Poesia e rupturas em Luiz Filho de Oliveira
Em: 02/01/2011, às 19H47
Cunha e Silva Filho
1. INTRODUÇÃO.
Duas diferenças de construção poética saltam à vista após a leitura das duas obras do jovem poeta piauiense Luiz Filho de Oliveira; a primeira, suscitada pelo livro BardoAmar (Teresina, Edição do Autor, 2003, 70 páginas) me conduz como leitor diretamente ao aspecto visual; a segunda, provocada pela leitura de Ondehumano (Teresina, Nova Aliança, 2009, 114 páginas) me leva sem esforço ao universo do léxico, i. e., da palavra, tomada aqui no sentido mais despojado de poiésis, do vocábulo elevado ao estatuto mais nobre do eixo da seletividade (paradigmático) sobre o eixo da combinação (sintagmático), segundo o pensamento teórico de Jakobson sobre o que pensava da função poética. Dessa junção lúcida e lógica advêm as chamadas estranhezas do discurso poético moderno.
Essa ideia do fazer poético corresponde, a meu ver, àquele conceito de “imprevisibilidade” de outra linha de pensamento crítico-teórico. Não quer isso significar que, no primeiro livro, o poeta abdique de suas preocupações com o verso enquanto discurso lírico. Longe disso, as duas diferenças são somente componentes básicos nas duas obras mencionadas.
Neste estudo que ora inicio e que será apresentado em três ou quatro partes, vou-me concentrar no que os dois livros de poesia de Luiz Filho de Oliveira possam propiciar de novo ou de velho à lírica brasileira. Em carta do autor a mim endereçada, o poeta fornece alguns dados paratextuais sobre os motivos de sua experiência não só quanto ao início de seu interesse pelo gênero poético mas também como chegou a publicar seus poemas e mais outras razões que o fizeram trilhar a solitária aventura do que já se chamou a mais pura das formas literária.
Já anteriormente havia lido alguns textos em prosa do autor, os quais me provocaram uma sensação de estar diante de um escritor avesso ao conservadorismo ou à gratuidade. Quer na prova vazada de estranhamentos, sobretudo no modo de colocação dos pronomes oblíquos e de outras excentricidades de usos gráficos e léxicos no corpo de seu discurso, que não sei se, no futuro, vai dessas expedientes se afastar - o que para mim seria melhor quando se tratasse do ensaio ou mesmo da crônica, com o faz tão bem Ferreira de Gullar na crônica ou no ensaio(ele que já foi tão subversivo e experimentalista na poesia), quer sobretudo na poesia, na qual sem esforço percebemos uma disposição de trabalhar a linguagem nos estreitos limites da literariedade e com uma vantagem a mais:respeito, ousadia e dignidade intelectual.
Juntei as duas partes, os textos lidos na sua coluna do site Intertextos de Dílson Lages, e a leitura dos dois citados livros. O resultad,o no geral, é promissor. Além disso, acrescentaria um pormenor curioso. Segundo o autor, Ondehumano enfeixa poemas anteriores à experiência experimentalista de BardoAmar que, de certa maneira, inverte o processo de continuidade da segunda obra.
Ou seja, enquanto vivência poética, o segundo livro cronologicamente deveria ser virtualmente o primeiro, visto que, segundo aduz o poeta , “e um livro experimental mais sóbrio” se comparado ao primeiro. Para simplificar, do meu ângulo de leitor, Ondehumano, a despeito de incluir grande parte de poemas anteriores ao primeiro livro, é, todavia, o que, a meu juízo, servirá como coerente avanço no percurso poético de Luiz Filho ainda que seja um pouco cedo demais para um julgamento mais conclusivo das possibilidades futuras de seu estro, sem cair numa espécie de fatalidade que tem acometido poetas piauienses que, depois de publicarem um número pequeno de obras no gênero poético, ainda dispondo de muitos anos pela frente, silenciam praticamente ante o futuro de seu projeto poético no início tão promissor. Não resta dúvida, entretanto, de que Ondehumano é, até agora, a constatação mais consistente de um talento com indicativos seguros, vias nítidas e potencial criativo aberto e pronto a desenvolver novos temas e formas elaboração no domínio do verso.
