Quase um beijo
Por Chagas Botelho Em: 21/08/2022, às 01H04
[Chagas Botelho]
Nunca morei numa república, porém, estudei em uma escola que já foi. Era um velho sobrado localizado na Avenida Frei Serafim. A passagem ocorreu ainda no século passado. Na belle époque do ensino médio. Eu era jovem e imberbe que amava os “Menudos” e o grupo “Dominó”. Também tentava saber se queria ser alguma coisa ou coisa nenhuma.
Gostava das aulas de literatura e história, e só. Assistia às outras apenas para cumprir tabela. Ah não! Havia uma que odiava: física. Esta eu odiava, odeio e odiarei. No entanto, o professor era gente boa. Divertido. Com ele, a fórceps, assimilei um pouco sobre as leis de Newton. Aprendizado rasteiro. Desanimador. Pudera. Do homem cuja maçã caíra sobre seu cocuruto, nada me interessava.
Através das fatídicas aulas de física fiz a maior aposta da minha vida. Zero de dinheiro. Apostei um beijo. Sim, um ósculo e na boca. Num tempo em que beijar era uma afetividade rara. Ao não ser em treinos diante do espelho. Aliás, pratiquei muitas bitocas em minha imagem refletida. Narcisismo nenhum, somente vontade de aprender a tascar um beijo quando chegasse à hora H.
Quanto à aposta, o fato se deu assim: (puxa a cadeira que lá vem história caro Joaquim Ferreira dos Santos) a menina mais linda da sala, quase um anjo barroco, e tão desinteressada em física quanto a mim, disse-me que se tirasse nota melhor, eu lhe pagaria um sorvete triplo — de manga, abacaxi e bacuri. Em contrapartida, disse-lhe que se a minha fosse maior, ela me daria um beijo. Detalhe importante: exigiria a presença de sua língua. Concordamos.
Fomos fazer a prova. Teste dificílimo. Meus cálculos saiam trêmulos e imprecisos. Enquanto resolvíamos questões de energia e mecânica, de relance, nos olhávamos como oponentes. Claro, cada um desejava vencer. Dias depois, ansiosos pelo resultado, numa espera inquietante, o professor entregou as notas. A expectativa nos corroía. Ela desejosa pelo sorvete e eu pelo sonhado beijo.
Para minha surpresa e tristeza, por meio ponto, a nota dela foi maior. Meu chão e suas placas tectônicas balançaram. Por conta do mísero meio ponto, deixei de ganhar um beijo da beldade da ex-república. Ainda tive que lhe pagar um sorvete de três camadas. Neste dia descobri que tinha má sorte. Que era um tremendo pé frio.