Rio Subterrâneo quarentão

Por Kenard Kruel

Rio Subterrâneo, de O. G. Rêgo de Carvalho, revolucionário na técnica, na linguagem, no tempo, em tudo, completa 40 anos de publicação, editado que foi, em 1967, pela Civilização Brasileira. Até o presente momento, nenhuma ação para marcar tão importante data no calendário literário piauiense. Como forma de tirar um pouco a poeira da estante, eis, abaixo, um pequeno estudo que fiz sobre Rio Subterrâneo, que se encontra, por completo, no livro O. G. Rêgo de Carvalho - Fortuna Crítica, a sair em breve.


Rio Subterrâneo, o seu Confiteor, o seu testamento espiritual, foi escrito de 1962 a 1964, situando-se por volta de 1950. Neste ano, em um passeio à cidade maranhense de Timon, com os amigos Raimundo Wall Ferraz (que viria a ser prefeito de Teresina, já falecido) e Pedro Novais Lima (escritor maranhense), ao dar umas voltas pelas margens do rio Parnaíba, de canoa, vendo passar o trem sob a ponte de ferro, um dos símbolos mais fortes da nossa Capital, inspirou-se para escrever um romance com aquele cenário, nascendo, entretanto, apenas o conto Um Passeio a Timon, inserido, em 1956, em Amor e Morte, e que seria, depois, um dos capítulos de Rio Subterrâneo.

Rio Subterrâneo, seu romance há muito sonhado, nasceu, portanto, do conto Um Passeio a Timon, e o autor dá mais detalhes: "Então, eu quis desenvolver essa história e consegui. Mas aí acontecem cousas. Um irmão meu adoece da mente. Está hospitalizado no Rio de Janeiro, e vou visitá-lo. Quando chego lá, ele fica se queixando de angústia, de mil aflições, e uma freira se aproxima de mim e diz: 'Não, meu filho, não se importe, não se preocupe com seu irmão, eles não sentem tanto'. E eu que ouvi as queixas do meu irmão, fiquei chocado com aquela afirmação da freira, de que os doentes mentais não sofriam, quando a impressão que eu tinha era de que os doentes mentais sofriam mais do que os seres normais, em dadas circunstâncias. Então eu escrevi o romance em homenagem ao meu irmão doente. Lucínio deveria ser o único sadio no romance, para observar tudo aquilo, mas terminou tendo a atmosfera doentia de um fronteiriço".

Romance de tempo psicológico, cria um mundo misterioso, habitado por criaturas deformadas e marcadas pelo medo, pela solidão, pela angústia, pelo desespero, pela neurose.

Obra introspectiva, busca mergulhar fundo no mundo interior, no inconsciente e na dor de cada personagem (Lucínio, Joana, Helena, Afonsina, Hermes, Bennoni, Neusa). Lucínio é o personagem central. É comovente, doloroso. É um jovem sem infância, sem passado, sem nada. É personagem de um mundo degradado. Amor, morte e loucura são os temas básicos do romance, que começa às 18 horas de um dia e termina às 18 horas do dia seguinte.

Rio Subterrâneo foi a obra em que mais trabalhou. Nela, está por inteiro. "Tudo o que de verdadeiramente importante eu tinha dentro de mim eu externei nesse livro (...) Eu adoeci ao encerrar a última linha de Rio Subterrâneo. Com estafa física e mental, deixei o Rio e vim para Teresina descansar. Aqui, em tratamento, e com o apoio da família, consegui me recuperar. Mas todas as sensações que uma pessoa tem a caminho de um esgotamento nervoso estão descritas, com absoluta sinceridade, na minha obra. Daí porque Rio Subterrâneo é, talvez, o meu livro-filho, o meu livro mais amado por mim mesmo. Poderia ter-me casado, mas preferi romper o noivado para dedicar-me exclusivamente à literatura. Poderia ter sido Diretor do Banco do Brasil, de que era alto funcionário, se a carreira dos números e das contas não atrapalhasse o duro ofício de escrever. Poderia ter conservado a saúde e escrito mais e mais livros, se minha paixão por Rio Subterrâneo não me tivesse levado à doença e à depressão".