Delimitemos, porém, o alcance lírico de BardoAmar e procuremos, então, sondar—lhe as especificidades de um autor que deu seus primeiros frutos no difícil e competitivo (oh!, com estava longe da verdade contemporânea o historiador literário inglês John Burguess Wilson ( English literature - a survey for students, Longman, ninth impression, 1970, p. 11) ao vaticinar, já na década de cinquenta, erroneamente, como, aliás, outros, o futuro da poesia: “Não existe um poeta vivo que consiga viver de poesia. Mau sinal que talvez acene para a inexistência de um futuro para a poesia.”) campo da poesia na faixa dos vinte anos, Sua produção editada é diminuta se confrontada com os anos de seu convívio com a musas.. Isso, porém, não vem ao caso quando o que pesa para a literatura é a qualidade do que se escreve e, nesse particular, Luiz Filho com apenas dois livros já me permite um julgamento favorável, segundo anteriormente assinalei.
2. Na introdução à poesia de Luiz Filho de Oliveira, a princípio prometera, num só estudo, abordar as duas obras do poeta. No entanto, à medida em que ia desenvolvendo as ideias sobre o livro de estreia, BardoAmor, ia verificando que a análise estava crescendo além do objetivos previamente traçados. Por isso, me decidi a me ater neste trabalho somente ao primeiro livro. Vou reservar o segundo livro, Ondehumano ,para um outro ensaio que pretendo escrever posteriormente.
Pela faixa etária, Luiz Filho se colocaria na geração de poetas do final dos anos oitenta aos inícios dos anos noventa. Quer dizer, geração de poetas bem atravessados pelos tempos da pós-modernidade, da experiência cibernética, de uma indústria cultural cada vez mais tentacular em razão dos avanços vertiginosos na área tecnológico-eletrônica, em tempo de economia globalizada, em tempo também de ameaça cíclica de instabilidade econômica e de hegemonia midiática, principalmente via Internet. Já na segunda fase do Modernismo, na década de 30 do século passado, a virulência iconoclasta arrefeceu e aparou os seus iniciais ímpetos corrosivos face ao passado e iniciou uma nova postura estético-temática, procurando um equilíbrio onde nem se voltaria mais às fontes parnasianas anacrônicas nem tampouco se permaneceria irredutível nos limites estreitos dos experimentalismos e pirotecnias inócuas. Procurou-se, antes, uma via ou vias renovadoras que exprimissem literariamente um Brasil sintonizado com a sua cultura, suas tradições, com a sua língua e com os seus modos de tentar aproximar o mais possível do povo a realidade da nação, com seus problemas peculiares, muitas dificuldades e incertezas políticas e econômicas num país que, para dar um só exemplo significativo, viveria os embates da Revolução de 30 liderada por Getúlio Vargas e, na mesma década, sofreria um retrocesso político com o Estado Novo sob novamente a tutela de Vargas com todas as sequelas de males inerentes a uma Estado ditatorial e, contraditoriamente, de conquistas no plano social, sobretudo na área dos direitos dos trabalhadores. Por outro lado, a questão da inserção do povo na ficção e nos principais gêneros literários brasileiros precisa de ser um tanto relativizada, visto que os movimentos literários têm caráter hierarquizante e mesmo elitista quando os entendemos como mudanças estéticas de cima para baixo , ou seja, de uma elite intelectual para a qual o povo pode ser matéria de temas e de linguagens mas delas não coparticipam do tripé autor+obra+ leitor, este último sendo quase sempre sujeito passivo ou externo pelas próprias condições de penúria cultural e escolaridade que o impossibilita à fruição dos bens culturais das elites intelectuais. Esse é o grande dilema entre a vida intelectual e o povo, o homem comum, o operário. Sendo assim, Cabral pagou tributo à poesia de Carlos Drummond de Andrade pela vertente social, de Augusto Frederico Schmidt no que concerne a uma “aparente falta de informalidade compositiva” (CASTRO, Silva, op. cit., ibidem) e ainda até de Murilo Mendes quanto ao aproveitamento da informalidade compositiva dos poemas imagísticos”, não sem antes serem por João Cabral “criticados e negados”(idem, ibidem). Quer dizer, João Cabral, tanto quanto outros poetas da “geração de 45”, após negarem conquistas expressivas do Modernismo de 22, não deixam, entretanto, de reaproveitarem “dialeticamente” valores que provêm desse mesmo marco histórico decisivo aos futuros avanços estético-formais da poesia brasileira. 