Rosa Numinosa de Diego Mendes Sousa
Em: 05/06/2022, às 23H17
[Dílson Lages Monteiro - editor de Entretextos]
“O mar registra a minha história / poesia-ondas / poesia-dunas / poesia-sóis / numinosa rosa de sal/ as entranhas da geografia litorânea/ essa alma estranha no trago estelar...”. Nestes versos de Rosa numinosa (edição do autor, 2022), Diego Mendes Sousa, poeta parnaibano cuja força da juventude é exercício da palavra poética, resume o que com exatidão se poderia, por meio da própria voz do vate, definir seu fazer poético. Foi assim: poesia-ondas, poesia-dunas, poesia-sóis que enxerguei no livro Velas náufragas (2019) o amadurecimento de uma dicção própria. Uma dicção em que a metafísica gradativamente se transformava em segunda natureza, para a busca, por meio de símbolos e da dimensão plástica da palavra, do movimento da paisagem litorânea.
Em Rosa numinosa, a relação da voz lírica com o tempo e com a terra continua como um norte para a leitura de seus versos neorromânticos. Ganha fôlego, porém, uma visão mais universal dos temas: o amor, a infância, a saudade e, sobretudo, a terra, ainda que o ato de criar parta do confessionalismo, da sensação imediata ou do circunstancial, ultrapassa essa esfera, para projetar o sentido estético do ser e do estar no mundo.
O que reserva ao leitor Rosa numinosa? A começar pela feliz escolha do título, o projeto poético da obra, valendo-se de um símbolo etéreo amplamente explorado em literatura, nem por isso fechado para os novos sentidos da palavra, consegue mexer com as percepções, a partir da curiosidade da combinação entre a semântica da palavra e os estratos fônicos. Na hábil exploração da carga sonora das aliterações e assonâncias, está a sugestão de um título cuja função prospectiva consegue tão naturalmente se ver.
Rosa numinosa é rosa com nome de rosa (numinosa/nomederosa), rosa de verdade, o que implica sentimento profundo e autêntico. Rosa com luminosidade. Numerosa. O que implica, mais uma vez, sentimento intenso e legítimo. Duas palavras para leitura vagarosa, sentida em suas combinações mínimas pela exploração da intensidade e do acento das duas últimas sílabas poéticas (nosa/rosa) e o arrastar de consoantes oclusivas e bilabiais. Título para ser lido vagarosamente como se contemplássemos um jardim colorido de flores ou a abundância de xananas de sua terra natal, para recorrer à metonímia frequentemente empregada pelo poeta em versos de outras obras, como no livro Gravidade das xananas (2019).
Em Rosa numinosa, dividem-se os poemas em quatro grandes blocos. O primeiro deles, “Gestas das ruínas e dos telhados tostados”, a tonalidade metalinguística se sobressalta em busca do que sobrou de vivências. Ruínas e fogo. O que sobra é matéria para Nova Vida. Dilui-se o eu lírico na natureza: quer ser água, sentir a naturalidade da beleza, recuperar a memória ilhada. Ora, com alegria, ora com melancolia, ora com tédio. A beleza, frequentemente associada à da própria musa Altair exaltada na continuidade/descontinuidade das horas. A identidade do ser e do espaço, em metáforas e metonímias, continuamente se expressa à procura de um sentido existencial, que é o da própria poesia: “Eu que sempre fui água, mansidão de peixes e de siris. // Ser líquido na chuva, rio no mar naufragado”. O amor é vazante, fonte fértil da felicidade; ou lamento doloroso e superior da ancestralidade.
No segundo bloco de poemas, “Andilhas surradas”, o sujeito lírico sugere andar por ilhas: circular pelos mesmos trajetos. Ser caminhante pisando nas mesmas pegadas. Caminho de volta e de ida, e vice-versa. Ligado ao sentimento da terra, lê-se o protesto ecológico contra mancha de óleo no mar de Parnaíba; a exaltação da generosidade e da fé, que é ao mesmo tempo a exaltação de Francisco, o Papa; e a condição do isolamento social forçado pela onda destruidora de um vírus. A metalinguagem, mais uma vez, direta ou indiretamente, incorpora-se aos versos, para definir a condição humana e a função do poeta, como em “palavra nenhuma suporta a dor da solidão”.
No terceiro conjunto de poemas, “Alba da alma dispersa”, o eu lírico viaja para além da dimensão física. Em íntima relação com o espaço da memória, que é também materialmente representação da emoção e do afeto, revisita a casa da avó, o bumba-meu-boi, a influência dos poetas Stella Leonardos e Jorge Tufic. Desemborca, novamente, na metalinguagem em resposta à sua procura, permanece “mergulhado no nó do mar/ em noite de lua cheia”. Para encontrar “a epifania de que o tempo era ali, na inocência”. Ali, na paisagem da Parnaíba da memória.
Pisando nas mesmas pegadas, a Parnaíba da memória, o quarto conjunto de poemas, “Salmos à gleba das carnaúbas”, leva o eu lírico, no fundo leitor de si, às percepções da infância. Na paisagem litorânea, amor, tempo e infância se confundem com a saudade do “malúrico”: “Nos carrosséis/ que correm nostálgicos/ giram os velhos ventos/ vivos/ nas noites recolhidas”. “Bailam gaivotas na distância”, a simbologia de antigos casarões famosos e as fabulações de moradores ilustres: a poetisa Luíza Amélia de Queiroz; Dona Auta Rosa Cesária de Castello Branco (o nome em si mesmo poético); Humberto de Campos. O Piauí e o sentido de pertencer a um lugar e a uma gente. E um rio que deságua em uma poesia que é onda, mar e sol, que é rosa numinosa.