Carlos Drummond de Andrade, em carta a O. G. Rêgo de Carvalho, fez a seguinte observação: "Do romance (Rio Subterrâneo) tirei forte sensação de obra calcada no que o homem tem de mais dolorido e profundo, e trabalhado com aguda consciência artística. É desses livros que a gente não esquece".

Rio Subterrâneo foi publicado em 1967, em circunstância editorial lamentável - a Civilização Brasileira passava por uma das maiores crises da sua história, em virtude do conflito de sua linha de produção com a conjuntura político-social do Brasil. Resultou que Rio Subterrâneo e mais uma dezena de outros títulos foram liquidados no mercado a preço simbólico, com evidente prejuízo para o autor - que abriu mão dos direitos autorais daquela edição - e para a própria editora, informa Francisco Miguel de Moura. "Como a Editora Civilização Brasileira arriscou muito capital com meu Rio Subterrâneo, abri mão dos direitos autorais. Quando escrevo, penso unicamente em agradar a um leitor exigente: eu mesmo. O resultado financeiro nunca esteve nem estará nas minhas cogitações", resume O. G. Rêgo de Carvalho.

Rio Subterrâneo teve uma tiragem de 3 mil exemplares, sendo enviados para o autor apenas 20 deles, que foram apreendidos pelo chefe do SNI no Piauí, um senhor conhecido pela alcunha de Costa. Depois de mais de uma semana de idas e vindas ao seu gabinete, O. G. Rêgo de Carvalho conseguiu recuperar os livros. Ao chegar em casa, observou que um deles estava totalmente anotado. O motivo para toda essa confusão é que o dono da Editora Civilização Brasileira, Ênio Silveira, seu editor, era comunista nato e de carteirinha.

Em 1976, o artista plástico Nonato Oliveira, um dos maiores valores das artes plásticas piauienses, profundamente impressionado com a leitura de Rio Subterrâneo, pintou uma série de dez telas baseadas no romance, definindo o seu trabalho como uma experiência nova e fascinante. O primeiro capítulo, Limbo, forneceu-lhe inspiração para os três primeiros quadros da série. Nonato Oliveira diz que nunca se recuperou do impacto da leitura de Rio Subterrâneo e que o seu conceito de arte mudou a partir daquele momento.

Interesse pela psiquiatria - Aos que dizem que estudou psiquiatria para escrever Rio Subterrâneo, O. G. Rêgo de Carvalho responde, com veemência, que não: "Eu estava adoecendo enquanto o escrevia, e passei para o papel todas as minhas sensações. Daí sua autenticidade. Rio Subterrâneo é um trabalho de elaboração muito acentuada, e eu quando o escrevi estava sentindo que, aos poucos, ia adoecendo. Mas eu não quis interromper meu trabalho, porque se eu interrompesse o trabalho, jamais concluiria. Então passei a escrever dia e noite, com um cuidado muito grande com a forma, para que, se eu viesse a adoecer antes de concluir o livro, aquele trecho que estivesse concluído pudesse pelo menos ser publicado. Vim interessar-me pelo estudo de psiquiatria depois que me fiz três perguntas: Por que adoeci? Qual deve ser meu tratamento? Que fazer para evitar nova recaída?".

Entre a poesia e a psiquiatria - O primeiro e único surto de sua doença, deu-se em 1964. Após o seu internamento e recuperação intelectual, O. G. Rêgo de Carvalho dedicou-se "a exaustivas pesquisas psiquiátricas e deparou com um fato sumamente estranho e curioso - a inexplicável coincidência entre certos poemas de autores brasileiros e trabalhos de psiquiatras europeus. Por exemplo, o famoso O Palhaço, de Augusto dos Anjos, aparece quase que intacto na obra Cura da Mente Enferma, do Dr. Guntrip, da Universidade de Lidge, onde o mestre cita um caso verídico e idêntico. O Viver é Lutar, do imortal Gonçalves Dias, é a mesma frase usada por Sketel em A Vontade de Viver. Coincidência? Talvez. Mas não deixa de abrir um campo inteiramente novo para estudo e pesquisa: por que essa coincidência entre poetas e psiquiatras separados entre si pelo tempo e espaço?", observa Igor Achatkin no jornal O Dia edição de 28 de fevereiro de 1970.

