(Miguel Carqueija)

Semana passada publiquei meu conto "Ascenção funcional". Com a colaboração do amigo Ronald Rahal, especialista em ficção científica, divulgo agora uma nova versão da história:

SEGUNDA VERSÃO DE ASCENÇÃO FUNCIONAL

Miguel Carqueija e Ronald Rahal



Observo, silencioso, a relva do jardim. Ela é verde...

Assim como as árvores, de grandes copas, que ostentam folhas verdes. Tal como
a gameleira grande no fim do quintal, habitada por pássaros que em parte de seus
pequenos corpos, apresentam penas verdes também.

Agora uma mosca verde esvoaça diante de meus olhos eletrônicos.

Num gesto pouco robótico, ergo a mão esquerda e contemplo-a por breves
instantes. A mão é amarela. Assim a vejo, porque a constituição dos materiais
que me compõem absorvem todos os comprimentos de ondas refletindo apenas
esta faixa da luz visível.

Meu cronômetro interno me informa que transcorreram alguns segundos nessa
contemplação aparentemente ilógica. O tempo não deve ser desperdiçado.
Meus circuitos, que estão conectados à única parte semi-orgânica de meu
corpo, voltam a funcionar normalmente quando atravesso o jardim em direção
à floresta de espelhos solares. Eles obedecem às diretrizes de um programa
feito especialmente para coordenar uma infinitude de funções secundárias de
manobralidade da estrutura que me abriga. Isto não ocupa totalmente meu
processador, permitindo que se ocupe com outras tarefas à medida que os
sensores captam os dados externos. Uma delas é a manutenção diária do que é
vulgarmente denominado floresta, uma grosseira analogia com o conjunto real
de plantas imensas que se distribuem pela superfície da Terra para capturar a luz
solar e se sustentarem.

Procuro empurrar para o meu subconsciente — se é que essa é a definição
correta desta voz interior que dialoga comigo — o pensamento que me flutua
insistentemente. A matriz que me construiu diagnosticaria este complicado
fluxo físico-químico de picos elétricos aleatórios como um desvio funcional
em meus circuitos. O alcance da completa autonomia é uma coisa normal num
protótipo como eu e não deve trazer em si nenhuma espécie de angústia. Isto
é comportamento humano, dizem meus colegas da série mais antiga. Eles – os
humanos - feitos de carne e osso, não passam às vezes de feixes de emoções.
Um autômato é frio como o metal que forma a maior parte do seu corpo. Sem
sonhos. Sem angustias. Mas eu não sou inteiramente metal. Meu processador
neurotrônico compõe-se de células vivas, cultivadas em laboratório. O que me
torna mais próximo dos seres orgânicos.

A tarefa que me foi dada é a de manter a floresta de espelhos funcional. Através
dela se dá à acumulação da energia solar que, armazenada durante o dia, é
primordial para o próprio funcionamento da Cidade. A transferência é efetuada
durante a noite, e no dia seguinte os espelhos prosseguem seu trabalho. Um
parafuso não pode estar fora do seu lugar e por isso eu deveria me considerar
satisfeito por exercer função tão importante para a vida dos humanos e das
máquinas que os servem, entre elas a da matriz que me construiu e todos os meus
irmãos robôs. Como máquinas não temos autonomia suficiente. Ainda estamos
subordinados aos técnicos humanos. Meu teste mudara isso.

Já 14 anos se passaram, desde que eu deixei a instalação onde fui projetado e
construído. Ela é chamada de Portão Estelar. Ainda não compreendi a razão deste
nome. Mas para que recordo isso?

A metalurgia e a eletrônica se combinam maravilhosamente para o
funcionamento da floresta de espelhos. A vigilância robótica de inúmeras
máquinas pequenas semi-automáticas completa o processo. Eu serei o primeiro a
fazê-lo, sem interferência humana, subordinando-as a mim.

Às vezes penso no que teria sido se não tivesse existido um homem chamado
Isaac Asimov. A sua Saga dos Robôs, escrita no século XX — coleção
interminável de contos e novelas — como que preparou a mente humana para
a nossa realidade, que chegava. Assim é que as famosas Três Leis de Robótica
vieram a serem adotadas na prática:

Um robô não pode causar dano a um ser humano ou, por omissão,
permitir que ele sofra algum dano;
Um robô deve obedecer a um ser humano, a menos que essa
obediência entre em choque com a Primeira Lei;
Um robô deve zelar pela própria sobrevivência, a menos que isso
entre em choque com a Primeira e a Segunda Leis.

Só que a humanidade real, sendo muito complicada, achou que essas três leis
eram poucas e acrescentou outras que variavam conforme a máquina fabricada.
Uma das mais comuns é a que impõe proteção aos animais domésticos.
Outra estabelece o desejo — vagamente emotivo — de aperfeiçoamento pelo
aprendizado. Uma espécie de ascensão social robótica, ainda longe da realidade.
Pelo menos até agora.

