidade de ouro.
Ele pegou sua canoa e deu uma volta, se distanciando pra voltar logo mais no final do dia. Quando voltou resolveu desabafar com o cumpadre Ozório e ficaram bebendo perto da praia, mas longe da casa do Romero. Ozório tentou por panos quentes no assunto, afinal ele mesmo já tinha experimentado da galega. E foi enchendo o caneco do Romero, afim de deixa-lo de porre.
De madrugada, três garrafas de pinga depois e cheio de suspeitas o Romero se levantou e começou a andar em direção à casa. O Ozório tentou dissuadi-lo mas este já nem se aguentava em pé.
E aí, não deu outra. Romero chegou na alta madrugada em casa e pegou a galega enquanto dormia nos braços do amante. Foi uma gritaria e um quebra quebra só. O amante conseguiu escapar e se embrenhou no meio do mato. Já a mulher não deu a mesma sorte. Com a raiva que o Romero tava ele não ouvia mais a voz da razão. E não atendia as susplicas da mulher. Segurou ela pelo pescoço e a enforcou até que morresse.
Ele foi preso né. Depois disso ninguém soube dele. Mas ela, ela não aceitou a morte e depois de uns dois meses o povo começou a falar de uma visagem que aparecia perto da estrada que levava pra praia. Diziam que quem chegasse perto sentia um perfume doce e forte e que os homens não conseguiam resistir. Que nem feitiço.
Ela atrai os enfeitiçados pra dentro do mato e fazia amor com eles. No dia seguinte eles eram encontrados fracos, muitas vezes doentes e ardendo em febre. Aí nem adiantava levar pro doutor, tinha que ser reza de rezadeira com banho de cachaça para trazer o homem de volta.
Aí logo o pessoal ligou né, que essa visagem era o fantasma da galega fogosa, que nem mesmo morta deixava de ter suas paixões.
"A lenda da mulher cheirosa
Os habitantes desta ilha de Tijoca, que faz parte do arquipélago do Marajó, não sabem explicar até hoje qual o motivo da aparição da mulher cheirosa somente acontecer por ocasião das festividades do glorioso São Sebastião. O sincretismo popular não consegue uma relação lógica entre um espírito do mato, para sempre encantado e que faz parte do reino e da legião de espíritos encantados que estabeleceram sua morada no coração da floresta amazônica e o santo considerado defensor da igreja. Difícil de esclarecer o elo entre o mártir que serviu às ordens do imperador Carino e a entidade sobrenatural que os caboclos chamavam de mulher cheirosa. O guerreiro da Santa Madre Igreja, chefe da corte dos pretorianos, condenado a ser trespassado por flechas, segundo contava a velha Efigênia, para a audiência curiosa do povo inculto da Vila - que escutava com atenção a vida do santo protetor dos arqueiros e das confrarias de tiro ao alvo - parecia não possuir qualquer relação com a encantada. No velho barracão erguido no centro da vila em homenagem a São Sebastião, onde ficava a imagem do santo-guerreiro, a velha Efigênia contava a vida do padroeiro, nascido em Naborna, na Gália. Lugares distantes, que nem mesmo a velha Efigênia, pessoa de grande conhecimento e cultura sabia onde ficava. Efigênia sabia muita coisa. Efigênia sabia até ler e escrever. Aprendera com o padre Osvaldo Lourinho, que morreu de velhice. Nos últimos dias de sua existência terrena, o velho pastor passou a caducar, já não dizia coisa com coisa e vivia falando das belezas do céu, que ele enxergava em suas visões de velho caduco. Depois de ensinar Efigênia a ler, o padre lhe trazia livros com ilustrações, sobre a vida dos santos da igreja católica, que ela lia e contava para os habitantes da Vila. Era através da velha Efigênia que os moradores da vila tomavam conhecimento das coisas da capital. O padre trazia exemplares de "A Província do Pará", que falava das coisas da política, dos duelos terríveis entre os capangas do general Barata e os guaxebas do general Assunção, do primeiro clássico entre Remo e Paissandú, realizado no estádio Leônidas Castro, quando o futebol ainda não era atividade empresarial, das mangueiras que o intendente Antônio Lemos mandou plantar nas ruas principais de Belém, das roupas masculinas de linho bambo e dos chapéus de feltro que as mulheres usavam, porque era moda em Paris. Era um tempo ameno em que Belém era uma cidade pequena, quase um arruado de casas. As pessoas dormiam com portas e janelas abertas; o único ladrão que tinha no bairro era o "Bigorrilho", que furtava galinha nos quintais das casas. Não havia supermercado e todo mundo criava galinha no quintal para consumo próprio. Galinha, galo, frango, pinto e pato, dormiam empoleirados nas árvores dos quintais. Os quintais eram separados por cercas de estacas. Os xerimbabos eram presas fáceis para "Bigorrilho". Era um tempo de que hoje se tem saudades .Cadeiras de madeira eram colocadas na porta das casas e os vizinhos se reuniam às três horas da tarde para tomar café com pupunha e conversar. Os homens cerimoniosamente tiravam o chapéu de côco para cumprimentar as mulheres nas ruas e ninguém tinha vergonha de ser cavalheiro. Constatava-se esse procedimento nas notícias de "A Província do Pará", e na "Folha Vespertina" que a velha Efigênia lia, atropelando, às vezes a leitura, porque jornalista escrever ruim não é novidade de nosso tempo. Mas o povo matuto conseguia entender a comunicação e as notícias, porque o povo é sábio, mesmo não sendo letrado, como era Efigênia, que aprendera muitas lições com o padre Osvaldo. Naquele tempo havia apenas uma linha de trem que saía do Largo de São Brás, seguia pela avenida Tito Franco e ia até Marituba. Um exemplar do jornal "Folha Vespertina"- lido pela velha Efigênia para os ouvidos atentos daquele povo - falava do acidente ocorrido na linha do trem, em que três pessoas morreram esmagadas, debaixo da locomotiva movida a vapor. Era uma desgraça que a máquina a vapor trouxera, parecia o final dos tempos. O homem inventando máquinas para a sua própria destruição. Onde já se viu uma máquina correr em alta velocidade sem a tração de cavalos? Parece até carruagem de encantado. É o fim dos tempos, com certeza.
Depois de ler as notícias, que serviriam de comentários pelo povo matuto da Vila durante o resto da semana, Efigênia voltava a falar dos santos. A estória de São Sebastião, invocado como protetor contra as doenças contagiosas, era repetida dezenas de vezes. Depois de trespassado pelas setas dos soldados romanos, milagrosamente São Sebastião escapou da morte. Ele foi tratado - dizia a velha Efigênia - por uma viúva, que curou-lhe as feridas, sendo Sebastião restituído à saúde. Depois de se sentir curado, São Sebastião foi colocar-se na passagem do imperador Diocleciano, para lhe censurar a crueldade. Preso novamente, São Sebastião foi fustigado até à morte. A primeira vez que a velha Efigênia leu de carreirinha a estória de São Sebastião, ela chorou de emoção e devoção, levando a assistência às lágrimas também.
O bom padre Osvaldo conseguiu construir naquele povaréu uma devoção serena e sincera pelo santo flechado. As leituras da velha Efigênia eram interrompidas de quando em vez por uma ladainha e cantorias, que o povo entoava contrito. Sebastião era um nome muito comum na Vila. Assim como o apelido "Sabá", é claro. As parteiras aparavam três meninos, dois eram batizados com o nome do santo padroeiro da Vila.
A invocação do nome do santo servia de alento para todos os males. Do corpo e da alma. Quanta gente não ficou boa com a intervenção do santo. Quando o quinino não pode mais reverter o quadro terminal da malária, uma oração ao santo restabelece as forças do maleiteiro ou lhe dá uma passagem em paz. Muito menino acometido de sarampo e catapora foi salvo pela fé em São Sebastião, porque os pais depositaram Nele sua confiança, entregando o pequeno nas mãos da santidade. Centenas de índios da tribo araweté, próximo à Vila, foram mortos por um surto de catapora e sarampo. Dava pena ver os curumins morrendo feito formigas; índias grávidas acometidas da infecção morriam por falta de resistência imunológica contra a doença trazida pelos empregados da madeireira.
Tucano, beija-flor, onça, capivara, preguiça e temtem, juriti e maracajá. Mogno, andiroba, samaúma, bacuri e castanheira. A fauna e a flora destruídas pela ganância do lucro. A tribo dos índios araweté só existe na lembrança das covas abertas com enxadas. As doenças e a miscigenação se encarregaram de varrê-los como etnia. Depois que o cemitério índio não tinha mais lugar para enterrar araweté, que os espíritos da floresta resolveram interferir, levando o vírus malígno para o fundo do rio, aprisionando-o na fortaleza da iara. Salvando a taba do aniquilamento total pela doença, mas sendo impotente diante do avanço do contato das raças. Tupã, o deus araweté, tornou-se debilitado diante do machado, da cartucheira, do terçado rabo de galo, da faca cabo de tala, da maldade e da ganância. Ele preferiu esconder-se no que ainda existe de denso na floresta, de onde vela em espírito por seu povo. Com tantas desgraças prenunciadas sobre índios e os moradores de Tijoca, somente as divindades poderiam acudi-los. Talvez São Sebastião e Tupã unidos em um grande milagre, pudessem por a salvo aquelas populações nativas, de índios e de mestiços, seus descendentes, vítimas da miscigenação inexorável, das doenças da mata e dos rios, das enfermidades trazidas pelos trabalhadores da madeireira, penetrando na floresta através dos batelões e popopôs, intoduzidas no corpo da floresta por meio dos igarapés, furos, paranás: veias abertas para a devastação e a propagação de epidemias.
O velho Melquíades pescador, vendia arraia, cação, piramutaba, pratiqueira e gó no trapiche de Tijoca, quando a Vila era formada apenas por choupanas. Já havia algumas casas de enchimento e outras construídas com cimento armado, trazido de Belém, no barco de Dico Lobato, mas eram poucas. Ferrado por uma surucucu pico de jaca, Melquíades começou a inchar, os olhos eram duas postas de sangue, devido a hemorragia que o veneno da bicha provoca no organismo do cristão. Ele já estava quase cego. A mulher dele, dona Conceição Macumbeira, já tinha perdido as esperanças, quando Melquíades prometeu acompanhar a procissão de São Sebastião de joelhos. O santo ouviu o pedido e resolveu atender seu Melquíades. O velho pescador desinchou e teve a vista restaurada e ainda hoje consegue consertar a rede de pescar com a simples luz de uma lamparina. Não se podia conferir as pessoas sabidamente curadas pelo santo milagreiro. Eram muitas. Não fosse São Sebastião e a população inteirinha da Vila teria sido dizimada pelas endemias tropicais, pelas doenças adquiridas no convívio da mata, pela peçonha dos bichos da floresta de várzea e do igapó. A população desta Vila sempre viveu abandonada por tudo quanto é governo, que se estabelecia, naquela época, quando os políticos ainda tinham fama de responsáveis e de pai da nação. Faz muito tempo que o santo irradia seus milagres, portanto.
Quando chegava o mês de janeiro, que se aproximava o dia 20, data da festa do santo padroeiro da Vila, os rapazes solteiros do lugar ficavam preocupados. Outros não. Alguns diziam até que queriam se encontrar com a mulher cheirosa. Não tinham medo da senhora encantada. Era por esses dias que ela costumava aparecer. Foram muitos os rapazes mundiados pela entidade. Clarimundo, "Bené", "Nego Wilson", Carlos Xibiu, Alcindo Pena, Teófilo Moura, "Galego", "Zeca", Nadir Neves, "Sabazinho", Ranulfo, "Bita" e os gêmeos Abinel e Ariel, filhos da finada Madalena , só prá lembrar de alguns nomes. Todos eles entraram na relação dos que tiveram o azar (ou a sorte) de serem conduzidos pela mulher cheirosa para o seu leito de flores silvestres.
