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[Carlos Castelo]

Havia uma alegria / do tamanho do mundo / e era dia no mundo. (Torquato Neto)

 

Agora, que o monstro ruiu, que a poeira baixou, que o verde reapareceu na cerca, é tempo de voltar a falar em poesia. Pode até ser que, depois de Auschwitz, como defendia Adorno, praticar versos seja um despautério. Mas, se mesmo quando faz escuro, se canta, por que não celebrar a chegada da primavera?

 

Façamos isso, por hoje, com dois poetas. Um de cada extremidade do Brasil, para que nossa festa seja bem representativa.

 

Minha escolha primeira recai sobre o nortista Torquato Neto. Uma porque, como eu, ele é piauiense. Depois para promovermos uma homenagem, indireta que seja, à tropicalista Gal Gosta, recém-saída de nossas esferas para outras espirais.

 

De Torquato, na voz da mais doce dos bárbaros, destaco a letra da canção Três da Madrugada:

 

Três da madrugada

Quase nada

Na cidade abandonada

Nessa rua que não tem mais fim

três da madrugada

tudo é nada

a cidade abandonada

e essa rua não tem mais

nada de mim…

nada

noite alta madrugada

na cidade que me guarda

e esta cidade me mata

de saudade

é sempre assim…

triste madrugada

tudo é nada

minha alegria cansada

e a mão fria mão gelada

toca bem leve em mim

saiba:

meu pobre coração não vale nada

pelas três da madrugada

toda palavra calada

nesta rua da cidade

que não tem mais fim

que não tem mais fim

 

Para nosso regozijo, o recém-lançado O fato e a coisa, traz material inédito deste que povoa, desde sempre, nossas vidas de sonhos. Apesar de ser uma antologia que o bardo escreveu dos 16 aos 19 anos, foi organizada pelo próprio, e já vem com ótimos achados. Como este Hai-Kaisinho, de 1961:

 

caminho no escuro

que é

que eu procuro?

 

E, por falar em haicai, trago à roda nossa representante da poesia do Sul do país: Helena Kolody. Curto uma garimpagem e Helena merece ser muito mais lembrada, estudada e editada, como no livro que reúne sua produção: Infinita Sinfonia. Não era tarefa fácil encontrar material sobre a poeta de Cruz Machado, no Paraná. Felizmente agora, contamos com essa antologia, a mais abrangente da autora, de cerca de 500 poemas.

 

No livro Reika, sua habilidade com as narrativas breves, e a musicalidade, atinge a plenitude. Como em Voz:

 

Sou voz mínima

Cantando

No coral do mundo.

 

Usemos, mesmo nossas vozes menores e alquebradas, para exaltar, em uníssono, o fim da Idade Média:

 

Viva, Kolody!

Viva, Torquato!

Vade retro, Terra plana!

 

(Publicado no Estadão)