Naquele dia o sol trazia um calor inclemente de 35 graus centígrados. Meus
sensores conheciam a temperatura ambiente, de modo que eu nunca precisava
consultar termômetros como os humanos. Em dias nublados ou chuvosos
o aproveitamento da energia térmica era muito baixo; os dias ensolarados

serviam para aumentar a reserva disponível. Desde que as usinas nucleares, por
excessivamente perigosas, foram banidas, tornou-se imperativo o uso da energia
solar conjugada com fontes alternativas, como os ventos e a força das marés.

Demorou muito para a humanidade descobrir que o Sol é a fonte mais
esplendorosa de energia que pode utilizar. Com as reações termonucleares que se
processam em seu interior, ele produz um enorme fluxo de energia de tal modo
fantástico que se faz sentir a 150 milhões de quilômetros aqui na Terra e até
mesmo para além da nuvem de Oort, há quase três anos luz de distância, numa
enorme concha denominada Heliosfera.

Tal extensão inimaginável para cérebros orgânicos, não os faz refletir que a
proximidade de tal poder - o bastante para manter a complexa biologia terrestre -
pode provocar carcinoma de pele; e cegar quem o fite diretamente (exceto se for
um autômato como eu, que disponho de filtros bloqueadores).

Já a energia nuclear provocada pele fissão de um átomo instável, ao contrário
da solar, pela fusão de dois átomos, era extremamente perigosa e pouco prática
por causa das radiações letais e das complexas medidas de segurança que muitas
vezes se revelavam inapropriadas como ficara demonstrado pelas tragédias de
Chernobyl e Fukushima. Mas um robô não poder ser nostálgico. Isto, como dizem
os da série mais antiga, é coisa de humanos.

No fim do dia eu me dirigi, como de hábito, ao Centro de Processamento de
Dados da estação, a fim de digitar o meu relatório diário. Ao deslizar pela rampa
ascendente deparo com uma moça que, descendo, se dirige a mim com um
sorriso:

— Alô, Jenkins. Como foi o seu dia hoje?

O meu nome vem de um dos mais famosos autômatos da ficção, o personagem
central do romance “Cidade”, de Clifford D. Simak. Encaro a moça que é uma
das poucas pessoas amigas que encontro no gênero humano, já que me trata como
um semelhante:

— Obrigado pela preocupação. Posso dizer que foi muito tranquilo. Mas no
momento o maior problema que encontro são as dejeções dos passarinhos.

Ela ri com graça. Sinto às vezes, diante de tais manifestações, algo parecido com
o que os humanos chamam de inveja. Robôs não são programados para rir ou
sequer sorrir. Isto é coisa de humanos. É o que os da série antiga sempre dizem.

— Será que as andorinhas são tão numerosas que possam interromper o nosso
fornecimento de energia?

— Não creio — respondo com afetada seriedade. — Só que a limpeza deve ser
contínua, pois o acúmulo de resíduos...

— Estamos tendo uma visita importante hoje. Capek... Ouviu falar nele? Está lá
em cima. Vá vê-lo. Você pode aprender muito, já que foi ele que o projetou.

Lola se despede e desce. Ela sabe que eu me encontro no estágio dois de
emancipação, ou “mula mecânica” como dizem por gíria (já que o processo é
controlado por computador) para o estágio três — ou estágio de emancipação
total de um robô — e é a isso que ela se refere na última frase. Se eu tivesse um
coração, ele estaria disparado, sem dúvida. Capek... Muita gente não se lembra,
mas foi o tcheco Karel Capek, antes de Asimov e Simak, o escritor que deu início
à saga dos robôs, com a peça “R.U.R. — comédia utópica em três atos e um
prólogo” (década de 1920). Os robôs são muito gratos a esses três homens, que
influenciaram a humanidade no sentido de fabricá-los verdadeiramente.

Entretanto, esse Capek é outro robô, só que se trata de um emancipado total —
na verdade, um dos poucos da série antiga que atingiram o estágio final. Por
isso mesmo, uma figura lendária. O que estaria fazendo aqui? Lógico, viera
provavelmente visitar a floresta de espelhos, cuja importância era inestimável.

Entrei na sala. Naquele momento Capek estava sozinho e procedia a uma auto-
revisão através dos controles no interior do braço direito. Parei e observei-o, sem
coragem de falar. Afinal, tratava-se de um autômato muito especial. Meu pai e
por tabela, minha mãe, se fosse utilizar os conceitos humanos.

— Eis o zelador da floresta. — afirmou, sem se voltar. Seu sensor já havia
identificado o meu, sem necessidade de identificação visual, como era comum
entre nós.

