Será o fim do livreiro?

[Afonso Borges]

O mundo editorial, definitivamente, está passando por um momento delicado. Palavras novas como ebooks, eriders, itouchs, ipads, notes e laptops estão deixando todos de cabeça virada. Mas ninguém, de verdade, esperava esta notícia: as grandes redes de livrarias estão comercializando espaços em seu interior. É o seguinte, amigos leitores desavisados - quando vocês virem aquelas grandes pilhas de livros nas megastores, saibam que aquele espaço é vendido como se fosse um anúncio de revista. Os livros não estão ali por gosto ou indicação da livraria e sim porque alguém pagou para estarem naquela posição. E, na maioria das vezes, na vitrine, ou em destaque nas gôndolas. Cada centímetro tem um preço.

Quebra-se aí, de cara, uma relação tão antiga quanto a invenção da livraria: a credibilidade da curadoria do livreiro. O bom e respeitável livreiro coloca na frente da sua casa ou na banca principal o mais vendido, sim. Mas coloca também o livro que ele gostou. O livro que ele considera de mais relevante, o que ele recomenda. Esta relação de confiança formou gerações de bons leitores e apreciadores do ambiente agradável e instigante de uma livraria. A lenda do bom livreiro que sabe se o livro vai vender passando as páginas rapidamente e cheirando aquele ventinho vale até hoje. Afinal, quem é que garante, mesmo, que um livro vai ou não vai vender? A indústria editorial está recheada de grandes promessas e imensos fracassos.

Há que se fazer um parênteses para as heróicas livrarias pequenas e médias. Aquelas poucas que ainda restam neste país de megastores. Ali ainda se encontra o vendedor autêntico, que antes de indicar passa os olhos ou lê, de verdade, um livro inteiro. Ainda se encontra os bons livros, em destaque. Aquela livraria que você entra e sabe que do lado esquerdo, na terceira prateleira de baixo para cima, está lá, há anos, a obra completa de Fernando Pessoa. E nas prateleiras seguintes, poesia. Poesia, esta raridade absoluta nas grandes livrarias brasileiras. Neste quesito, difícil de superar a Simone, da Livraria Ouvidor, em BH. Ela simplesmente sabe tudo. E em pleno século XXI, quando a neurociência prova que a velha arte de Walt Withman faz o cérebro trabalhar a velocidade de fórmula um durante a leitura de um poema. Por que será?

E no alto da cadeia alimentar, as editoras também contribuem de forma anacrônica. Estarão reinventando a roda? Ou esperando a onda voltar? Aquela onda que quando volta deixa um terreno arrasado? Vejam, as editoras estão investindo valores significativos neste marketing. Mas só investem, claro, nos livros que podem dar retorno comercial, que são os best-sellers internacionais. E, neste ponto uma curiosidade: nem sempre as editoras investem em peças publicitárias e promocionais por causa do retorno comercial em si. Hoje, elas investem porque são obrigadas - porque assinaram contratos internacionais com cláusulas draconianas, que exigem um determinado volume de recursos nesta área.

Esta iniciativa vem sendo chamada de “supermercadização” do livro. Este termo bizarro, curiosamente, não tem sinônimo em outros áreas da economia. Foi cunhado pela primeira vez quando a Editora Record comprou uma das mais tradicionais casas brasileiras, a Paz e Terra, dona de um catálogo invejável pela qualidade. Na época, o ex-dono Marcus Gasparian, filho de uma lenda do mundo dos livros, Fernando Gasparian. A Paz e Terra é conhecida pelas edições em ciências sociais e humanas e seu catálogo inclui 1.200 títulos de 500 autores, entre eles, Paulo Freire, Norberto Bobbio, Eric Hobsbawn, Kenneth Maxell e Celso Furtado. Em entrevista, Gasparian declarou que “não conseguia fazer seus livros serem vistos pelos leitores”.
Aí vem as perguntas. Como ficarão os autores de ficção brasileira? Vai rolar a conversa do gato correndo atrás próprio rabo? Ou seja, não se investe em ficção brasileira porque não vende, e vice-versa? EU DUVIDO, mas duvido com força que se as editoras fizerem este monumental esforço de marketing em cima dos bons escritores brasileiros, esta história não muda. Muda sim. E teríamos, aqui, grandes vendedores, best-sellers nacionais que, além de tudo, podem rodar o país falando para os seus leitores. Fazendo um outro papel, tão importante quanto os demais, que é incentivar o hábito da leitura.

