QUARTA-FEIRA DE SOL

Nesta manhã ensolarada fico imaginando a falta que faz entre nós a presença de Agripino Grieco, que não conheci na intimidade, mas que, uma vez, me enviou gentilmente dois jornais comemorativos de seus oitenta anos de vida fecunda dedicada à literatura. Os jornais a que me refiro foram trazidos pela minha esposa que na casa dele esteve e o conheceu, tendo sido apresentada a ele graças ao conhecimento que tinha com uma vizinha e conhecida do grande crítico, lá na rua Aristides Caire, no Méier, bairro do subúrbio da Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Isso foi há alguns anos e eu ainda era estudante de Letras.

Minha esposa foi bem recebida e se encantou com o velho intelectual, que lhe mostrou a imensa biblioteca e indagou de mim sem mesmo conhecer-me. Ainda parecia bem lúcido. Infelizmente, nunca cheguei a conhecê-lo com mais profundidade. Pessoalmente, eu o via uma vez apenas e casualmente e sobre esse encontro escrevi uma pequena crônica também há muito tempo em jornal do Piauí, intitulada “Lugar certo, porta errada”. A mim me pareceu uma pessoa bem humorada, brincalhona e bem de acordo com aquilo que de sua singular personalidade me disseram a seu respeito.

A primeira vez que ouvi falar dele foi graças ao reparo que meu pai me fez a propósito de um artigo meu juvenil no qual havia feito citações de críticos literários brasileiros e havia omitido o nome de Agripino Grieco, o enfant terrible da nossa intelectualidade. Foi naquela época que, abrindo uma antologia de Estevão Cruz, me deparei com uma página do Grieco, precedida de uma bem informada e sucinta biobibliografia dele. Minha crônica tinha cometido um feio pecado de omissão involuntária. O meu pecado era grande mesmo, no artiguinho faltavam outros nomes fundamentais da nossa crítica, o que tornava as omissões ainda mais pecaminosas. Se, pelo menos, tivesse já lido aquela página de Raquel de Queirós a respeito dos autores apenas citados implicitamente no ectcoétera, minha omisso teria sido menos grave.

No início desta crônica, eu falei da falta que nos faz a verve de Grieco, lacuna que não foi mais preenchida por ninguém até hoje. Millor Fernandes, ao contrário, acha que Grieco não faria falta, pois, para ele, teria sido o famoso crítico do Méier um talento desperdiçado pelo excesso da irreverência. Não vejo assim a sua figura no cenário da vida intelectual brasileira. Haja vista a sua obra deixada e respeitada até mesmo por intelectuais de peso de nossos dias, como Alfredo Bosi que, acerca do autor de Zeros à esquerda, assim se pronuncia em sua magnífica História concisa da literatura brasileira: “...um dos mais atentos e vivos leitores críticos da nova literatura...” (1986, p. 547).

É, no entanto, precisamente dessa faceta debochada desse crítico que sinto falta, desse homem que tudo aprendeu sozinho sobre literatura, não somente de nossos autores, mas também das maiores figuras da literatura universal, desse homem que, segundo depoimentos de conhecidos dele, era capaz de recitar de cor passagens e passagens da Divina Comédia no original. Era dono de prodigiosa memória, sendo capaz de ter na ponta da língua uma piada cáustica para definir intelectuais da época. Mesmo Machado de Assis, unanimidade nacional até mesmo entre críticos, não lhe escapou da poderosa veia satírica, quando quase sempre prevaleceu entre nós a machadolatria.

Confesso que não conheço a obra toda de Grieco. O pouco, porém, que li de sua páginas é mais do que suficiente para compreender que Grieco representa o oposto a tudo que me parece o lado pedante de nossa vida intelectual. Grieco foi o gauche de nossos homens de letras, o demiurgo da vida intelectual da cidade do Rio de Janeiro quando era capital da República, daquele Rio da Belle Époque, do Rio das primeiras décadas deste século de tantas mudanças e surpresas.

Gauche era Grieco quando admirava Lima Barreto, quando criticava seu alvo preferido, a Academia Brasileira de Letras, quando, em cada medalhão de nossa vida literária, via o calcanhar de Aquiles. De todos podia fazer um retrato caricatural, de sua pena galhofeira arrancava do leitor boas gargalhadas. Poucas figuras de nossa vida cultural lhe saíram ilesas das verrinas e catilinárias, porquanto assombrava pelo vigor da sátira. Somente uma inteligência forrada de imensa cultura literária poderia se dar ao luxo de desancar a vaidade dos intelectuais, de reduzi-los às suas dimensões humanas, de revelar-lhes os vícios e defeitos.

Não era gratuita a sua admiração por Camilo Castelo Branco, outra vigorosa pena pronta a pulverizar os moedeiros falsos. Camilo ter-lhe-ia de certo reforçado a vocação para a polêmica. Impiedoso com os falsos valores, e nisso se revelava o seu talento de crítico, Agripino Grieco teve, porém, palavras elogiosas para Tristão de Athayde, Jorge Amado, Lima Barreto, entre outros. Preferia, entretanto, Carlos Drummond de Andrade como prosador, e não como poeta. Era um apaixonado por Castro Alves, a quem chamava “uma convulsão”.

Se vivo fosse, Agripino Grieco teria hoje cento e dez anos. Ele é de 1888. Esse filho de imigrantes italianos, nascido na cidade da Paraíba do Sul, estado do Rio de Janeiro, deixou outras obras, Caçadores de símbolos (1923), Vivos a mortos (1931), Evolução da poesia brasileira (1932), Evolução da prosa brasileira (1933), S. Francisco de Assis e a poesia cristã, esta última considerada por Walter Wey como a obra de Grieco “...estilisticamente melhor realizada”.

Grieco começou na literatura

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