Poetas de norte a sul do Brasil
Por Carlos Castelo Em: 11/11/2022, às 17H05
[Carlos Castelo]
Havia uma alegria / do tamanho do mundo / e era dia no mundo. (Torquato Neto)
Agora, que o monstro ruiu, que a poeira baixou, que o verde reapareceu na cerca, é tempo de voltar a falar em poesia. Pode até ser que, depois de Auschwitz, como defendia Adorno, praticar versos seja um despautério. Mas, se mesmo quando faz escuro, se canta, por que não celebrar a chegada da primavera?
Façamos isso, por hoje, com dois poetas. Um de cada extremidade do Brasil, para que nossa festa seja bem representativa.
Minha escolha primeira recai sobre o nortista Torquato Neto. Uma porque, como eu, ele é piauiense. Depois para promovermos uma homenagem, indireta que seja, à tropicalista Gal Gosta, recém-saída de nossas esferas para outras espirais.
De Torquato, na voz da mais doce dos bárbaros, destaco a letra da canção Três da Madrugada:
Três da madrugada
Quase nada
Na cidade abandonada
Nessa rua que não tem mais fim
três da madrugada
tudo é nada
a cidade abandonada
e essa rua não tem mais
nada de mim…
nada
noite alta madrugada
na cidade que me guarda
e esta cidade me mata
de saudade
é sempre assim…
triste madrugada
tudo é nada
minha alegria cansada
e a mão fria mão gelada
toca bem leve em mim
saiba:
meu pobre coração não vale nada
pelas três da madrugada
toda palavra calada
nesta rua da cidade
que não tem mais fim
que não tem mais fim
Para nosso regozijo, o recém-lançado O fato e a coisa, traz material inédito deste que povoa, desde sempre, nossas vidas de sonhos. Apesar de ser uma antologia que o bardo escreveu dos 16 aos 19 anos, foi organizada pelo próprio, e já vem com ótimos achados. Como este Hai-Kaisinho, de 1961:
caminho no escuro
que é
que eu procuro?
E, por falar em haicai, trago à roda nossa representante da poesia do Sul do país: Helena Kolody. Curto uma garimpagem e Helena merece ser muito mais lembrada, estudada e editada, como no livro que reúne sua produção: Infinita Sinfonia. Não era tarefa fácil encontrar material sobre a poeta de Cruz Machado, no Paraná. Felizmente agora, contamos com essa antologia, a mais abrangente da autora, de cerca de 500 poemas.
No livro Reika, sua habilidade com as narrativas breves, e a musicalidade, atinge a plenitude. Como em Voz:
Sou voz mínima
Cantando
No coral do mundo.
Usemos, mesmo nossas vozes menores e alquebradas, para exaltar, em uníssono, o fim da Idade Média:
Viva, Kolody!
Viva, Torquato!
Vade retro, Terra plana!
(Publicado no Estadão)