3. DA GEOMETRIA DA CAPA ÀS DESARTICULAÇÕES SILÁBICO-SEMÂNTICAS. No início deste estudo da poesia de Luiz Filho tinha chamado a atenção do leitor para um aspecto dominante de BardoAmar: o campo pictórico. Só para alertar, lembro a circunstância de que neste livro o elemento visual se enlaça umbilicalmente em toda a extensão do volume, o que é facilitado por ser o autor quem preparou as ilustrações do livro. Ou seja, é intencional a fusão aqui da palavra poética com a arte visual, remetendo logo ao velho preceito horaciano do ut pictura poesis. Exteriormente, torna-se palpável o largo uso de natureza icônica entre as linhas do desenho e a palavra conotada. Veja-se o anverso da capa do volume onde se harmonizam intimamente o título do livro e os elementos pictórico-geométricos, já entremostrando, então, rupturas sintagmáticas, recurso amplamente empregado pelo autor.Em BardoAmar, o verbo em forma nominal reduzida do infinitivo se aglutina a uma anacrônica e solene designação da palavra “poeta”, além de que essa mesma aglutinação cria certa ambiguidade – recurso igualmente encontradiço neste poeta - despertando associações, por exemplo, com variadas estruturas possivelmente desdobráveis : “amar um bardo,” “o amor de um bardo” ou até mesmo uma associação virtualmente possível e de valor morfológico, atribuindo a “bardo,” por derivação imprópria, um valor adjetivo. Ou se não, neste passo do mesmo Mallarmé: “pois deve haver sempre enigma em poesia, e é o objetivo da Literatura, - e não há outro – evocar os objetos. (apud MOISÉS, Massaud. Vol. IV – O simbolismo (1893-1902). São Paulo: Editora Cultrix, 1964, p. 36). Ou, finalmente, a poesia entendida como aquele coup de dés mallarmaico, poesia fundamentada não no tema, mas na estrutura verbo-visual (BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 ed.. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 476 ).
O poeta viveu também na carne, posto que, pela idade, ainda imatura para a compreensão de tantas mudanças estruturais e políticas no país, os últimos anos da ditadura militar, as primeiras manifestações da redemocratização política nacional, assim como testemunhou o período pós- Guerra-Fria, a Queda do Muro de Berlim, o esfacelamento do Comunismo russo, a Guerra do Golfo Pérsico, as ditaduras na América Latina, entre outros fatos e mudanças no país e no mundo. É que 20 nas últimas duas décadas do século 20 o poeta se situa como indivíduo e como jovem intelectual ansioso por expressar seu sentimento poético histórica e culturalmente contextualizado. Sua poesia não pode fugir a esses condicionamentos de uma época.
BardoAmar, de resto, é livro premiado em 2000 num concurso realizado pela FUNDEC, e se classificou em segundo lugar. Antes, fora selecionado num “Concurso de Poesia Antero de Quental,” no II Festival de Inverno de Educação de Itajubá, Minas Gerais. O concurso lhe valeu participação em antologia.
Um dos fascínios pelos quais o texto em poesia me seduz vem a ser a imensa possibilidade de releituras de um mesmo livro graças, é claro, ao poder de síntese inerente ao gênero. Daí ser a leitura poética para o critico uma atividade muito mais concentrada, mais visceral, a que vai corresponder um mergulho mais denso e totalizante do objeto poético. Na prosa, fica mais difícil essa prospecção vantajosa à hermenêutica. Por esse motivo, no trabalho de análise de um volume de poemas, devido em geral à exiguidade do número de páginas, o instrumental crítico torna-se muito mais fácil de operacionalizar, o que nada tem a ver com as dificuldades intrínsecas também à prosa.
