Salvador Dalí e um corona surreal
Por Elmar Carvalho Em: 30/06/2020, às 17H43
DIÁRIO
[Salvador Dalí e um corona surreal]
Elmar Carvalho
30/06/2020
Tirei este domingo, pela manhã, para mais uma vez folhear o livro “Dalí: the paintings”, de Robert Descharnes e Gilles Néret, editado em 2018 por Taschen (Bibliotheca Universalis). Quando cheguei à página 608, me deparei com uma pintura que me chamou deveras a atenção, tanto por suas próprias qualidades, como também por motivos particulares meus, sobre a qual mais adiante falarei.
Desde o início de minha juventude, mais precisamente desde a segunda metade da década de setenta, tenho visto e revisto várias reproduções de suas telas mais famosas, e outras nem tanto, sempre com a mesma admiração e encantamento, tanto através de livros/álbuns, como através de cd’s e, depois, da internet. Desde então, fiz vários poemas de feição surrealista, muitos inspirados em obras de sua autoria.
Na segunda metade da década de oitenta, já morando em Teresina desde 1982, fui vizinho do pintor Francisco Siqueira Santos (PBA, 14/07/1951 - BSB, 31/10/2017), ou apenas Siqueira, que adotara o nome artístico de Sica. Natural de Parnaíba, ele era agente da Polícia Federal, e também admirava o surrealismo, sobretudo o de Salvador Dalí, tendo ele próprio produzido algumas pinturas surrealistas de alta qualidade. Um ano ou menos depois foi transferido para Brasília, e agora eu soube, pelo seu colega Odon Baltazar Nobre, que ele faleceu há cerca de três anos.
Nessa época eu já vinha acumulando algumas ideias para escrever um poema épico moderno baseado na vida e na obra do grande surrealista espanhol, titulado Dalilíada. Falei desse projeto ao Sica, e lhe preveni que no dia que me viesse o estalo ou insight eu o procuraria para que me emprestasse os grandes álbuns que ele tinha, em que estavam estampadas as pinturas do mestre do surrealismo, que além de tudo era um grande histrião e falastrão, marqueteiro de suas obras.
E assim, em certa tarde, me surgiu uma forte compulsão para escrever esse poema anunciado e esperado. Corri à procura do Sica, que felizmente se encontrava em sua residência, e me forneceu os livros, conforme prometera.
De imediato, na mesa de minha sala, como se estivesse sob atuação mediúnica ou automática, sem procurar lógica ou sentido no que escrevia, folheando freneticamente os livros que trouxera, por vezes misturando as ideias de duas ou mais telas, algumas vezes me utilizando também dos títulos, escrevi quase de um só fôlego ou jato esse longo poema; longo, claro, para os padrões de hoje.
Mas, como disse, já escrevera antes alguns poemas surrealistas, vários inspirados em pinturas de Dalí, inclusive um baseado numa tela que, de certa forma, guarda alguma semelhança com a que me referi no início deste registro. Eis o poema, que por sinal faz parte do aludido épico Dalilíada:
XXXVII
O discóbolo do cosmo
em vigorosa e rigorosa torção
arremessa o disco do Sol
para uma outra desconhecida dimensão.
Retomando o perdido fio inicial da meada, quando cheguei à página 608 vi a pintura que me causou surpresa e admiração. Tinha o título grafado em inglês, que em minha rústica tradução converti para “jogadores de basquetebol metamorfoseados em anjos”. Integrando um conjunto antigo de três poemas, creio que da década de 1970 ou 80, sob o título geral de “No reino do surreal”, encontrei o seguinte:
II – BASQUETEBOL
tomaram-me
tudo inclusive
o óbolo inútil
o bolo indigesto
a bola murcha
a bala de festim
a balada calada
alada
mas sem voo
mas ainda me sobrou
cabeça para arrancá-la
e enfiá-la
na cesta
Contudo, o atleta mais visível do quadro de jogadores de basquete metamorfoseados em criaturas angélicas mais me pareceu um goleiro, em espetacular e espetaculosa “voada”, a espalmar o planeta Terra para longe de sua meta. Um goleiro surreal que parecia ter a ousadia maluca, performática e exótica de Higuita e a eficiência e elasticidade felina e elegante de Yashin.
E a bola, na verdade o nosso terráqueo planeta, tinha umas espécies de pinos, que me fizeram lembrar a imagem ampliada do famigerado coronavírus. Um bisonho observador poderia achar que fora uma premonição. Eu prefiro nada achar, exceto beleza na pintura.
Não querendo ser um cabotino e tampouco um narcisista, e muito menos ainda um ególatra, mas tendo sido um goleiro em minha adolescência, prefiro encerrar esta crônica algo memorialística, com pitadas de gênese literária, com a seguinte frase de José Francisco Marques, extraída de seu texto “Quem te ensinou a voar?”, que me vale como um certificado e consagração:
“Elmar era de fato um goleiro diferenciado. Elegante em suas defesas e de uma agilidade impressionante, pois muitas vezes arrancava aplausos (fato raríssimo entre expectadores desse nível futebolístico), da plateia que o assistia.”