Por Onde Anda a Filosofia e o Espírito Crítico?

Por onde anda a filosofia e o espírito crítico? A difícil arte de questionar em tempos de respostas prontas.

[*Marcelo Martins Eulálio]

 

 

Não sou filósofo de formação. Quem me dera! Talvez um dia, com os filhos encaminhados, o pão nosso de cada dia garantido e menos correria, eu me permita concretizar esse desejo. A vida moderna, essa engrenagem barulhenta e acelerada, não tem sido gentil nem mesmo com quem busca silêncio para pensar.

É comum encontrarmos pessoas que não se interessam pela filosofia, talvez pelo fato de acharem que ela é “inútil”, desnecessária, sem aplicação de ordem prática. Será? Como convencê-las do contrário, de que não estamos de forma alguma 'fora' da filosofia, como nos alertou Heidegger?  Diz-nos Heidegger que “mesmo que não saibamos expressamente nada sobre filosofia, já estamos na filosofia porque a filosofia está em nós e nos pertence; e, em verdade, no sentido de que já sempre filosofamos. Filosofamos mesmo quando não sabemos nada sobre isso, mesmo que não 'façamos filosofia'. Não filosofamos apenas vez por outra, mas de modo constante e necessário porquanto existimos como homens. Ser-aí como homem significa filosofar.”

Não à toa, lembra Bárbara Botter, que o estudo da filosofia é visto como inútil e supérfluo, desde a Antiguidade até os nossos dias.  

Diante de uma postura “anti-filosófica” (ou pré-filosófica), como despertar o interesse pela filosofia? Ensinar filosofia ou ensinar a filosofar (pensar/refletir)? Qual a melhor forma de convencer uma pessoa para a importância do estudo da(s) filosofia(s) e da reflexão filosófica?

Descobrir a filosofia é uma dessas rupturas que nos marcam. Como o primeiro dia de aula, o nascimento de um filho, a morte de um familiar, o primeiro amor. Depois disso, algo muda. Nada será como antes, pelo menos é nisso que quero crer. Não há rito de passagem, senha secreta ou mandinga que transforme alguém em filósofo. Falo daquele filósofo prático, que caminha e pensa, que duvida, que questiona, que se alimenta de um espírito crítico e não apenas o acadêmico, o titulado por lei e currículo.

Aristóteles, há mais de 25 séculos, disse que o homem é um animal racional, e os filósofos modernos precipitadamente endossaram, reduzindo o “animal” à mera biologia e limitando a “racionalidade” a lógica e à linguagem. Sem dúvida, Aristóteles ficaria horrorizado. Descartes, com seu famoso Cogito ergo sum, deduz a existência a partir do pensamento: “penso, logo existo”. Kant, sem o temperamento viril e militar de Descartes, era baixo, pobre, celibatário e metódico, e inspirado em modelos matemáticos, construiu uma obra crítica conduzida por uma lógica, rigor e precisão inigualáveis. Heráclito, o Obscuro, já desconfiava disso tudo muito antes de Sócrates. O rio não é o mesmo duas vezes. Nós também não somos. E, em um de seus aforismos, ele nos adverte: “Não o eu, mas o Logos”. A palavra, o sentido, o discurso. O mundo se interpreta, não se consome.

E é aí que mora o tal espírito crítico. Uma peça rara, que anda em falta nas rodas de conversas. Quem ousa dizer que ele é dispensável? Não há democracia sem ele. Não há ciência e não há progresso real. É ele que nos salva do senso comum, das fake news, das fórmulas e respostas prontas. Sem espírito crítico, como escolher o que nos convém com segurança? Como pensar no coletivo, discernir o certo do conveniente, o justo do injusto, pesar vantagens e desvantagens?

Dominique Janicaud nos provoca com essa questão. E com razão: em tempos de polarizações e discursos rasos, quem pensa com autonomia vira ameaça. O espírito crítico incomoda. E quem se incomoda com ele? O tirano, o opressor, o chefe que não aceita perguntas, apenas ordens cumpridas. Num regime autoritário, o espírito crítico vira ofensa. Pensar vira crime.

Mas, e aqui vai minha dúvida, será que o espírito crítico resolve tudo? Tenho minhas incertezas. O que posso dizer é que ele não floresce sozinho. Não nasce do nada. Não cai do céu. Depende de educação, de formação, de leitura, de chão firme. Quem não sabe interpretar, quem nunca teve acesso a uma boa escola ou sequer a um livro, será dominado com facilidade. Para muita gente, pensar criticamente é luxo. Um privilégio. Um artigo de primeira necessidade escondido atrás das vitrines do saber.