Na semana que antecedia a procissão de São Sebastião havia quermesse e a Vila passava uma semana de festa e de folguedos. Vilarejos e arruados situados ao redor da Vila de Tijoca reuniam-se na quermesse em homenagem ao santo. Barcos chegavam apinhados de gente das ilhas de Caviana, Mexiana e da ilha Grande de Gurupá, de Maracá-Açu, da Ilha do Balaio e de Santa Rita, de todo arquipélago Marajoara chegava gente para a festa. As mulheres da Vila preparavam comida e bebida para quem comparecesse. Dona Linda fazia todo ano vários potes de aluá, para embriagar o povo. Os homens bebiam aluá em canecas de barro. Ela passava dias torrando milho e arroz para fermentar com açúcar em aguidares de barro. Dona Linda fazia também aluá com casca de abacaxi fermentado durante vários dias. O caramburu, bebido durante as noites da festa, servia de fonte de alegria e entusiasmo para o povo durante os dias de quermesse. "Dinho", um preto de dezenove anos, "Sérgio Mortadela", Oscarino, "Pedrão", Osvaldo Machado, marido de dona Linda, "Ocivaldo Cotó" e o cabo Tenório, do destacamento de Tijoca, disputavam quem bebia mais caneca de aluá. "Sérgio Mortadela", durante uma madrugada da quermesse, bebeu setenta e três canecas de aluá, disputadas na "porrinha vira caneca". Por pouco não morre de coma alcoólica. Mas foi se recuperar do coma e voltar à bebedeira com a mesma turma, pingunça igual a ele. Tudo em homenagem ao santo guerreiro. Ao defensor da Santa Madre Igreja. A bebedeira era em louvor ao santo. Pecado era não tomar a sua talagada em reverência ao protetor da Vila, santo milagreiro, que se não fosse ele, Melquíades, "Quirino do Banjo", "Sérgio Mortadela", cabo Tenório e tantos outros, não estavam mais no mundo dos vivos, pois de uma ou de outra maneira o santo os salvou da morte certa. Todo morador da Vila ainda recorda, porque foi estampado em "A Província do Pará", lido por Efigênia, do dia em que o cabo Tenório, que na época não tinha patente, era um simples praça de pré, se deparou com um grupo de malfazejos foragidos da Colônia de Cotijuba, onde cumpriam pena por assassinato e outros crimes graves. O que menos culpa no cartório possuía, deu no pai e na mãe. Nessa época o cabo Tenório servia no destacamento de Ponta de Pedras, uma das várias ilhas do Marajó. Os bandidos se amotinaram dentro da barca que conduzia os criminosos para audiência com o juiz em Belém. Os bandoleiros prenderam o tenente Teodorico Rodrigues e jogaram o oficial na Baía do Guajará, juntamente com dez soldados. Eles foram salvos por um canoeiro que recolheu o tenente da PM e os praças da água da maré. Os presos rebelados tomaram as armas da escolta. O chefe do motim mandou algemar o cabo Tenório e atirá-lo dentro da Baía, com farda, coturno e até seu inseparável 38. O graduado da PM já se considerava perdido, quando rogou pelo santo. No fundo das águas barrentas da maré, o cabo lembrou do santo-padrinho e rogou por sua salvação. Tenório conta - para quem quiser ouvir, principalmente os incrédulos - que viu um vulto mergulhando em sua direção e retirou a algema que lhe impedia de nadar. Retirado das águas por pescadores, o PM saiu em perseguição ao bando, junto com os companheiros da caserna, recolhidos da água pelo canoeiro. Foi também o santo que guiou a bala do revólver do militar, quando durante cerrado tiroteio, ele conseguiu alvejar o bandido conhecido por "Cancão", chefe dos amotinados. Com a morte de "Cancão", os outros malandros se renderam. O que valeu ao militar o reconhecimento de seus superiores, sendo promovido à graduação de cabo por bravura. Ele foi chamado às pressas no palácio "Lauro Sodré", onde recebeu uma medalha, entregue pelo general Barata. Tudo por obra do santo - a salvação da morte certa e a promoção a um posto de comando. Ora, ele tinha todos os motivos do mundo para render graças ao padroeiro, varando a madrugada em seu louvor, sorvendo todos os goles da boa batida de maracujá aprontada por "Quirino do Banjo". Brincando com as moças do arruado, em alegre e inocente convivência. Não era carraspana, farra ou porridão, não. Quem pensava assim só podia ser herege, anátema ou inspirado pelo espírito do anti-cristo. Era a mais pura e lídima devoção pelo santo-mártir-eleito-de-Cristo para a proteção de toda a Vila de Tijoca. O cabo erguia a caneca de barro com a batida e era seguido por seus companheiros de devoção e de fé. Glória e aleluia ao nosso pai, dizia "Ocivaldo Cotó", com os olhos vermelhos, não se sabe se do efeito da batida ou se da emoção de poder, com fé, saldar seu padrinho celestial. Amém, balbuciava Alcindo Pena, outro contrito devoto de São Sebastião, com a voz embargada, de devoção e do efeito do aluá e da batida.
Enquanto dona Linda preparava os potes de barro com aluá, a negra Geni tinha por especialidade preparar maniçoba. Ela moía a maniva no pilão. Tudo que Geni colocava na maniçoba era produzido na Vila. Orelha, pé e tripa de porco, mocotó, jabá e bucho bovino. Ela fervia durante uma semana o panelão de barro na tacuruba, erguida no quintal, debaixo de uma mangueira. Um cheiro bom exalava da panela de barro da negra Geni, que entrava pela narina e dava água na boca.
Jurema também era famosa por seus cozidos. Era ela quem preparava o pato no tucupi para a quermesse. O jambú era tirado por Jorge no igapó, trazido em grandes paneiros de guarumã, para Jurema aferventar. Os patos eram criados no quintal com minhoca e babugem, a melhor forragem para essas aves. Jurema cozinhava de dez a quinze borrachos para a festa. O tucupi era preparado no tipiti pela mulata Eliete. Ela separava o tucupi da tapioca. Com a tapioca Eliete fazia beijú, servido com café para quem estava amanhecido, depois de passar a noite dançando carimbó e bebendo seus goles em devoção ao santo. Melquíades moqueava arraia e gó para tirar o gosto da batida, preparada com esmero por "Quirino do Banjo". Ele encomendava com antecedência várias frasqueiras de cachaça, no engenho de seu "Didi Machado", na Vila Boa União. O velho trazia no barco a motor e entregava diretamente para "Quirino do Banjo", recomendando que ele fizesse alguns litros de batida de araçá, a sua bebida preferida, alertando, com isso, de que viria com a família para a quermesse. "Quirino do Banjo" e o irmão dele, "Inácio da Flauta" levavam vários dias preparando as diversas marcas de batida. Taperebá, tucumã, goiaba, araçá, jucá, muruci, graviola, bacuri, uxí, abricó, maracujá e jenipapo. Dezenas de litros de licor e batida eram preparados com antecedência por Quirino e Inácio e colocados dentro de litros e garrafas de vidro com rolha de caranã, para os dias da festa, para as quermesses, para os convidados. E não era pouca gente que vinha.