E outra pergunta: é fato que o Brasil tem pouquíssimas livrarias. Falo daquelas de verdade, que só vendem livros. Hoje as megastores, principalmente, uma de origem francesa, tem no livro um objeto de decoração (de muito mau gosto, por sinal). E é neste ponto que o mais grave transparece: como fica a questão espaço físico? Se elas estão vendendo estes espaços, onde ficarão os livros das editoras que não tem grana para comprar o anúncio, digo, gôndula? Francamente, do jeito que as coisas vão, daqui a pouco, para estas editoras exporem seus livros terão que pagar. E de uma certa forma, já pagam. Como? Simples: uma tal rede só aceita tal livro de tal editora se o desconto aumentar. É matemática perversa, pura: hoje, o normal é a livraria ficar com 30, 35%. Para pegar o livro, eles pedem 40, 50%. Entenderam? E aí acontece o obscurantismo: eles recebem o livro, em consignação, na maioria das vezes, e os colocam aonde? Na prateleira no canto, em pé, no meio de mais de uma centena de outras publicações, que vem da mesma origem. E você só vê a banda do livro. Alguns escritores chamam de “o cemitério do livro".

E aí vamos para o resultado final: recentemente, a lista dos 20 (e não 10) mais vendidos em ficção do ano tinha só um brasileiro: o bravo, bravíssimo Luis Fernando Veríssimo. Mas não é um romance. Aí entra a outra pergunta: não estariam as editoras e as grandes redes armando uma armadilha contra si próprios? Ao impor, visualmente, ao consumidor, a compra dos bestsellers não estariam acabando com o bom gosto? Ou pelo menos, baixando o nível da leitura, consideravelmente? Como fica, de verdade, aos olhos do bom leitor, a questão da qualidade? Em outro sentido, os leitores que gostam de bons livros, livros de qualidade, vão acabar fugindo destas megastores e procurando outras fontes de informação e consumo. Porque o mercado é dinâmico e não os modismos passam.

No mundo do negócio, a livraria convencional não existe. As contas não fecham. Piadas à parte, o que fecha, mesmo, é a própria livraria, que deveria ser incluída na pauta da ONU, como patrimônios culturais da humanidade, objeto de extinção. Com a experiência de quem já teve uma delas durante dez anos pergunto: a empresa recebe um produto com uma margem 35% de desconto; 5% vai para a operadora de cartão de crédito; entre 18 e 23%, impostos. É um produto que não vende em escala, ou seja, o comprador leva um ou dois, no máximo. Resultado: prejuízo na certa. Estou cansado de arrasar amigos que dizem acalentar o sonho de ter uma livraria. Faço as contas e peço a eles para se sentarem, meditar e, com paz e calma, esperar a vontade passar. A solução passa a ser a da vez: a livraria tem que se transformar em papelaria, loja de CDs e outros espantos. Comprei, uma vez, em uma delas, o mais lindo isqueiro que já vi. Guardo com carinho, na gaveta de objetos inúteis. 
Qual seria a solução, afinal? Em primeiro lugar, estímulo ao negócio. Mas estímulo diferenciado, via BNDES e outras fontes de financiamento. Quem quiser abrir uma livraria terá isenção de impostos, empréstimos facilitados e outras benesses fiscais. Mas tem que comprovar que ali apenas livros serão vendidos. Imóveis, carrocerias usadas de caminhão e gravatas escocesas não serão permitidas. Vou além, e repito: caso isso não aconteça, a livraria convencional não vai mas existir no Brasil. Aliás, existe?

Em outra medida, investimento sério e concentrado no autor nacional. Reserva de mercado? Não: inteligência estratégica, com os olhos focados no futuro, ou seja, o autor de ficção brasileiro pode pegar um avião e ir até Araxá, interior de Minas, conversar com o um público ávido de conhecimento e informação. O escritor brasileiro é a salvação da lavoura. Anotem, façam as contas. Mas esta iniciativa deve ser conjunta das editoras e órgãos governamentais de Cultura e Educação.

E não preciso inventar a roda: festivais, feiras, rodas, projetos, programas, uma onda literária que, na verdade, já começou. Vejam os números da Secretaria do Livro e Leitura do Ministério da Cultura: cresceram, por milagre e dedicação de tantos. Por falar nisso, uma informação espantosa: a apenas 3 anos, a Lei Rouanet foi modificada, via Instrução Normativa, permitindo que estes eventos sejam enquadrados no Artigo 18, ou seja, o patrocinador pode deduzir 100% do valor investido. Ou seja, desde que foi criada, há 25 anos, quem quisesse patrocinar eventos literários, mesmo que com entrada franca, tinha que desembolsar 30% do valor em recursos próprios, se igualando a eventos como os lucrativos espetáculos musicais. Curioso, não?

O escritor brasileiro é a bola vez. Os grandes eventos de literatura estão aí aos montes, crescendo e disputando o autor nacional a tapa e pedra. Pena que parte gigantesca do Governo não vê isso. E lamentavelmente, ainda, como as megastores, vendem espaços na gôndula, ao invés de se concentrar no principal: a nossa inteligência, a nossa formação, o nosso bom gosto. Como o futuro é hoje, nestes tempos velozes, vamos ver no que dá isso. Depois de amanhã.