Não seria gratuito ou ingênuo afirmar-se ao jovem escritor de hoje, seja na prosa, seja na poesia, que o esforço despendido na composição de uma obra literária demanda muito maior suor intelectual do que no passado, aqui entendido como um vasto e variado período abrangendo, com se sabe, vários séculos de tradição literária e especialmente quando se leva em conta as vanguardas europeias que reconfiguraram drasticamente os estilos literários a elas anteriores.
Em outras palavras, o poeta, o ficcionista, o teatrólogo de hoje, quer desejem ou não, não podem evadir-se da contingência de ser uma simples partícula dessa considerável cadeia de estilos e linguagens literárias inserida, formando o circuito da tradição ou cânone, e, ademais, agravada por vezes pela ideia da chamada “angústia da influência” formulada por Harold Bloom, que não deixa de ser uma espécie de “pedra no meio do caminho” de novos autores na seara da poesia.
Desta forma, Luiz Filho, por seu turno, não pode assim ser uma exceção a essa conjuntura da história da literatura universal.
No movimento paradigmático das letras brasileiras, indissociável daquele circuito de tradição ocidental e divisor das águas dentre o conservadorismo e a ruptura convocada pelos defensores do Modernismo de 1922 com a sua histórica e exaustivamente citada e pesquisada Semana de Arte Moderna de 22 no Teatro Municipal de São Paulo, o passado foi, na primeira fase do movimento, vigorosamente rechaçado e a literatura brasileira genuína(?) passaria a ter seu marco zero a partir daquele ano-símbolo.
Contudo, a história literária do país sofreu, em linhas gerais, a partir de 1945, principalmente na poesia, uma forma de retrocesso em relação aos princípios fundamentais da nova estética impiedosamente transgressora que caracterizou os primeiros anos dos modernistas históricos, tendo à frente um Mário de Andrade, um Oswald de Andrade, entre outros.
Os escritores que, em 1945, não se afinaram com algumas conquistas estéticas de 22 e de 30, procuraram, ainda que de forma não uniforme nos seus preceitos estéticos, reagir contra as formas variadas tomadas pelo Modernismo e suas diferentes manifestações estéticas inovadoras, numa atitude estetica que os levavam a uma espécie e de Neoparnasianismo, ressuscitando o uso do soneto, da métrica, da rima e das imagens plásticas, corpóreas, concretas e objetivas no que concerne aos temas e a uma linguagem refinada, aristocratizante. Entretanto, cumpre ressaltar que as “geração de 45” não desejou, entre os inúmeros adeptos de sua estética, uma mera cópia do velho Parnasianismo. Nem tampouco isso seria possível em termos absolutos, pois a poesia brasileira, após o vendaval modernista, jamais seria a mesma e é nesse ponto que surge um poeta que, embora se inclua na “geração de 45”, logo seguiu um caminho independente. Falo de João Cabral de Melo Neto cuja práxis poética não confirmou a tendência geral daquela geração, preferindo, consoante pondera bem Sílvio Castro( in:História da literatura brasileira, volume 3, Lisboa, Publicações Alfa, p. 256, 1999) deixar sua poesia permear-se de algumas influências da geração poética de 30, muito fértil também na ficção, sobretudo com o surgmento dos romances nordestinos de 30.
