SEIS POETAS CONTEMPORÂNEOS: MEMÓRIA E TRADIÇÃO
Por Rosidelma Fraga Em: 23/11/2011, às 23H41
Por Rosidelma Fraga – Novembro: 2011
Nenhum poeta tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas mortos. (T. S. ELIOT).
Nestas breves páginas dedicarei meu o olhar a seis poetas brasileiros contemporâneos, tendo como foco as diversas tradições literárias revisitadas. Dentre a multiplicidade de vozes e estilos da poesia que não se limita a uma estética unívoca, assevero que ela pode ser perfilhada por um construto de retorno ao passado, anacronismo, memorialismo, intertextualidade e outros recortes de exegeses que nem sempre agradam a todos os poetas. Para o corpus analítico-crítico, tratarei de poemas, cuja seleção se deu por gosto pessoal, embora a preferência pessoal não seja elegante e muito aceitável nas universidades, é claro. Pela razão já aludida e além da qualidade estética das obras, fico com os poetas que serão apresentados na seguinte ordem: Murilo Mendes (o poeta de 1970 e não o de 1930), Antonio Cicero, Ivan Junqueira, Antônio Carlos Secchin, Manoel de Barros e Hardi Filho. Limitarei a minha leitura aos seis poetas para não cair na exaustão.
No ensaio “Caminhos recentes da poesia brasileira", da obra Poesia e desordem (1996), o crítico Antônio Carlos Secchin aponta que seria impossível considerar a poesia após 60, sem levar em consideração Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Manuel Bandeira e Cassiano Ricardo. Melhor dizendo:
Seria falha uma avaliação da poesia brasileira a partir de 1960 que não levasse em conta obras como Lição de coisas (1962), de Carlos Drummond de Andrade, Estrela da tarde (1963), de Manuel Bandeira, Jeremias sem chorar, de Cassiano Ricardo, A educação pela pedra (1966), de João Cabral de Melo Neto, Convergência (1970), de Murilo Mendes (SECCHIN, 1996, p.104).
Os poetas marcaram a tradição da poesia no Brasil, fundaram uma linguagem e, pensando na relação entre tradição e talento individual, diria que a ruptura com o passado não se efetivou de fato. O modernismo acabou, porém a moderno se desdobra aos poetas da atualidade que se distinguem pela multiplicidade de vozes e expressões. Há uma retomada que marca a literatura de hoje, pois na perspectiva eliotiana: “as passagens individuais da obra poética podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade” e, por excelência, “o passado orienta o presente e o presente modifica o passado” (ELIOT, 1989, p. 38-40).
Inclusive Drummond bebeu na fonte do passado ao poetizar a máquina do mundo. Silviano Santiago mostra bem essa releitura, no texto “A permanência do discurso da tradição no Modernismo” (1989):
[...] um poeta feito como Carlos Drummond, o poeta do tempo presente, da vida presente, dos homens presentes – estará fazendo em 1949, um remake do tema clássico da máquina do mundo. O canto nono de Os Lusíadas trata da máquina do mundo e Vasco da Gama, e Drummond dele faz o que talvez seja o primeiro remake do modernismo. (SANTIAGO, 1989, p. 97).
Em tal ensaio, Santiago assevera que há um aspecto sintomático da tradição recorrente do moderno e do modernismo. A rigor, verifico que a poesia contemporânea continua com o moderno no que tange ao diálogo, pois, em qualquer tempo, o poeta não se desvencilhará da historicidade do poema enquanto leitura, quiçá num plano inconsciente. Depois do modernismo, a impressão que se tem é que a poesia se multiplicou e se mesclou em diversas vozes e formas, a ponto de parecer não ter mais novidade. Posso traduzir tal sensação com trechos do poema “Crepuscular”, da obra Tarde (2007), de Paulo Henriques Brito que, por sua vez, exprime a exaustão do poeta frente à novidade tardia que enfoquei antes:
Crepuscular
Chegamos tarde, é claro. Como todos.
Chegamos tarde, e nosso tempo é pouco,
o tempo exato de dizer: é tarde.
Todas as sílabas imagináveis
soaram. Nada ficou por cantar,
nem mesmo o não-ter-mais-o-que-cantar,
o não-poder-cantar, já tão cantado
que se estiolou no infinito banal
de espelhos frente a frente a refletir-se,
restando da palavra só o resumo
da pálida intenção, indisfarçada,
de não dizer, dizendo, coisa alguma.
(BRITO, 2007, p.84).