O melhor dia da quermesse santa era no dia 19, véspera da procissão. Era nesse dia que o conjunto de carimbó e siriá de mestre Anacleto se apresentava. Cantava e tocava para o povo dançar. Constituído por doze músicos, o conjunto só parava o tempo suficiente para os músicos emborcarem um gole de batida e prosseguirem o batuque, porque a alegria exigida pelo santo não podia acabar. Faziam parte do conjunto de carimbó "Quirino do Banjo" e "Inácio da Flauta", filhos de mestre Anacleto, cujos apelidos foram dados em razão dos instrumentos que tocavam no conjunto do pai. Felipão, filho de Bartira e o moleque Salomão tocavam clarinete. Alírio Pinduca, Ponciano e Amiraldo tocavam saxofone. "Pitico", "Nego Tetê", "Nego Dinho" e o cego Romualdo eram os responsáveis pela percussão. Eram eles que esquentavam os atabaques, rufos, pandeiros e bumbos. Mestre Anacleto dirigia o conjunto, quase uma orquestra. Com uma varinha na mão mestre Anacleto coordenava o ritmo e indicava as músicas. Compositor de grande talento, mestre Anacleto não tocava música que não fosse de sua autoria ou de integrante de seu conjunto. O povo acompanhava as toadas batendo palmas e dançando. A mais famosa toada de carimbó, brotada da cabeça de mestre Anacleto era a "Tucandeira", que Juvenal ainda recorda a letra, tocada até na Rádio Marajoara, em Belém:
"São Benedito na ilha do seringueiro
Se deixou ferrar por uma tucandeira
Ai tucandeira, tucandeira, se deixou ferrar,
Por uma tucandeira.
Foi a iara que te levou para o fundo do rio
Onde mora a Tucandeira
Foi boto fêmea que te levou para o castelo
Onde mora a tucandeira
Ai tucandeira, tucandeira..."
Tijoca se enfeitava toda na véspera da procissão, porque era nesse dia que mestre Anacleto e seu conjunto de carimbó se apresentavam. No pátio amplo onde eram realizadas as quermesses, as mulheres enfeitavam as barracas de madeira com ramos de açaí e bacaba. Flores retiradas da várzea adornavam o barracão onde ficava a imagem do santo. Bandeirinhas de papel de seda eram pregadas com goma feita de tapioca em fios de algodão que cruzavam todo o terreiro, erguidos por varas tiradas na capoeira pelo nego Tetê. Presença certa no arrasta-pé a de Carlos Xibiu, neto de Didi Machado. Ele morava em uma vila de pescadores, próximo três léguas de Tijoca. Caboclo namorador, o avô lhe colocara a alcunha, precisamente pelo fato de possuir insaciável apetite pelo sexo oposto. Carlos Xibiu não podia ver rabo de saia, que a concupisciência lhe vinha à mente, o desejo de fornicar, de levar a cabrocha para a cabeceira do rio, para as sombras das seringueiras e samaumeiras, de mergulhar feito jijú nas águas límpidas do riacho, brincando com a mestiça em alegre folgar, prometer noivado e casamento, externar juras de amor eterno. Era assim o neto de Didi Machado, femeeiro como o boto, que surgia nas noites de lua em busca de companhia feminina e que engravidara quase a metade das mulheres de Tijoca. Pelo menos era o que as mães afirmavam durante as quermesses, para justificarem o bucho grande das filhas. --Foi boto com certeza, dizia convencido o povo da Ilha.
O neto do velho Didi Machado não faltaria à apresentação de mestre Anacleto. Todo o povo acorria para a grande festa, na véspera da procissão de São Sebastião. Todas as moças na idade do homem compareciam ao evento. De certo não faltaria moça bonita para dançar abaixadinha o "Carimbó do Macaco", o "Merengue do Tiriricacá", "Bala de Rifle", além de outras músicas de carimbó, composição de Alírio Pinduca, integrante do conjunto de mestre Anacleto. Carlos Xibiu também não faltaria. Ele comprou uma camisa nova feita pelo alfaiate Euclides, o único que costurava e serzia roupas na Vila. O dinheiro da venda da safra de milho naquele ano rendera o suficiente para o rapaz comprar um buião de vasilina com o qual lambuzou os cabelos e um frasco de patchuli para atrair as meninas, além do olho de boto, patuá inseparável, que Carlos Xibiu usava no bolso da calça de linho branco, benzido por pai Vicente, o que o tornava irresistível a qualquer fêmea. Um verdadeiro "Dom Juan de aldeia", como o acusou anos depois o promotor Paulo Godinho, quando Carlos Xibiu se viu processado no juízo da comarca, acusado do crime de sedução e rapto consensual, cometidos contra a filha de um endinheirado da cidade, que caiu na lábia doce de Xibiu. Bom de bico, o neto de Didi Machado. Como poderia ele faltar a um evento desse, com a presença de todo aquele mulherio carente de homem? Jamais. Carlos Xibiu esperou escurecer e pegou o caminho de Tijoca. A noite estava banhada pelo luar da Amazônia. Os raios argênteos da lua eram filtrados através das copas das árvores, clareando o caminho de chão, como se fosse um imenso farol. Era bom. Assim Carlos Xibiu chegaria com os sapatos vermelhos que mandara comprar pelo barqueiro Dico Lobato, no mercado do Ver-o-peso, em Belém, limpos. Com o luar era maneiro se esquivar das poças de lama do caminho, sempre encharcado pelas chuvas torrenciais de janeiro. No arquipélago Marajoara - como em toda a Amazônia - ocorre um fenômeno interessante: no verão chove todo dia e no inverno chove o dia todo.