A par disso, no espaço do mencionado anverso da capa, há um significativo desenho de uma caravela que, por sinal, se repete três vezes mais no corpo do livro. Cabe, neste sentido, uma observação. Na chamada advertência, ou prólogo do livro, Luiz Filho, à semelhança de antigos poetas românticos, à frente Gonçalves de Magalhães, nosso introdutor do Romantismo brasileiro, com os seus Suspiros poéticos e saudades (1836 ), reporta-se a uma viagem, ideia reiterada pelo habilidoso pastiche dessacralizante e oswaldiano do terceiro verso do Canto I, Proposição do clássico épico Os lusíadas: “.. bares & mares muito gigantes navegados.” De resto, este tipo de procedimento técnico do autor, ao longo do livro, se vai novamente insinuar junto a leitor. Quero antecipar que as alusões, tão poderosas hoje na poesia contemporânea e que há tempos já fora prenunciada pelo critico inglês I. A Richards (Princípios de crítica literária. Porto Alegre: Editora Globo, 1967, p.181-185), em BardoAmar se fazem igualmente presentes, em que o antigo, i.e., o passado, em termos de estilos literários, esteticamente deliberado aqui e ali, se mostra fértil, provavelmente naquela mesma linha de pensamento da poesia de Manuel Bandeira (O itinerário de Pasárgada) segundo a qual o poeta apenas desejou prestar homenagem ao legado de ancestralidade lírica.
O texto “Advertência” (p.10), finalmente, embute as pressuposições estéticas e escolhas do autor que, em lentes ampliadas, indiciam uma proposta de poema na qual podem conviver estilos e tempos diferentes (traços de pós-modernidade da lírica contemporânea) de linguagens em diálogo sincrônico ou contemporâneo com as matrizes da nossa formação estético-literária, num amálgama tenso ou irônico-humorístico em construções ousadas que, ao longo do texto, se desconstelam pelas possibilidades fônicas, rítmicas, léxicas e sintáticas, as quais me lembram um dado linguístico de capital importância – a funcionalidade do fonema na formação da palavra, onde a troca de um fonema por outro (paronomásia) resulta noutro vocábulo ou num todo sem sentido na horizontalidade ou transversalidade do ato da leitura. O resultado, além disso, muitas vezes enseja um inteligente, criativo e lúcido jogo semântico. Esta é uma das chaves de leitura que o texto poético de Luiz Filho parece propor ao leitor atento.
A distribuição dos poemas no espaço do livro merece ainda um comentário. BardoAmor se divide em três partes, sendo que o primeiro vocábulo “parte” sofre desarticulação gráfica de duas maneira: a) o poeta primeiro o grafa “PART...TE” e, em seguida, o escreve “PAR-TE”. Ora, tanto numa forma anticonvencional da grafia normativa portuguesa quanto noutra, as duas novas formas remetem, enquanto significantes, a novos sentidos, quer dizer, os dois modos gráficos, a par de acenarem para outros acepções, cataforicamente indiciam séries de títulos de poemas que se caracterizam por subversões sígnicas assentes em ambiguidades de espaços poéticos inerentes a essas desarticulações de formas grafemáticas inusitadas, as quais são peculiares à poesia ressignificadora de que fazem parte as vanguardas que surgiram na poesia brasileira contemporânea.
Em outros termos, o espaço poético no qual Luiz Filho trabalha ou retrabalha seus versos aspira a um inegável jogo lúdico-experimentalista no arcabouço dos verso ou dos poemas, criando os estranhamentos ou desautomatismos da modernidade . Neste caso, o autor compele o leitor a uma tarefa conjunta de decifrações ou possibilidades múltiplas no campo semiológico da sintaxe poética proposta.
Colhamos aleatoriamente, para ilustração, um exemplo desta antinormatividade sintagmática ou apenas lexical. “IN... de IN” (1ª parte); “idas e vinhas” (2ª parte); “ a casa: lar” (3ª parte). Não preciso afirmar que, entre este exemplo de atomização vocabular, nem tudo se presta a decifrações possíveis, recordando, aliás, que nem sempre a poesia se faz para o claro entendimento. Ao contrário, muita gente já ressaltou que a poesia é para ser sentida mais do que compreendida Os simbolistas que não me deixem mentir: “Nommer um object c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème que est faite du bonheurs de deviner peu à peu: suggérer, voilà le revê. C’est le parfait usage de ce mystère que constitue le symbole; évoquer petit à petit um object pour montrer um état d’âme par une série de déchifffrements”( Mallarmé, apud CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. 12 ed. Rio de Janeiro: F. Briguet & Cia. Editores, 1964. Prefácio de Medeiros e Albuquerque, p. 342-343).
