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Rogel Samuel: O Rei do Nepal

"A morte de Vishnu", escreveu "The Times". Estive três vezes em Katmandhu, capital do Nepal.

Na primeira vez permaneci dois meses e meio, na segunda e terceira vez um mês.

Gosto de Katmandhu, de sua comida, de seus povos. Há vários povos ali. Nós chamamos a todos de nepaleses, mas são vários. E também há tibetanos, em Boudanath.

Fiquei sempre em Bouda, como se diz. A comida é excelente, o povo muito cortês. Se você passa por uma família hindu, ouve: "Namastê!"; se tibetana, "Tashidelê!"

Aprendi a me sentir à vontade, ali.

Tenho uma amiga alemã que passava as férias lá, todos os anos.

Por isso fiquei chocado com a estranha e trágica morte da família real.

Os nepaleses adoravam aquele rei.

Um dia quase fui agredido por um taxista por que perguntei, brincando: "como vai o meu amigo Rei do Nepal?" Ele não gostou. Não era modo de tratar o rei. O Rei, que era o deus Vishnu.

A efígie do Rei está em todas as cédulas de rúpias. Há fotos do rei Rei Birendra Bir Bikram Shah Dev e da Rainha Aishwarya Rajya Laxmi Devi Shah em todos os lugares públicos: bares, lojas, tempos hinduístas e budistas.

O rei era uma espécie de lenda.

É certo que se falava em corrupção.

Dizia-se que ele possuía uma das maiores fortunas do mundo. Contava-se (o que não acredito), que a rainha tinha sido cantora de cabaré, que era casada antes etc.

Diz-se que para sua coroação ele mandou fazer uma nova coroa de alguns milhões de dólares.

O que é verdade comprovada é Birendra trocou o velho palácio de Hanuman Dhoka pelo novo, que apareceu na TV do mundo todo, que ocupa uma área gigantesca em Narayan Hity, perto do centro de Thamel.

Me explico: Katmandhu é constituída por três velhas cidades, que se juntaram.

Uma é Thamel.

O velho palácio (que visitei, hoje transformado em museu) é um labirinto de corredores e salas, com o nome do protetor do invencível exército do Nepal, Hanuman, o deus macaco.

"Em uma negra ironia da história, Gyanendra foi coroado no velho palácio em Hanuman Dhoka, cenário de um outro massacre palaciano maior ainda na história do Nepal. Na sanguinolenta carnificina Kot em 1846, o Primeiro Ministro Jung Bahadur Rana e seus 16 irmãos mataram mais de 150 chefes de clãs rivais no mesmo pátio, embora não fizessem mal ao rei e à rainha." - escreveu o jornalista de "The Telegraph", de Calcutá, em 4 de junho, e que a nossa amiga Lyra traduziu.

Aquele velho palácio também foi palco da cerimônia de coroação de Gyanendra, entronizado naquele trono de ouro com uma grande serpente naja como espaldar.

A riqueza dos reis contrasta com a pobreza do povo.

"O assassino do deus Vishnu assumiu o trono de Vishnu", escreveu "The Times".

"Se o próprio rei carece de justiça, o que será de nós, pobre povo?" - perguntaram.

"O embaixador Keshav Raj Jha, um antigo chefe do protocolo, conta que quando o rei visitou a Itália em 1994, foi ao McDonald tomar café e lanche. Recusou os seguranças para evitar chamar atenção de quem era", disse Raj Jha.

Ele entrou na fila como todo motorista." - escreveu "The Times".

O que pessoalmente sei é que, um dia, o falecido Rei Birendra estava na Alemanha e visitava um museu. O diretor do museu lhe disse que tinha uma estátua de Buda e foi mostrá-la.

É proibido fazer sair qualquer antiguidade do Nepal. Essa proibição veio até tardia, pois o Nepal perdeu muita coisa. Acusavam também o governo de desvio de verba internacional para recuperar os lugares históricos.

Enfim, o rei Birendra examinou a estátua por baixo e perguntou: "Como o museu conseguiu esta estátua?"

O diretor lhe disse que tinha sido um famoso lama quem lha vendeu. Todos sabem que os lamas tibetanos precisam muito de dinheiro, pois mantêm mosteiros com cem a duzentos jovens monges para sustentar.

Quando o Rei voltou para Katmandhu mandou prender o famoso lama, cujo nome claro não vou revelar, pois é muito conhecido e muito elevado.

Foi uma gritaria universal. Todos os que tinham acesso ao rei foram implorar-lhe que perdoasse o lama.

Enfim, o rei aceitou trocar por uma espécie de prisão domiciliar: o lama ficava proibido de sair de seu mosteiro nas montanhas, onde permaneceu até morrer.

Mas não pense que impera a justiça, ali. Lá rico nunca ia para a cadeia.

Hoje o Nepal é dominado por outras forças políticas.

Não sei como está.