A luz da lua brilhava sobre a face calma da água dos igarapés e furos que cortavam os caminhos. Xibiu estava feliz. De certo sairia com alguém da quermesse, dançaria o ritmo quente do carimbó, com uma mestiça, com uma cabocla de sua idade, sairia da festa direto para a cabeceira do rio, onde se ouve apenas o barulho das águas em sua passagem rápida sobre as pedras do riacho. Onde o piar das aves noturnas servem de alento para os ais de amor. Perdido em seus pensamentos, ensimesmado, Carlos Xibiu teve sua atenção despertada para um vulto na penumbra do luar. Era uma mulher formosa que o chamava manhosamente pelo nome. Acenava, sob o clarão da lua e das estrelas que riscam o céu de janeiro. Convidava-o para que ele a seguisse. O caboclo não pôde conter suas pernas. Elas não o obedeciam. Por mais que sua mente ordenasse que suas pernas parassem, que não seguissem mulher tão formosa, antes que ele pudesse ver seu rosto, tocar sua pele e, por fim, se certificasse de que não estava sendo vítima de mundiação, ele não conseguia. Seu cérebro detectou um perfume, doce, embriagador, que emanava daquele corpo jovem, bem perto dele, mas que Xibiu não conseguia tocar. Era um aroma de flores silvestres, uma mistura de fragrâncias. Como se ele tivesse penetrado em um jardim de orquídeas, bromélias, açacuí e flor-amarela. Uma mistura de fragrâncias exóticas penetrou pelos poros da pele, pelas narinas, até chegar ao cérebro do caboclo. Como se aquela mulher misteriosa, magicamente, tivesse destampado um frasco gigante de um aroma misto de flor de ipê, paineira, antúrio e brinco-de-princesa, campânula, flor de maracujá selvagem, mimosa e capucina e de outras flores que brotam no solo úmido da ilha, despertando uma primavera amazônica, embriagando o caboclo, diante de um luar mágico, nunca visto por Carlos Xibiu. Sem que ele ousasse fitar o rosto da mulher, ela o tomou pelas mãos e o conduziu além da orla da floresta, onde não havia mais capoeira nem mata virgem. Mundiação desgraçada. Carlos Xibiu viu a noite transformada em manhã pré-colombiana. Ele passou a caminhar, ao lado da mulher, descalço por dentro de um regato cristalino. Peixes com cores vivas acariciavam os pés da mulher, cuja fragrância, causava inveja às flores mais belas da terra. Orquídeas gigantes formavam um túnel de flores para que ela passasse, conduzindo o caboclo para o seu reino encantado. Depois de caminhar várias horas pelo regato, eles chegaram a uma caverna escondida no fundo da floresta. Não havia mais pássaros nem qualquer espécie animal. Archotes de pedra queimavam betume perenemente, sem qualquer sinal de combustão. Carlos Xibiu vislumbrou as paredes da caverna cobertos de desenhos geométricos, com formas triangulares e de cor vermelha sobre um fundo branco. Miracangüeras guardavam ossos ancestrais, de chefes de uma tribo que habitou há milhares de anos àquela floresta. A entidade, com voz de marulho, explicava para o caboclo, cada figura rupestre, cada alegoria, a história das tribos, nascidas do sêmen de tupã, quando ele habitava a terra, até quando teve que guerrear com anhanga. Atingido por uma seta envenenada com a saliva de sumiri, o gênio do mal, ele teve que refugiar-se no céu, de onde surge todas as manhãs, vestido de luz e calor, a fim de procurar seus guerreiros perdidos na imensidão da floresta.
A mulher permitiu que ele a fitasse e o matuto pôde admirar sua beleza índia. Olhos negros, cabelos lisos e brilhantes. Coberta com uma folha de guarumã, a encantada retirou-a, revelando suas formas de iara, de rainha das matas, de deusa dos rios e da floresta amazônica. Ela deitou o caboclo sobre a folha larga de guarumã, colocou-se ao seu lado e passou a narrar uma estória longa de quando seus antepassados viviam em paz sobre a terra. Carlos Xibiu adormeceu nos braços da iara, num descanço idílico, ouvindo sua voz de marulho e sentindo o perfume suave dos seus cabelos negros e lisos.
Ele não pôde ver o final da festa, a apresentação apoteótica do conjunto de mestre Anacleto, que varou a madrugada e somente parou porque era a hora de começar a procissão. Nesse tempo o padre Osvaldo Lourinho era vivo e conduzia seu rebanho pelas vielas da Vila. Alguns pagavam promessas feitas em momento de precisão. O povo ainda estava combalido de uma noite inteira de devoção ao som dos acordes de mestre Anacleto e do efeito das talagadas de bebida emborcadas alegremente. Mas não se pode faltar à procissão. Toda a Vila marchava contritamente sob a liderança de seu pastor e do próprio São Sebastião, seu protetor, que saía do barracão pelas mãos de Efigênia para subir em seu andor e guiar a fé daquele povo tão necessitado de graça e de proteção contra os males daquelas terras, abandonadas pelo governo e pelos políticos, onde somente um santo feito São Sebastião pode acudir e proteger. Muita gente notou a ausência de Carlos Xibiu à procissão. Zeca Lopes, "Ocivaldo Cotó", "Gringo", "Cabo Tenório", Osvaldo Machado e "Didi Machado", "Sérgio Mortadela" e o mulherio em geral, procuravam no meio do povo o rapaz, estranhamente desaparecido. "Diquinha", mãe de Xibiu, sabia que ele havia saída do arruado para a festa em Tijoca e por isso sua preocupação aumentava. O velho Didi Machado, que mais do que ninguém conhecia o neto, não se preocupou durante a última noite da quermesse. Ele imaginava que o neto estivesse mostrando o riacho para alguma mestiça da Ilha. Porém, quando o padre Osvaldo Lourinho, depois da procissão, consultou seu relógio de algibeira e já batiam três horas da tarde sem que se tivesse notícia do paradeiro de Carlos Xibiu, o velho se preocupou. Foi por ordem dele que um grupo de homens saiu em busca do rapaz desaparecido. Em todos os locais o grupo fez procuração do neto do velho Didi. Só faltava o mangal. Foi para lá que o grupo finalmente rumou. Por volta de cinco horas da tarde, "Zé Prego" avistou um homem deitado no tijuco do mangal, como se estivesse bêbado. Os homens se dirigiram para o local indicado por "Zé Prego". Com a espingarda na mão, "Zé Prego" se aproximou e constatou ser Carlos Xibiu. O rapaz parecia haver despertado de um sono profundo. Sua roupa de festa, em linho bambo estava impregnada de lama do mangal. O chapéu branco de palhinha emporcalhado e os sapatos vermelhos perderam a cor para o tijuco do mangue. Ele teve que ser conduzido pelos homens para o arruado, onde passou três dias sem comer, falando de um mundo distante, onírico, irreal. Pai Vicente, o mais antigo Puçanguara da Vila disse que Carlos Xibiu fora mundiado por uma entidade da floresta. Depois que tornou a si, Carlos Xibiu não fez mais qualquer referência ao fato de haver, sem qualquer explicação, se perdido na mata, que conhecia como a palma de sua mão. Ele mudou bastante depois da noite véspera da procissão de São Sebastião. Ninguém sabe qual a razão, mas na véspera da procissão do santo, Carlos Xibiu veste-se de branco e procura, à meia noite, a orla da floresta onde deposita flores silvestres colhidas no bosque, um frasco de patchuli, pentes, espelhos e adornos de mulher.