Hospital Areolino de Abreu - O. G. Rêgo de Carvalho não só se interessou pelo estudo da psiquiatria, como procurou fazer com que respeitassem e dessem dignidade aos homens que, marcados pelo destino, sofriam das faculdades mentais no Piauí. Assim, buscou junto ao Governador João Clímaco D'Almeida a mudança do nome da Colônia de Psicopatas, dada ao Hospital de Doenças Mentais, mantido pelo Governo do Estado. Não foi atendido. Mas não desistiu.

No governo Alberto Silva, com o apoio do Dr. Dirceu Arcoverde, Secretário de Estado da Saúde, conseguiu a assinatura do Decreto nº 1435, de 23 de fevereiro de 1972, que tem a seguinte redação:

"Considerando que já não mais se justifica a qualificação de Colônia de Psicopatas dada ao Hospital de Doenças Mentais mantido pelo Governo do Estado, nesta Capital;

Considerando ser de justiça a manutenção do nome de Areolino de Abreu ao mesmo nosocômio, em homenagem ao grande médico piauiense, decreta:

Fica denominada Hospital Areolino de Abreu a atual Colônia de Psicopatas Areolino de Abreu, mantida pelo Governo do Estado, nesta Capital".

Em busca da perfeição - O. G. Rêgo de Carvalho não escreveu mais depois de Rio Subterrâneo, "porque o que aconteceu ali foi uma explosão de estrela. A estrela explodiu, brilhou e apagou. Mas não parei aí. Durante os últimos 38 anos reescrevi e burilei minhas três obras inúmeras vezes, sempre procurando a melhor dicção, a frase de ritmo poético e musical, a perfeição que sei inatingível. Essa luta com as palavras me valeu noites e noites de insônia, e quantas vezes não me levantei em plena madrugada para retocar, mais uma vez, a frase emendada há pouco. Essa insatisfação é permanente. Digo mais: farei revisão das minhas obras enquanto viver. A edição definitiva será a última que eu tiver em vida. Porque acho que o autor - a menos que esteja produzindo continuamente, o que não é o meu caso, não escrevo mais por motivo de saúde - tem como que o dever de legar aos seus leitores uma obra que seja realmente válida. Por isso tem de burilar o texto até à exaustão, trabalhá-lo como se estivesse escrevendo um poema. Veja bem: a gente pode fazer um poema num dia e passar uma semana burilando-o. Pode engavetar e um ano depois reescrever, melhorar o texto. Já com um romance é diferente: é algo terrível conviver com as mesmas personagens, com os mesmos sofrimentos durante dois ou três anos. Eu sofri isso em Rio Subterrâneo, sofri até o paroxismo. Sofri com a doença e sofri mais ainda com o tratamento".

Assim, os esboços de Era Noite, Afonsina e A Noz Partida, iniciados antes do surto de sua doença, foram rasgados por ele, temendo que pudessem prejudicar novamente sua saúde.
.
O. G. Rêgo de Carvalho nasceu no dia 25 de janeiro de 1930, em Oeiras, vindo para Teresina no final de 1940. Aqui, concluiu o primário no Colégio São Francisco de Salles, fazendo o ginásio e o clássico no Liceu Piauiense (1949). Em 1950 ingressa na Faculdade de Direito do Piauí. Em 1952 passa em primeiro lugar em concurso de âmbito nacional para o Banco do Brasil, aposentando-se em 1982. É Membro da Academia Piauiense de Letras e da União Brasileira de Escritores. Autor de Ulisses Entre o amor e a Morte (1953), Rio Subterrâneo (1967) e Somos Todos Inocentes (1971).
.
* Kenard Kruel é presidente do Sindicato dos Escritores no Piauí.