[Carlos Evandro Martins Eulálio]
Recentemente, li na coluna Letra Viva do Portal Entretextos uma crônica do escritor Cunha e Silva, em que relata um passeio pelo centro antigo do Rio de Janeiro, na companhia da mulher e do filho Alexandre. O texto aguçou-me a memória que me fez voltar à década de 1960, quando cheguei ao Rio, parafraseando o autor, como “todo nordestino sem mesada, para tentar vencer na vida”. Morei inicialmente no Grajaú e posteriormente em Vila Isabel, próximo à antiga Praça 7, atualmente Barão de Drummond, em casa de uma das minhas irmãs. Dali, deslocava-me de bonde para o centro da cidade até à Presidente Vargas, na altura da Central do Brasil, ao lado do imponente prédio do Ministério da Guerra. De lá seguia a pé para a Avenida Rio Branco, 151, pertinho do Largo da Carioca, onde trabalhava como office-boy num escritório de advocacia. O bonde partia de Vila Isabel sempre lotado. O cobrador, gordo e já idoso, de terno azul e gravata preta desbotados, transitava nos estribos de um lado a outro, com os dedos recheados de cédulas para passar troco. Ninguém deixava de pagar a passagem. E de ninguém ele se esquecia de cobrá-la.
Outro meio de transporte que utilizava eram as lotações que lembravam antigas jardineiras. Deixavam-me no Largo da Carioca, precisamente no Tabuleiro da Baiana, antigo ponto final dos bondes procedentes da zona sul da cidade que, nos anos 1960, transformou-se em terminal rodoviário de ônibus e lotações. Hoje, poucos se lembram desse abrigo, localizado no trecho entre a Av. Treze de Maio e a Rua Senador Dantas. Próximo a esse logradouro erguia-se o prédio onde funcionava o Liceu de Artes e Ofícios, que oferecia cursos profissionalizantes a pessoas de baixo poder aquisitivo. Ali fiz um curso de revisão, patrocinado pelo Jornal “O Globo.”
No Largo da Carioca, vi surgir o primeiro prédio moderno do centro do Rio: Edifício Avenida Central, onde instalaram cursos de inglês, escritórios e bons restaurantes. Havia até um cinema (Cine Hora), onde se exibiam desenhos animados para matar o tempo daqueles que se antecipavam ao horário de abertura de bancos e casas comerciais ou que na hora do “rush” esperavam diminuir o fluxo do trânsito para se dirigir aos pontos de ônibus com mais tranquilidade. No percurso do Grajaú ao centro, admirava na Praça da Bandeira o famoso chafariz esculpido por Louis Sauvageau, em 1861, seguindo o estilo do Barroco francês. Ao avistá-lo chamavam-me a atenção as esculturas dos quatro meninos que sustentam uma bacia d’água, simbolizando os quatro continentes. Trazido da Áustria, em 1878, por D. Pedro II, esse belo chafariz foi colocado inicialmente na Praça Quinze de Novembro. Na década de 1960, transferiram-no para a Praça da Bandeira.
Transitava diariamente pelas ruas do centro. Foi nessa época que, por coincidência, li o livro do Dr. Macedinho, “Memórias da rua do Ouvidor”, citado por Cunha e Silva. O livro reúne crônicas que recuperam a paisagem do velho centro do Rio de Janeiro, período em que viveu o autor do nosso primeiro romance romântico.
Nos fins de semana, dirigia-me à praça Saens Pena, localizada na Tijuca. Ali via meus filmes prediletos nos inúmeros cinemas: Cine América, Art Palácio, Carioca, Metro Tijuca, Olinda e Britânia. Outros de menos conforto situavam-se ao longo da rua Barão de Mesquita. Aos domingos, assistia no Teatro Municipal, a partir das 10h, aos “Concertos para a Juventude”, regidos pelos maestros Isaac Karabtchevsky e Eleazar de Carvalho. A entrada era franca. Quando ia à praia, de preferência a do Leme, deixava pertences entre pessoas e barracas, para arriscar um mergulho no mar. Ao retornar, tudo se encontrava no mesmo lugar, da forma como deixara. Nenhum sinal de furto.
Ao retornar ao Rio, em 1980, fiquei chocado com a mudança de cenário. Não me dei conta do que escreveu Cunha e Silva: “As cidades são como as pessoas, com o tempo mudam de fisionomia”. Não avistei mais o belo chafariz na praça da Bandeira. Encontrei-o na Cinelândia, no lugar do Palácio Monroe, que abrigava o Senado Federal, antes da construção de Brasília. Esse prédio foi demolido injustificadamente por ordem do Presidente Geisel, no período do regime militar, durante as obras do Metrô, em 1976. Na Saens Peña, os cinemas cederam espaço a pequenas casas comerciais, magazines, escritórios e grandes lojas de departamento. No Largo da Carioca, nem notícia do Tabuleiro da Baiana. Nas praias, os arrastões vez por outra intraquilizam os banhistas. Não mais os bondes que deslizavam serenamente pelos trilhos de ferro, agora, táxis, metrô, ônibus e motos dividem furiosamente o espaço de ruas e avenidas quase sempre congestionado. Essa mudança que aqui registro data da década de 1980. Confiram um outro cenário mais recente da Cidade Maravilhosa, lendo neste portal a crônica Uma ida ao Centro do Rio de Janeiro, do talentoso escritor Cunha e Silva Filho.