Saliento que a linha intertextual com o passado na poesia contemporânea se insere no panorama de interpretação e não no sentido de paródia. Na perspectiva do crítico Benedito Nunes, em A clave do poético (2009), a releitura é um novo modo de “enfolhamento das tradições”. Em outras palavras, a poesia estabelece convergências com poetas em tempos diferentes, conforme defendi na introdução. Negar o passado já não é o propósito dos poetas. Um exemplo marcante é o livro Convergências (1970), de Murilo Mendes. João Cabral de Melo Neto, nas qualidades oníricas e surrealistas de sua poesia inaugural em Pedra do sono apreendeu a criação muriliana. 40 anos depois, Murilo Mendes admite o aprendizado e a recepção da linguagem cabralina:
4
Inserido numa paisagem quadrilinue
Tento operar com violência
Essa coluna vertebral, a linguagem.
Esquadrinho nas palavras
Meu espaço e meu tempo justapostos.
E dobro-me ao fascínio dos fatos.
Perdoai-me
Valéry
Drummond.
Mas Joaocabralizei-me.
(MENDES, 1970).
É certo que, na tentativa de disseminar o novo, os poetas precisariam romper com o passado. No entanto, o passado insurge para reafirmar o próprio contemporâneo como lemos em Os filhos do barro (1984), de Octavio Paz:
[...] o passado é um tempo que reaparece e que nos espera no final de cada ciclo. O passado é uma idade vindoura. Dessa forma, o futuro nos oferece uma dupla imagem: é o fim dos tempos e o seu recomeço, é a degradação do passado arquétipo e é a sua ressurreição. O fim do ciclo é a restauração do passado original (PAZ, 1984, p. 28-9).
Nem todo poeta aceita auferir a herança de seus predecessores, mas é impossível negar a poesia do passado na memória do leitor. O estilo é cunhado pelo criador, mas a sua linguagem brota-se na raiz sacramentada da palavra como discurso do verbo intertextual. Doa a quem doer. O leitor dirá que o poema e sua linguagem estarão no livro para assegurar e comprovar isso. Ler Bagagem (1976), de Adélia Prado é encontrar também Carlos Drummond de Andrade revisitado e significa beber a linguagem das Sagradas Escrituras. João Alexandre Barbosa defende que no âmbito da releitura, poeta e leitor realizam jogos: “parceiros de um mesmo jogo, poeta e leitor aproximam-se ou afastam-se conforme o grau de absorção da/na linguagem” (BARBOSA, 1986, p.14). Não quero dizer que falta originalidade nos poemas que dialogam com outros poemas. Cada poeta celebra temas consagrados como se fossem escritos em instante único. Posso explicar melhor isso citando as palavras do poeta Antonio Cicero, em entrevista sobre A cidade e os livros:
E por que não poderia um poeta fazer excelente poesia ao falar de algo de que muitos outros poetas já tenham falado? Então Goethe não deveria ter escrito a sua obra-prima porque há houvera, antes dele, não sei quantos Faustos? E como ousou Thomas Mann, depois de Goethe, ainda escrever o seu Doktor Faustus? Jamais um grande poeta temeu abordar um tema poético (Fausto, Ulisses, Orfeu, Narciso, a brevidade da vida, a juventude, a velhice, o sol, a noite, o amor, a saudade, a beleza etc). Ele o aborda e é capaz de fazê-lo como se ninguém antes o tivesse feito (ANTONIO CICERO).
É no mesmo sentido de que fala o carioca Antonio Cicero que vejo um poema intertextual. Não se trata de jogar exatamente o mesmo jogo com a mesma bola em disputa por apropriação, mas de representações discursivas que, em suas convergências/divergências, cantam a universalidade daquela obra, fazendo da subsequente também universal. Dentro da linha anacrônica (no sentido atemporal) situa-se a poesia de Cicero. Em sua obra A cidade e os livros (2002), o poeta abre o espaço da dicção permeada entre o eu o outro em que a subjetividade individual fica quase que em segundo plano:
O grito
Estou acorrentado a este penhasco
logo eu que roubei o fogo dos céus.
Há muito tempo sei que este penhasco
não existe, como tampouco há um deus
a me punir, mas sigo acorrentado.
Aguardam-me amplos caminhos no mar
e urbes formigantes a engendrar
cruzamentos febris e inopinados.
Artur diz “claro” e recomenda um amigo
que parcela pacotes de excursões.
Abutres devoram-me as decisões
e uma ponta do fígado mas digo:
E daí? Dia desses com um só grito
Eu estraçalho todos os grilhões.