A procissão de São Sebastião tem se repetido há muitos anos em Tijoca. Muito tempo depois - mas muito tempo depois mesmo - passaram a chamar de círio e virou atração turística. Colocado no calendário turístico da Paratur, o evento passou a atrair turistas de todo o Brasil e até do exterior. Mas naquele tempo apenas o povo matuto de Tijoca e cercanias participava da festa. Na época em que a mulher cheirosa ainda aparecia para mundiar os rapazes e enciumar as moças. Agora, a lenda da mulher cheirosa vive apenas na memória dos velhos pescadores que a recontam aos seus netos, quando estão na faina diária de retirar puçá com peixe da cabeceira do rio, que anda meio vasqueiro, depois que as companhias de pesca tomaram conta do negócio. A mulher cheirosa virou lenda, estória passada de boca em boca. Uma estória da Amazônia, que habita o coração e a mente do povo que mora nesta imensidão, cada vez mais devastada pela ganância humana.
Pescador da barca bela,
Onde vais pescar com ela,
Que é tão bela,
Ó pescador?
Não vês que a última estrela
No céu nublado se vela?
Colhe a vela,
Ó pescador!
Deita o lanço com cautela,
Que a sereia canta bela...
Mas cautela,
Ó pescador!
Pescador da barca bela,
Inda é tempo, foge dela,
Foge dela,
Ó pescador!
Almeida Garrett". (http://amoergosum.blogs.sapo.pt/arquivo/137503.html)
"IARA, A MÃE-D´ÁGUA
Versão brasileira da lenda das sereias, Iara é a mãe d’água. Ela vive no Rio Amazonas e, nas noites de lua cheia, fica em cima das pedras, penteando seus longos cabelos para atrair os jovens com quem deseja casar".
(http://jornale.com.br/wicca/?p=3161)
(http://eltonhipolito.blogspot.com/)
(http://festadanatureza.musicblog.com.br/r8200/Lendas-Rituais-e-Figuras-Tipicas/)
"Cineasta Italiano retrata vida do Conde Stradelli na Amazônia em documentário
03 de agosto de 2006
Fonte: Portal Amazônia
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"...ele imaginava uma sociedade diferente, uma sociedade de convivência absoluta com as populações indígenas..." Por Nívia Rodrigues MANAUS - O cineasta Italiano Andrea Paladino e a produtora amazonense Astrid Lima, estão produzindo um documentário sobre o Conde Italiano Ermano Stradelli, o homem que colocou a primeira pedra para a construção do Teatro Amazonas. Em 2006, completa-se 80 anos da morte do conde. A convivência com os índios deu a ele as ferramentas para escrever um dos primeiros vocabulários Nheengatu, ainda hoje consultado pelos antropólogos e especialistas da cultura indígena. Em entrevista ao Portal Amazônia, Andrea Paladino fala sobre as razões que o levaram a produção do documentário, seu fascínio sobre a Amazônia e suas experiências na área. Confira a entrevista: Há 15 anos me ocupo de documentários. Venho de uma escola de documentários na Itália.Trabalhei no laboratório de Manolo Mir, para aprofundar a parte de documentários. No Brasil trabalhei em Manaus e em outros estados. Em 1993 participei do primeiro seminário de Vídeo Independente do Amazonas, promovido pela ABPV. Portal Amazônia:O senhor está no Amazonas para fazer um filme sobre Stradelli, o homem que colocou a pedra fundamental para a construção do Teatro Amazonas e que participou de várias expedições na Amazônia no início do século. De quem foi a idéia de fazer um filme sobre a vida dele e por que? Andrea Paladino:Nos anos passados estávamos aqui em Manaus produzindo dois documentários, um sobre água na cidade de Manaus, e um outro no interior sobre o imaginário amazônico. Já havia conhecido a figura de Stradelli, mas começamos a encontrar histórias, uma memória viva desse conde Italiano, que passou entre o final de 1800 começo de 1900, boa parte da vida dele aqui no Amazonas. Eu o considero mais Amazonense que Italiano, ele passou 27 anos na Itália e 43 anos no Amazonas. O que foi impressionante ver como ainda hoje, seja na cidade de Manaus ou no interior, nos lugares onde elepassou, existe uma memória viva dele, voce encontra lembranças, você encontra o mito Stradelli. E ao mesmo tempo você quase não encontra nada a nível acadêmico. Ele foi um pesquisador, um expert na língua Nhengatu, porque ele falava Nhengatu. Ele conseguiu, graças a sua capacidade de entender a língua geral, de entender ou viver a vida dos índios, conseguiu entrar nos indígenas, conseguiu entrar em profundidade no Amazonas da época. Portal Amazônia:Nestas lembranças que o senhor conseguiu resgatar o que mais chamou sua atenção? Andrea Paladino:Foi surpreendente ver como o que sobrara dele, era de um lado a memória, a mitologia dos índios do Alto Rio Negro, de outro lado a memória dele entre os últimos dos últimos, as pessoas que mais foram excluídas na época que eram os hansenianos. Então, Isso foi uma coisa que chamou muito a minha atenção, e começamos a fazer pesquisa sobre Ermano Stradelli. Começamos do lado italiano, ele publicou textos até 1900 mais ou menos, no boletim da Sociedade Geográfica Italiana. Levantamos as publicações na Itália, todo lado italiano mas também toda a obra dele, e encontramos uma personagem extraordinária. Uma personagem que conseguia encontrar e contar os curtos-circuitos culturais da época da borracha. Portal Amazônia:Ele viveu aqui todo o Ciclo da Borracha? Andrea Paladino:Ele chegou aqui no Amazonas em 1839. Estava começando a criar a sociedade Belle Époque manauara por meio da borracha. Ele morreu aqui quando a Época da Borracha estava terminando.A vida dele no Amazonas acompanhou o ciclo da borracha. O que ele conta da época, o que ele conseguia contar para a sociedade italiana, que estava interessada com a migração, com os colonos que chegavam aqui no Amazonas, é surpreendente. Ele não amava a borracha, ele não amava aquele mundo ligado a solda da borracha que caracterizava a época, ele imaginava uma sociedade diferente, uma sociedade de convivência absoluta com as populações indígenas e imaginava também uma migração da europa para o Amazonas muito mais consciente. Portal Amazônia:O senhor encontrou muitos documentos sobre essa época? Andrea Paladino:Encontramos uma carta maravilhosa, a última carta que ele escreveu para a sociedade geográfica italiana, em 1901, onde fala como ele imaginava essa migração, ele dizia " eu acho que os senhores podem ir para Amazônia, mas sem ir aumentar, implementar essa solda da borracha, mas criando formas de convivência forte, importantes com as populações indígenas". Ele dizia: qualquer pessoa pode ir para o Amazonas, mas é importante que ele saiba que ir lá significa conseguir se afirmar no Amazonas, Significa ter a capacidade de ser honesto, de ter caráter para se afirmar e de saber entender as culturas locais. Então, para mim o que interessou foi uma visão diferente de um homem, de um aristocrata da época sobre todo o processo de migração da Europa para Amazônia. Foi um episódio importante na história do mundo. Portal Amazônia:O senhor está fazendo pesquisas sobre a permanência de Stradelli na Amazônia? Existem novas conclusões? Andrea Paladino:Existem muitas novas conclusões. Não vou antecipar nada porque vai ser um dos focos do filme. Stradelli foi muito pouco pesquisado, seja na Itália ou aqui no Amazonas. Ele é conhecido pelo vocabulário português/Nhengatu/Português. Antes de escrever esse vocabulário, ele tinha escrito também um vocabulário italiano, Nhengatu/italiano, que infelizmente parece que se perdeu, mas se formos seguir a trajetória dele, se colocarmos a roupa dele, o boné dele, o chapéu dele, percorrer a vida dele na época, encontraremos coisas incríveis. Nosso documentário vai surpreender muito. Portal Amazônia:Qual o interesse da Itália neste projeto? Andrea Paladino:Do governo da Itália não diretamente, o documentário tem duas forças. Primeira foi o patrocínio da Sociedade Geográfica Italiana, um patrocínio importante, primeiro porque é um ponto de referência para a pesquisa geográfica na Itália. Segundo porque Stradelli colaborou em 1901 com a Sociedade Geográfica e depois cortou um pouco seu relacionamento. Então, acho fantástico que a Sociedade Geográfica Italiana volte a se interessar por Stradelli, volte a recuperar a figura de Stradelli. A segunda pedra fundamental nesse trabalho, é que estamos conseguindo juntar aqui no Brasil acadêmicos, antropólogos, linguistas, uma espécie de mutirão para recuperar a figura de Stradelli. Portal Amazônia:Como foi escrito o roteiro do filme? O texto será fiel a história de Stradelli ou terá um pouco de ficção? Andrea Paladino:O roteiro do filme tem um foco fundamental, tentar mostrar a Amazônia pelo olhar de Stradelli. Para fazer isso, que é um desafio muito interessante, é difícil, porque tem uma parte de reconstrução, mais que reconstrução, de dramatização de alguns momentos de Stradelli. A gente percebeu que não podia ser um documentário frio, científico, para contar a história de Stradelli. A gente percebeu que tem que ter momentos de empatia com o público, que voce consegue somente com a narração cinematográfica. Então, o roteiro foi construído partindo da bibliografia de Stradelli do Câmara Cascudo, biógrafo oficial de Stradelli, das cartas de Stradelli, da correspondência que ele mantinha com a sociedade geográfica italiana, documentos de arquivos, quer dizer, um levantamento de 360 graus. Mas foi fundamenteal também ter o contato com a Amazônia dele, que era Amazônia das populações indígenas, então o contato que ajuda que estamos recebendo por antropólogos, etnológos brasileiros, expert, acadêmicos, é fundamental. Outro contato é com a doença dele, com os hanseníanos que estão contando para nós muito do Conde. Na Itália, falando com último descendente de Stradelli, um conde também, que mora num castelo na Itália, ele contava que o avô dele que tinha recebido os objetos de Stradelli na Itália depois da morte dizia, "olha o Conde Stradelli nos deixou somente plumas". Portal Amazônia:Quer dizer que Stradelli morreu sem nenhum patrimônio? Andrea Paladino: Sim, Stradelli gastou todo o patrimônio para as explorações, para conhecer o Brasil, para aprender o Nhengatu, para poder escrever sobre as populações indígenas não somente do ponto de vista científico, como fizeram outros exploradores que passaram aqui pelo Amazonas, mas também para tentar entender a questão indígena na visão geral da Amazônia. Ele não separava os indíos do ciclo da borracha, ele não separava as populações indígenas da economia da Amazônia, ele separava os braços indígenas do contato com o branco, seja atravessador, seja coronel, seja estrangeiro. Ele tinha capacidade de ter uma visão orgânica da problemática indígena, e também depois tem o problema dos últimos anos da vida dele quando ele foi pro Mirizal, que era o Leprosário de Manaus, com o Mal de Hansen e que toda a sociedade manaura, na época toda a sociedade da Belle Époque o abandonou. Portal Amazônia:Como ele morreu? Andrea Paladino:Ele morreu absolutamente pobre, morreu só, terminando o grande trabalho dele. Então, entender também o que significa a exclusão, o abandono, devido uma doença como a lepra, o Mal de Hansen, que na época era uma doença que colocava a pessoa a um nível de pária da sociedade. Ele passou os últimos três anos no Mirizal nessas condições . O Mirizal, onde ficava os doentes de Mal Hansen, realmente significa uma metáfora da Amazônia dos excluídos. Era como se toda a riqueza da Belle Époque tivesse produzido um resíduo que precisava afastar dos olhos para não ver o que a sociedade também tinha produzido. Os resíduos da sociedade tinham quer ser afastados da cidade. Portal Amazônia:Falando na doença de Stradelli, os aspectos sobre a morte dele serão mostrados no filme? Andrea Paladino:Sem espetacularizar sim. O filme vai mostrar outro período da vida dele, a doença dele. Porque é um momento metafórico forte, simbólico de Stradelli. Também para respeitar a memória viva de Stradelli. Nos últimos anos da vida dele era conhecido como Conde dos leprosos. Ele tinha um anel que era considerado pela comunidade dos leprosos de Manaus, o anel do conde dos leprosos. Isso é uma lembrança que ficou também na família dele, na Itália. Ele quis ser sepultado aqui, ele quis morrer como amazonense e quis morrer como os últimos dos amazonenses. Então é fundamental essa última parte da vida dele. Portal Amazônia:Os atores que vão participar das filmagens são todos brasileiros ou haverá atores italianos? Andrea Paladino:Todos brasileiros. Portal Amazônia:Stradelli muito contribuiu para a cultura brasileira. Ele chegou a escrever os primeiros vocabulários em Nhengatu. O senhor acha que o filme vai contribuir para o resgate da memória do pesquisador? Andrea Paladino:Sim, claro. Ele escreveu um vocabulário Portugues/Nhengatu que era uma tradução simples das palavras. Uma Enciclopédia amazônica, onde por cada palavra ele encontra associação social, psicológica e cultural daquela palavra nas populações indígenas. Então, uma obra fundamental para História da Amazônia que vai ter um grande espaço no documentário. Portal Amazônia:Qual sua opinião sobre Amazônia como cenário para o cinema? Andrea Paladino:Amazônia é fantástica. Voce pode ter o cenário amazônico como um cartão postal que lustra, onde tem o exótico que é o mesmo exótico da época da Belle Époque que era um cartão postal. Mas era uma Amazônia falsa, eu vivi dois anos aqui, então pouco conheço essa terra, que inclusive amo muito. Stradelli, por exemplo, aqui na Amazônia aprendeu a ser homem, porque Amazônia não é só a natureza, Amazônia é um lugar no mundo onde se cruzam, de um jeito belíssimo, culturas completamente diferentes. Cultura indígena forte, cultura nordestina, a cultura da migração italiana, portuguesa alemã, judaica, sírio-libanesa, tudo isso cria um cenário emotivo de histórias extraordinário. Eu acho que o cenário amazônico não é o papel de fundo que se coloca atrás como um cartão postal, o cenário amazônico é a vida das pessoas da Amazônia, são as histórias da Amazônia, digamos assim, o se encontrar, o cruzar de culturas diferentes. Isso que é belíssimo, isso que é maravilhoso contar para um documentarista. O grande desafio é um cenário magnífico nesse ponto de vista. Portal Amazônia:O senhor conhece o Festival de Cinema do Amazonas? Andrea Paladino:Muito pouco. Infelizmente, no exterior, no circuito de festivais ainda não é muito conhecido. Acho que Manaus, Amazônia, deveria investir muito na parte de produção de documentários, de filmes, valorizando muito as pessoas que trabalham aqui, as pessoas de Manaus, do Amazonas, que tem muitas histórias para contar e muitas dificuldades para conseguir encontrar essas histórias. Por exemplo, em 93 quando eu coordenei esse evento de Seminário sobre a Produção de Documentários no Amazonas, encontrei obras magníficas. Para mim, italiano, umas das obras que eu sempre cito como referência é o mártir doloroso de Roberto Evangelista, uma obra dos anos 70, que eu acho que a maioria das pessoas de Manaus ainda não conhece. Ele consegui contar a Amazônia com imagens magníficas. Então, eu acho que o Festival de Cinema de Manaus, deveria ser internacional, se abrir para a visão mundial, mas eu acho que deveria se abrir muito mais para a produção brasileira e amazonense. Portal Amazônia:O senhor tem outros documentário relacionados à Amazônia? Andrea Paladino:Dois documentários que foram produzidos ano passado. Um documentário se chama "O Invisível", é sobre o problema de água na cidade de Manaus, Manaus como moderna e a privatização da água. Um paradoxo, um lugar onde tem tanta água e tem muitas pessoas sem água, então esse documentário foi selecionado nesses dias pelo Festival de Direitos Humanos da Argentina que é o único Festival Internacional da América Latina que entrou no circuito internacional dos festivais de direitos humanos e que vai acontecer em outubro, e outra obra recente, é "A Ilha dos Contrários", é sobre o Festival de Parintins, mas não é o Boi, no sentido, é sobre o imaginário amazonense que vem atrás do Boi, é o contrário paradoxo, contar as contradições, aquela vida que ferve atrás do Boi e que é o imaginário amazonense. Vídeo Veja entrevista com o cineasta Italiano Andrea Paladino, clique aqui. NR". (http://portalamazonia.globo.com/pscript/noticias/noticias.php?pag=old&idN=39548)
VISITE
http://www.ermannostradelli.com/,
sobre o documentário
ERMANNO STRADELLI, IL FIGLIO DEL SERPENTE INCANTATO (Ermano Stradelli, o filho da cobra grande)
E LEIA A OBRA CUJA RESENHA A SEGUIR ESTÁ TRANSCRITA!
Coluna "Recontando..."
"Segredos da Amazônia revelados pelo antropólogo Ermanno Stradelli
- Em: Livros
Sexta-feira
31.07.2009
Ermano Stradelli foi um desses aristocratas europeus que, inspirados por Humboldt, se deixaram fascinar pela natureza tropical.
Eles viajaram pela Amazônia como se buscassem saciar toda a sede de conhecimento e aventura.
Filho de conde italiano, Stradelli partiu aos 27 anos para fotografar os índios.
O equipamento se perdeu num naufrágio, mas ele encontrou seu futuro: o idioma nheengatu foi a abertura para muitos anos de expedição a rios e povoados, entre malárias e maravilhas.
Este livro é sua preciosa contribuição como antropólogo - um apurado coletor de lendas, artefatos, costumes e a geografia do rio Negro, do Uaupés e do alto Orenoco, com um Eldorado de detalhes descritivos.
Os relatos e diários nos fazem conhecer mais a Amazônia, lembrando que ela ainda é bem maior do que nosso conhecimento.
(Daniel Piza, editor-executivo e colunista de O Estado de São Paulo, refez a trajetória de Euclides da Cunha na Amazônia que o levou aos mesmos lugares por que passou o conde Stradelli na década de 1880.)
Sobre o Autor:
O que faz um jovem aristocrata, nascido num castelo de condes de uma antiga província da Itália, de família antiga e nobre, abandonar suas riquezas, seus estudos, seus amigos, seu trabalho promissor e se aventurar na selva amazônica, entre índios, percorrer seus rios e terras, e dedicar 43 anos de sua vida a essa exploração?
Lendas e notas de viagem - A Amazônia de Ermanno Stradelli traz os relatos de viagem e as lendas amazônicas que o conde Stradelli enviou à Real Sociedade Geográfica Italiana à época, reproduzidos aqui com grande vivacidade.
Ermanno Stradelli (1852-1926) nasceu em Parma, iniciou o curso de Direito em Pisa, onde se preparou para ser explorador.
Em meados de 1879, desembarcou em Manaus, onde remontou alguns rios e percorreu o Amazonas. Em 1884, voltou à Itália, mas logo retornou à América do Sul para descobrir a nascente do Orenoco, iniciando sua jornada exploratória na Venezuela.
Reuniu as lendas coletadas em nheengatu, que constituem “A lenda do Jurupari”. Seu notável Vocabulário português-nheengatu e nheengatu-português só sairia em 1929, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, três anos após sua morte.
LENDAS E NOTAS DE VIAGEM - A AMAZONIA DE ERMANNO STRADELLI
Autor: Ermanno Stradelli
ISBN: 9788599102541
Preço: R$ 59,80
Páginas: 400 pp.
Fonte: Martins Editora".