[Bráulio Tavares]

 


(René Magritte, La Reproduction Interdite)

Alan Garner conta que passou por uma tremenda crise pessoal quando supervisionava a filmagem do seu romance The Owl Service. Todo dia de filmagem ele sofria tremores, suores frios, acessos de vômito. Foi a um terapeuta e narrou seu drama. O terapeuta perguntou-lhe se o livro original estava escrito na terceira pessoa e no tempo passado, ou se era na primeira pessoa e no tempo presente. Garner disse que era na terceira, e no passado. O analista lembrou-lhe que o filme – qualquer filme – se passa no presente (a ação, mesmo quando em “flash back”, tem a imediaticidade de qualquer ação vivida). E que sendo um livro autobiográfico era insuportável para ele reviver, no presente, aquelas situações. Não posso botar minha mão no fogo pelo diagnóstico, mas o relato de Garner, em Science Fiction at Large (1976), afirma: “Ele foi direto ao centro da minha dor, e me absolveu dela”.

Isto dá uma medida do quanto (para alguns autores, não para todos – é bom que fique bem claro) o ato de escrever envolve catarse, libertação, descarrego. Muita gente diz que escreve para poder lidar com seus “demônios” e “fantasmas”. Por que recorrem a essas imagens para exprimir o que acontece dentro de suas cabeças? No caso desses autores (não de todos, insisto) existe algo incomodando, e escrever é uma maneira de ficar sabendo o que é e de dar-lhe um fim. Todo mundo conhece a metáfora do grão de areia na ostra; aquilo incomoda tanto que a ostra cobre o grão intruso de madrepérola, e de repente, voilà! O grão de areia virou uma obra de arte.

Voltando ao uso da primeira pessoa: quando o autor é jovem, inexperiente, ou descuidado, ou está escrevendo sob forte tensão, ou está mexendo com coisas que lhe são dolorosas, acontece muito que o “eu” que representa o personagem comece a ser contaminado pelo “eu” da pessoa que escreve. Isto ocorre menos quando se está escrevendo na terceira pessoa, porque para transferir para outra pessoa um sentimento muito íntimo (“Fulano estava se sentindo assim porque...”) é necessário um mínimo de distanciamento, e isso funciona como um estalar de dedos que acorda o escritor, dizendo-lhe: “Êpa! É do personagem que você tem que estar falando, não de você!”. Quando estamos usando o “eu”, contudo, deslizamos com muito mais facilidade para esse tipo de equívoco, escrevemos sem refletir, projetamos os pensamentos na página sem ficar checando, de instante em instante, se o personagem estaria mesmo dizendo/pensando/sentindo aquilo. A pressão interna das coisas querendo ser ditas é tão fortes que elas se apossam do canal mais à mão, o trabalho literário, e escorrem para dentro da página.