(CÍCERO, 2002).
Grito, grilhões, penhascos, fogo e deus são substantivos que se unem à angústia de um eu que se entrega à leitura de Prometeu acorrentado, em estilo sui generis. Entre o fogo dos céus e a inexistência do castigo, o sujeito lírico aparece em meio aos Abutres e a cidade. O lirismo descortina-se na relação entre o eu e o mundo, entre o indivíduo e o espaço. Daí a subjetividade individual vai se perdendo no espaço poético e a unidade interior parece fragmentada como um Dionísio esfacelado, tomando emprestado o título do acadêmico Domício Proença Filho, obra que muito aprecio.
Numa retomada ao processo mítico e camoniano é o poema “Inês: o nome”, da obra A rainha arcaica (1980), do poeta e acadêmico Ivan Junqueira:
Inês – o nome
É mais ainda: tálamo do espírito,
dessa alquimia de morrer em vida
e retomar na antítese do epílogo.
E quem disser que Inês é apenas mito
_ mente. E faz dela inútil pergaminho.
E da poesia um animal sem vísceras.
(JUNQUEIRA, 1980, p. 114).
A memória do passado camoniano é revisitada pela dicção lírica na composição de versos breves e metafóricos, traduzindo a verdade do mito na poesia e na história. Inês não figura somente o pergaminho e o enredo camoniano. Ela é a verdade da poesia para Ivan Junqueira. O poeta joga com o leitor na decifração da linguagem clássica. É fabulosa a imagem de Inês ressurgida no jogo opostos e justapostos: espírito/vida/morte. Poesia, história e verdade são colocadas em agudas reflexões no pequeno/grande poema de Ivan Junqueira. Dentro da inserção camoniana, o poeta brasileiro oferece ao leitor o passado e o presente em tempo real e válido em seu universo poético, pois a poesia de Junqueira e as palavras de Manoel de Barros estão grafadas no pergaminho para provar que noventa por cento do que os poetas escrevem são invenções, mas “só a poesia é verdadeira”.
Apesar de o crítico Antônio Carlos Secchin não se filiar a uma linha de literatura comparada, vejo que em sua lírica há alguns arranjos verbais de retomada ao passado e releituras. É bem verdade que a sua criação poética tem a singularidade na revisitação camoniana. No poema “Sete anos de pastor”, de Ária de estação (1973), o poeta degusta a história de amor entre Jacó e Raquel, ao associar à memória do texto bíblico e do clássico Camões. A singularidade do poeta moderno e contemporâneo está no plano da ressignificação da linguagem, instaurando o que Barbosa chamou de “ilusões da ubiquidade”. Na tessitura dos textos bíblicos, petrarquiano e camoniano, o poeta contemporâneo celebra e impõe a imagem da mulher que de genuína se transforma em amante e musa sedutora e Jacó que a pretendia nem mais existe, foi distanciado no novo poema:
Sete anos de pastor
(a Ângela Beatriz de Carvalho Faria)
Penetro Lia, mas Raquel é quem me move,
e faz meu corpo desatar toda alegria.
Se tenho Lia, minha pele não navega
Nada além de nada em névoa fria.
Sete anos galopando em Lia e tédio,
sete anos condenado ao gozo escuro.
Raquel me tenta, se me beija Lia
Minha boca é não, e minha mão é muro.
Labão, o puto, perdoai-me nesse instante,
adoro a dor que doer em minha amante,
Vou cravar-lhe um punhal exausto e certo,
doar seu sangue ao livro e à ventania.
Quieta Lia será terra em que os cavalos
vão pastar, sob a serra e o deus do dia.
(SECHHIN, 1973).
Aponto a linha memorialística de Secchin, neste poema, como uma desconstrução da imagem sacramentada de Raquel, distanciando-se do passado ao edificar uma nova imagem no presente, cuja tônica seria ruptura, negação e afirmação. Raquel doravante é a figura sensual, a que provoca e move os delírios carnais. Não obstante, na linha do desejo, mesmo que na erotização da linguagem, a musa também continua Raquel. Secchin é um escritor de sonetos e reconhecedor do que há de melhor na estética literária para suas composições. Sua escrita de Ária da estação e Todos os ventos é o resultado do longo aprendizado que vai do rigor parnasiano, sugestão dos simbolistas, do aprendizado de seleção cabralina à displicência dos modernistas, alicerçados em estilo genuinamente ímpar e secchiniano.