— Correto. E você é Capek. Meu idealizador.

Era uma afirmação, seguida por outra, talvez até desnecessárias, que mais seguia
o protocolo humano do que a prática silenciosa da identificação entre máquinas.

Capek continuou sua revisão. Podia dar atenção a duas coisas ao mesmo tempo,
sem maior dificuldade.

— E seu nome é... Jenkins.

— Eu sei que sabe mais a meu respeito do que eu sobre você, Capek.

— Sei mesmo tudo sobre você Jenkis. Você é especial. O primeiro projetado por

outro robô. O primeiro com um processador biológico.

— É uma honra tê-lo aqui. – disse eu.

Ele ignora o elogio. Vira-se finalmente para mim.

— Amanhã visitarei a área dos espelhos para avaliar a tarefa que lhe foi
designada.

A blindagem que envolve seu intelecto é de um verde pastel, infinitamente
belo. Os materiais absorvem as demais cores e refletem esta, do estágio final do
emancipado. Uma suave luz verde irradia de toda a sua estrutura humanóide.
Apenas ligeiramente diferenciada pelos seus magníficos olhos de esmeralda.
Quase todo o seu corpo é verde. Verde... Verde...

Por que teriam escolhido um material que refletia essa cor para o mais alto grau
da hierarquia robótica? Por alguma razão expresso essa pergunta a Capek, e ele
dá uma resposta inesperada:

— Nós, robôs, representamos o supra-sumo de uma civilização extremamente
tecnológica, sofisticada. Quem teve essa idéia quis fazer uma espécie de
compensação à Mãe Natureza... Um retorno ao verde no plano mais avançado da
técnica. Ridículo, não acha?

Espanto-me — tanto quanto pode um robô — com o espírito de Capek. Ignorava
a informação que ele acaba de me passar. Concordo, porém, com ele.

— Desejo que você me explique em minúcias o funcionamento da floresta de
espelhos. É um assunto que me interessa muito, além das razões que já declinei.

— Terei prazer em fazê-lo.

— A energia é um assunto vital, Jenkins. Você viu os sofrês (*) que voam aí fora?
Fiz que sim, e ele prosseguiu:
— Já pensou como se explica que uma ave possa voar? Afinal ela pesa mais do
que o ar.

— Mas a mecânica do vôo já está perfeitamente equacionada...

— Eu sei. Mas o nhandú e o avestruz já não são capazes de voar. Oh, claro,
você pode falar em aerodinâmica, no pequeno peso relativo das aves, mas e o
caso do besouro, com seus apêndices incômodos? A primeira explicação para o
movimento é energia. A vida para ter existência precisa de sua própria energia.
E à medida que se torna complexa requer mais energia. Entre um exemplar do
Domínio Archea e de um procarionte como o homem, a diferença de consumo de
energia é abissal. E o nível de consumo de energia que a civilização deste século
atingiu supera a de todos os séculos anteriores que a precedeu. Computo que a
tendência é de aumento da demanda.

— Mas se uma civilização se expande tanto quanto a moderna Humanidade é
lógico que precisará selecionar as formas de energia que utiliza, de maneira a
não desfalcar o meio ambiente de seus elementos vitais. Acabar com a cobertura
vegetal, por exemplo, é maneira suicida e efêmera de produzir energia.

— Daí que a energia solar, como forma preferencial, é a solução mais adequada
— prosseguiu ele. — A energia atômica houve por bem ser descartada, pela
ameaça que representava de destruição global, em termos mediatos ou imediatos.
Outras formas, como a energia das marés, são complementos necessários. Mas o
principal é adequar constantemente a utilização da energia solar às necessidades
da civilização. Já pensou, Jenkins, que se a carência energética da humanidade
aumentar desproporcionalmente em relação à disponibilidade, os robôs poderão
ser considerados um bem supérfluo e, portanto, dispensável? Nós consumimos
uma grande parcela de energia e os homens viveram por milênios sem precisar de
nossa ajuda. Pense nisso. Agora pretendo mudar isso e ir mais além. Provar que
um de nós pode representar a própria raça humana quando o momento chegar.

Nunca fizera, de fato, tais relações. Capek tinha razão. Se um dia
representássemos um fardo pesado, poderíamos ser desligados como lastro
supérfluo. Algo que poderia acontecer se as florestas de espelhos, por exemplo,
perdessem a sua eficácia. Um pensamento deveras desagradável. Mas representar
a raça humana...