No exemplo do poema em questão, na voz do “eu lírico” há uma tácito encontro entre dois seres em situação sentimental-amorosa, porém criteriosamente camuflada no espaço do poema onde fonemas fricativos alveolares surdos se alternam em seus correspondentes sonoros ou mesmo em arquifonemas (CÂMARA, Mattoso), ou ainda, em aliterações, alternam o timbre das vogais. Ou seja, no conjunto da peça poemática, o contexto fônico está sempre a sugerir semelhanças de fonemas (aliterações) e o leitor para ele deve estar sempre com um pé atrás para possíveis intenções sígnicas advindas do todo do peça. Atente-se, ademais, para o fato de que o tratamento “senhora” ecoa para tempos e estilos do velho trovadorismo português (“canção de amigo”).
O segundo exemplo, “Idas & vinhas”, bastante criativo, faz um jogo de palavras no qual a primeira leitura, se não cuidadosamente feita, redunda numa segunda apreensão sonoro-significativa a partir do título do poema. Os versos aí, construídos com muita originalidade, em humorísticas aliterações ( 1º verso) formam um enjambement com a primeira palavra do segundo verso. Novamente, aqui o duplo sentido expresso pelo vocábulo “vinha” (1º verso), com o qual se pode associar ao verbo “vinha” ou ao substantivo “vinha” (= a plantação de vinho, o vinhedo). O sentido humorístico mais uma vez se pode ver no vocábulo “tinto’ (espécie de vinho), combinando com o adjetivo “distinto,” que surpreende o leitor e ao mesmo tempo se desconstrói. Essas estratégias de construções no autor são recorrentes.
Da mesma forma, no segundo verso, “celebração”, que, no ato da leitura corrente, pode levar tanto para o sentido de “atividade intelectual” quanto, por erro de leitura ou de desconhecimento de paronímias, para o sentido de louvação, “exaltação,” excitação provocada pelo efeito do álcool (AURÉLIO). Este uso intencional do poeta pela vizinhança fônica de palavras, pelo pun, o nonsense, ganha uma dimensão considerável na economia de sua práxis poética.
No terceiro e último exemplo, “a casa: lar””, outro poemito de título bastante sugestivo, outra vez o “eu lírico” joga com o duplo sentido, recorrendo à atomização ou “desintegração” (BOSI, Alfredo, op. cit. p.477)) vocabular (traço verbos visuais, entre outros, trazidos pelo Concretismo de 56 e pelas vanguardas vindas do exterior) comportando dois sentidos. No primeiro, o sintagma nominal “a casa: lar” configura um tônus de humor, de vez que o lexema “casa”, é muito corrente se empregado como equivalente de “lar”. É um título engraçado e a um só tempo entrópico. No primeiro verso, se instaura um clima de erotismo e humor, principalmente quando, no primeiro verso, o lexema ”imóvel” traz á tona o sentido mercantilista de propriedade, de lugar de posse, de um dos pilares da sociedade capitalista, em oposição às socialistas, nas quais o imóvel, a propriedade privada, não existe, mas é bem do Estado. No segundo verso, “recanto doce recanto”, que de longe traz à baila a conhecida frase “lar, doce lar”, de procedência cultural inglesa, o “Home, sweet home, there is no place like home”, lugar que é um convite ao sossego e à intimidade, à vida privada ainda outra vez o poeta joga com o duplo sentido, quando se poderia associar “recanto” às suas possibilidades sígnicas, musicais e melódicas. O terceiro verso, retoma o aspecto de erotismo entremostrado no primeiro verso, no qual o corpo, imóvel, se torna movimentos horizontais da carne, unidos de corpo e alma, conforme o advérbio de modo justifica, até graficamente, a sua criação morfológica em desafio à gramaticalidade. (continua)