Continuando com a presença da musa, destaco a obra Poemas concebidos sem pecados (1937-2010), de Manoel de Barros, na qual o próprio título do livro se desdobra na leitura de intersemiose: palavra-fotografia. O cenário erótico e metalinguístico ergue-se pela recorrência da memória lírica do poeta, sobretudo no poema “Informações sobre a Musa”, quiçá na mesma linhagem que assinalamos Secchin, na desconstrução da linguagem, um pouco mais sensual e ousada:
Informações sobre a musa
Musa pegou no meu braço. Apertou.
Fiquei excitadinho de mulher.
Levei ela pra um lugar ermo (que eu tinha que fazer uma lírica):
__ Musa, sopre de leve em meus ouvidos a doce poesia,
a de perdão para os homens porém... quero seleção,
ouviu?
__ Pois sim, gafanhoto, mas arreda a mão daí que a hora
é imprópria, sá?
Minha musa sabe asneirinhas
Que não deviam de andar
Nem na boca de um cachorro!
Um dia briguei com Ela
Fui pra debaixo da Lua
E pedi uma inspiração:
__ Essa Lua que nas poesias dantes fazia papel
principal, não quero nem pra meu cavalo; e até logo, vou
gozar a vida; vocês poetas são intersexuais...
E por de japa ajuntou:
__ Tenho uma coleguinha que lida com sonetos de dor
de corno; por que não vai nela?
(BARROS, 2010, p. 31).
O poema acima figura na Poesia completa (2010), de Manoel de Barros, mas foi editado em Poemas concebidos sem pecados (1937). Sob a ótica da linguagem voluptuosa e erótica, o poema oferece subsídios da poesia como corpo. A musa clássica é desconstruída na tradição moderna. O sujeito lírico apresenta-a como objeto do fazer poético que vai do gozo excitante ou provocação da figura feminina ao gozo vivificante da poesia, na medida em que o poeta passa a ser um “intersexual” da linguagem poética. A musa é a chave-mestra do poeta que colhe e recolhe as informações propostas no título.
No poema, a relação está entre o corpo do eu-lírico e o corpo da palavra fundadora de erotismo. A musa do poeta é tão importante como era para os românticos: “Fui pra debaixo da Lua/E pedi uma inspiração”. Entretanto, a musa não é a virgem cândida e idealizada, ela é a musa que sabe falar a linguagem do baixo: “ela sabe asneirinhas que não deviam andar nem na boca de um cachorro”. Ao mesmo tempo, a musa é ironicamente sem pecados como sugere o título da obra inaugural do autor e ainda quando a musa sopra a doce poesia para o perdão dos homens (Versos 4 e 5). Por ora, a musa excita o artífice da palavra e ambos se fundem na erotização da linguagem como se a poesia tornasse uma dança erótica. Lembramos de Octavio Paz que mostrou a relação similar entre erotismo e poesia que pode ser explicada pelo fato de o primeiro constituir uma lírica corporal e a segunda apontar para uma erótica verbal da imagem que se transfigura pela percepção da metáfora:
[...]O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imagem poética é o abraço de realidades opostas e a rima é a cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo por que ela própria em seu modo de operação, já é erotismo. (PAZ, 1994, p. 12).
Efetivamente, há uma oposição que se complementa entre erotismo e poesia. Ambos se realizam pela linguagem corporal e verbal e veiculam ideias de sensação, de êxtase, de movimento e de comunicação. Ademais, a provável relação entre poesia e linguagem é semelhante àquela entre erotismo e sexualidade. Nota-se que “também no poema, cristalização verbal, a linguagem se desvia de seu fim natural: a comunicação” (PAZ, 1994, p. 13). Trata-se da relação entre corpo/sexo e da procriação, ou seja, a linguagem poética se constitui como corpo e produz o efeito do erotismo e da sensualidade, conforme lemos no poema Informações sobre a musa.
Um grande poeta da literatura brasileira, talvez não muito lido e estudado, que tem a figura feminina como musa, é Hardi Filho. Num contexto de tradição, ele seria um romântico-moderno com intensas pinceladas simbólicas. O poeta tem a consciência de que a mulher é a musa sublime de todas as épocas como poetizaram Manoel de Barros e Antônio Carlos Secchin. O arrebatamento romântico perpassa Cinzas e orvalhos (1964) e a leitura do poema lembra-nos Álvares de Azevedo. Leiamos o lirismo derramado de Hardi Filho:
Soneto I
Quando o manto da noite tenebrosa
cair sobre minha alma sonhadora,
aniquilando os sonhos cor-de-rosa,
tornando mudo o que sonante fora...
