Réquiem à memória da figueira que tombou
Em: 30/11/2017, às 15H22
(*)Dílson Lages Monteiro
Era uma vez...
Era uma vez uma sombra. Ela se estendia por um gigantesco círculo de acolhimento e estórias. Em seu abrigo de afeto, acolheu mais que as estações da natureza, mais que o sol e a chuva; mais que o vento e o calor; mais que as fisionomias
Houve um tempo em que serviu para meninos peraltas vencerem as horas nas disputas dos jogos de peteca e triângulo. Houve um tempo em que era a guia das partidas de bola, em duelos de palavrões e traquinagens. Nesse tempo, brincar era ir além dos adversários (ou simplesmente cúmplices) em exatidão, reciprocidade e companheirismo. Ir além em vigor físico, agilidade e senso de oportunidade. Brincar significava iniciar-se, divertidamente, nos enfrentamentos, mas também interagir.
Houve um tempo em que era a proteção para os namorados esquecerem o mundo. “Olha o céu, meu amor, e vê como está lindo”. Houve um tempo em que se confundia com o sabor do álcool, destilado no movimento da praça insone. Houve um tempo em que o tempo fez-se multiplicar em suas asas ligeiras que ninguém para.
Houve o seu tempo, e ela findou. A velha figueira tombou; restam a lembrança de muitas memórias e o vazio aberto para quem a conheceu. Mas ela obedeceu ao ciclo de todo "ser" vivo; cumpriu a missão que a natureza lhe deu: dar sombra. O que faria a mais que se constituir como elemento da paisagem e encantar-nos com o que de melhor poderia oferecer?
Natural que secasse. Atingida por uma suposta praga, depois de muitas eras? Não se sabe de que padeceu. Não se sabe por que moléstia, ou se por sede ou indiferença, ela morreu. Provavelmente, oca como estava, já não resistisse mais ao fluxo do ar e tombou. Dizem alguns que foi tristeza. Dizem outros que medo. Dizem outros que, testemunha ocular de um tempo tenebroso (?!), sacrificou-se para nascer na esperança de um novo tempo (?!) sonhado. E se diz tanta coisa...
Quero crer que o tempo a tombou, depois de ela, com sua sombra, beleza e cheiros, acompanhar seus apreciadores na visão distante do rio para o qual sempre olhou, fincada no mesmo lugar, do alto de sua inclinação, no balanço de seus galhos rijos, olhando para o rio cristalino, parada, parada, sustentando o tempo, na força das suas antigas raízes. Elas estão lá: derreter-se-ão no fundo da terra – ou ali permanecerão cristalizadas, dividindo a matéria da química que desconheço, em meio ao concreto da calçada e da pequena praça.
Ela ficará para sempre num lugar que é o da linguagem, sem nome definido, mas que tem a forma chamada de lembrança, a forma de muitos detalhes que se pluralizam na epiderme olfativa de quem a conheceu, acolhendo, com seus braços longos e inclinados, a luz do sol e o horizonte das nuvens.
Dílson Lages Monteiro é professor e membro da APL.