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Passaram-se muitos anos. Curiosamente, o que me ficou com mais nitidez no
espírito foi essa estranha conversa da véspera, bem mais que a demorada visita
à floresta. Lembro-me de ter mostrado a Capek os tubos de polipropileno, por

onde corria água aquecida pelos raios solares, que acionava as nossas turbinas.
Mostrei-lhe os espelhos de aço macromolecular que se movimentam lentamente,
em tropismo vegetal pela luz do astro-rei. Ele pediu explicações minuciosíssimas
e por fim observou:

— É um trabalho maravilhoso e você é muito dedicado, Jenkins. Só lhe falta
uma coisa: aperfeiçoar o sistema. Sabe? Eu vivo em conferências e não disponho
de muito tempo. Sou como Touro Sentado no espetáculo de Búfalo Bill: uma
curiosidade. Uma nostalgica lembrança de um passado que já se foi. Senão, eu
me dedicaria a esse problema. Creio que a energia solar pode render mais. A
questão é descobrir o processo adequado. A propósito, você leu sobre as teorias
de David Bohm?
— Quem?
— David Bohm. Sobre a difusão de um campo de plasma com base no campo
eletromagnético. Se conseguirmos um dia alcança-la a fusão estará a um passo de
se tornar realidade. É fácil encontrar os livros dele, mas pode deixar que eu lhe
mando um pelo receptor de textos eletrõnicos. Talvez lhe dê alguma luz em outro
campo que não seja a fusão. A meu ver os robôs devem estudar e pesquisar. É a
nossa maneira de impor respeito.

Comecei a ler David Bohm e a idéia que passou a me perseguir obsessivamente
foi essa: intensificar a captura da energia solar. Mas como? Ora, pelos fotons!
Afinal a luz é a combinação de sete comprimentos de ondas. E a faixa violeta é
a mais próxima do segmento invísivel que contém novo patamar energético. A
captação filtrada aumentaria a capacidade de armazenamento de espelhos mais
sofisticados. Bohm dizia: “Os físicos de hoje (referia-se ao século XX) concluem
que toda a base conceitual da Física deve ser considerada como completamente
inadequada”. Então por que não se poderia “espremer” mais um pouco as
fontes energéticas, antes de concluir que já se tirava delas o possível? Com esse
pensamento, comecei a trabalhar como um louco. Febrilmente.

E foi assim que tudo começou. Foram anos de luta, de enfrentamento de
preconceitos. Até conseguir doutorar-me em Harvard — primeiro robô a
conseguir esse feito — muita água aquecida correu pelos dutos de polipropileno,
mas afinal o desdobramento espectral triunfou, aumentando em sete vezes a
energia obtida com a radiação hélia. Isso e mais a cerâmica supercondutora,
além de outros reforços energéticos, produziram uma superabundância de força
à disposição do mundo. O que deu tempo a nós, robôs, de cimentar com mais
calma a espinhosa questão dos direitos civis, afastando o que teria sido o pretexto
mais imediato contra a nossa raça. Que um autômato tenha sido o descobridor
dessa nova fonte, pesa muito na balança. Não seremos presas tão ingênuas como
os índios, e eu, um pouco sem dar conta, preenchi uma etapa importante ao subir

de simples robô emancipado para cientista. Mas como pretendia Capek a intenção
não era só de monstrar nossa utilidade e a falta que faríamos.

Essa não é a história da luta dos robôs pela sua afirmação. É apenas a história
de como uma pequena conversa alterou o meu destino e, de quebra, o destino
do mundo. Fito por um instante os meus dedos verdes, enquanto penso em
palavras de desfecho. Que extraordinária intuição teve Capek, naquele dia tão
longínquo em que falou comigo, quando aparentemente me confiou uma missão?
Curiosamente, já não valorizo mais o verde que hoje minha blindagem reflete.

As palavras que eu não tinha entendido completamente naquele primeiro contato
com Capek agora faziam todo sentido. Por isso me dissera que eu era especial. O
primeiro, de muitos que viriam depois.

Lembrei-me da instalação chamada de Portão Estelar, onde fui construido. Por
isso tinham lhe dado este nome que remetia ao imaginário humano de uma porta
aberta para o Cosmos.

Eu era realmente o primeiro rôbo que podia pensar graças a uma mescla de tecido
vivo e nano-circuitos. O primeiro de muitos.

Ajeitei-me no assento de comando, olhando para meus irmãos nos controles mais
abaixo. Pela janela da nave, podia-se ainda avistar um pálido ponto. A estrela
de onde tínhamos partido. E à frente estendia-se o vasto espaço, impossível de
ser vivenciado por seres orgânicos como os humanos numa única vida. Destino:
Alfa Centauri. Capek fora mais longe do qualquer máquina. Eu e meus irmãos
representávamos agora a raça humana. Este era o verdadeiro significado da
Ascenção Funcional


(*) sofrê: pássaro brasileiro da família dos ictéridas, o mesmo que corrupião.