Ó anjo meu, de cabeleira loura!
Eu falo a ti, a sílfide formosa!
Tu, que és minha paixão imorredoura,
que és minha crença edênica, ardorosa:
Não deixem que me levem para alguma
caverna onde se acabem, uma a uma,
as minhas tristes células paradas.
Quero que o sol surgindo em outro dia
lance seus raios pela relva fria
e aqueça as minhas cinzas orvalhadas.
(HARDI FILHO, 1964).
Adentrando no sentimentalismo noturno e orvalhado de Cinzas e orvalhos, o leitor tem diante de seu olhar a imagem da morte e do sonho, por excelência, temas cantados por Álvares de Azevedo no romantismo. Aliás, temas universais que podem ser únicos em qualquer época. Mas ocorre que a presença temporal do “anjo de cabeleira loura” e da “sílfide formosa” surge como marcas de apelo lírico na hora da angustiada morte, tangenciando um pessimismo próximo do poeta romântico. De forma exacerbada, o soneto descortina o grande impacto frente à dicotomia humana: morte e vida, a qual é encadeada na primeira estrofe com a última. No cerne dessa temática, o soneto hardifilhiano apresenta-nos como uma Via Crucis (sofrimento, paixão e morte) para chegar ao renascimento de Fênix.
O aniquilamento dos sonhos e a certeza da morte serão rompidos pelo poder mítico das cinzas orvalhadas, longe do sonho noturno, do medo, do temor, porquanto, ao raiar do sol no outro dia, brotar-se-á o sopro de vida. A revisitação do mito de Fênix aparece como adensamento das metáforas sugestivas para os temas humanos na poesia de Hardi Filho, um poeta com lirismo sensitivo, mas não melodramático. Hardi Filho herdou a beleza da sugestão dos simbolistas, a elegância sentimental dos românticos e fundou, com seu próprio estilo, a leveza do soneto moderno, tendo a mulher como figura essencial, deusa-angelical e até mesmo sedutora e diabólica em outros sonetos. Eis um poeta que vale a pena ser lido e aclamado na literatura brasileira. Sobre Cinzas e orvalhos, acrescento a opinião de Fontes Ibiapina: “em Cinzas e orvalhos, [...] o poeta chega a fundir pensamentos contrários e antagônicos, como premissas, para chegar ao silogismo perfeito: ‘santa mulher, diabólica figura’...” (IBIAPINA, apud MIGUEL DE MOURA, 2009). Em síntese, na obra do poeta piauiense o leitor senta para embriagar-se na palavra servida em taças requintadas, conforme interpretou a escritora carioca Rejane Machado, em Dois trovadores, disponível na página de mesmo nome da autora: “a fina expressão de Hardi Filho se restringe mais à norma culta, ao sentido nobre, ao tema elegante” (MACHADO, 2009, p.1).
Concluindo minha reflexão incompleta, diria que a poesia contemporânea parece lançar o olhar para um canto e um mosaico multifacetado de vozes que dialogam com outros textos de diversas tradições poéticas. Sob esse prisma, a poesia veste-se de adereços da linguagem revisitada como se faltasse a tônica do novo, não obstante, ao estabelecer as convergências/divergências com o passado, negando ou afirmando, a poesia atual representaria o que Ezra Pound defendeu em ABC da literatura (1997): “literatura é novidade que permanece novidade” (POUND, 1997, p.32). Os poemas escolhidos formam isolada e coletivamente uma justificativa para a permanência da poesia em tempos atuais como uma forma ímpar de ramake de tradições. Ser poeta é ter a consciência de que a poesia do passado pode estar hoje, amanhã e sempre na formação do poeta como leitor de mundo, leitor de outros e, mormente como leitor de si mesmo. Que assim seja e a poesia perdure.
[Nota de Agradecimento - Como ninguém consegue produzir apenas com suas palavras e ideias, agradeço aos meus colegas da Pós-Graduação em Letras e Linguística, nas aulas de Configurações da lírica contemporânea, ministrada pela professora doutora Goiandira de Fátima Ortiz de Camargo, de onde nasceram os debates e discussões sobre a poesia brasileira contemporânea, despertando-me o interesse prazeroso para escrever este texto, sem intenções de avaliação. Agradeço ainda ao poeta Francisco Miguel de Moura e ao Prof.Dr Cunha e Silva Filho pelas indicações de bons poetas piauienses].