Verdade o que disse Nelson Saldanha: o filosofar sempre existiu para  interpretar a vida (...) e ajudar o homem a localizar-se nela, orientar-se, entender e questionar. A filosofia não é, por essência, um saber dogmático. É um saber crítico, que refuta as evidências imediatas e respostas prontas. A indagação filosófica está na música, na literatura, no cinema, nas diversas manifestações artísticas, etc. É próprio do homem observar e pensar, e ele se põe constantemente, por vezes até de modo inconsciente, a pensar e a meditar.

A filosofia, de acordo com Paulo Ghiraldelli Jr., é uma atividade de desbanalização do banal. Tem por objeto a totalidade das coisas. A filosofia elege qualquer assunto como tema para reflexão. De acordo com Ghiraldelli Jr., “em filosofia, é possível conversar sobre tudo, mas sempre mirando aquilo que, na opinião da maioria, não tem razão de ser mirado de modo tão sério”. Acrescenta Ghiraldelli Jr. , “tudo é assunto para a filosofia: história, mulher, linguagem, natureza, sexo, administração, dor, homem, dinheiro, cinema, poder, moda, pobreza, aborto, Jesus, marxismo, Homem-Aranha, conhecimento, mente, arte, violência, religião, viagem, criança, política, arquitetura, velhice, trabalho, Machado de Assis, ensino, leis, pintura, música, guerra, vadiagem, infância, telenovela, boxe, Madonna, homossexualismo, trânsito etc.”.

Convêm notar que nem todo grego se deixava levar pela correnteza do pensamento comum. Sócrates, declarado pelo Oráculo de Delfos como “o mais sábio dos homens”, por exemplo, nadava contra a corrente e fez da dúvida o seu ofício e, por isso, tornou-se réu de sua própria coragem. Questionava tanto que acabou condenado. O homem que só sabia que nada sabia foi morto pelos que achavam saber tudo. Mas deixou marcas profundas. Seu método virou aula, virou ciência. Hoje, seu jeito de perguntar ainda ecoa nas melhores universidades do mundo. Nietzsche dizia que Sócrates não escreveu nada. Mas quem precisa escrever quando se deixa um legado inteiro de pensamento vivo? A memória dele atravessou os séculos não pela tinta, mas pela voz, pelo diálogo, pela inquietação.

E se o filósofo de Atenas é exemplo desse espírito que se arrisca, lembremo-nos também de Jesus, outro mestre que ensinou mais com perguntas e parábolas do que com tratados. Desde então, filosofia e crítica caminham lado a lado, lembrando-nos de que pensar é sempre mais perigoso, e mais libertador, do que apenas replicar.

E, veja só, mesmo esse espírito crítico precisa de freios. Ele pode ser perigoso. Galileu, ao afirmar que a Terra girava ao redor do Sol, pagou caro por contrariar a autoridade. Pensou demais, talvez. Ou falou na hora errada. Mas não foi por falta de coragem.

Sócrates, Jesus e Galileu são faces de uma mesma história: a do preço pago por quem ousa pensar além do permitido. Cada um, à sua maneira, desafiou a ordem de seu tempo – e foi condenado por isso. Sócrates morreu envenenado, não porque tivesse cometido um crime, mas porque suas perguntas abalavam a segurança dos que julgavam deter o saber. Jesus foi crucificado, não por atos de violência, mas porque sua palavra desconstruía poderes e tradições, abrindo espaço para um novo horizonte espiritual e religioso. Galileu foi silenciado e forçado a retratar-se, não porque lhe faltasse ciência, mas porque sua verdade ameaçava o alicerce de uma autoridade secular. O que une esses três nomes é a coragem de enfrentar o risco da crítica. Pensaram demais, disseram o que não se queria ouvir e pagaram o preço. A história mostra, contudo, que esse preço nunca é em vão: a morte de Sócrates não matou a filosofia, a cruz de Jesus não apagou sua mensagem, e o silêncio de Galileu não deteve o avanço da ciência. O que parecia derrota transformou-se em herança.

Então, como fazer do espírito crítico uma virtude e não uma sentença? Como praticá-lo sem virar alvo? Não tenho todas as respostas. Mas sei que ele é condição necessária. Ponto. E com um pouco mais de filosofia, talvez a gente aprenda a usá-lo não como arma, mas como luz. Porque, no fim das contas, pensar ainda é o melhor caminho para não se perder em um mundo que cada vez nos sugere respostas prontas.

 

Referências:

 

BOTTER, Barbara. Fazer filosofia: aprendendo a pensar com os primeiros filósofos. São Paulo: Paulus, 2013.

GHIRALDELLI JR., Paulo. A aventura da filosofia – de Parmênides a Nietzsche. Barueri, SP: Manole, 2010.

JANICAUD, Dominique. Filosofia: uma iniciação em pequenas lições. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

MARTIN HEIDEGGER. Introdução à filosofia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

SALDANHA, Nelson. Filosofia: temas e percursos. Rio de Janeiro: UAPÉ, 2004.

 

*Marcelo Martins Eulálio é advogado, professor universitário e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí.