A Poesia de Graça Vilhena
Por Carlos Evandro Martins Eulálio Em: 11/10/2021, às 23H07
[Carlos Evandro M. Eulálio]
A obra “Poesia Reunida”, da Professora Graça Vilhena, publicada pela Quimera Editora, Teresina 2018, reúne as 40 poesias do livro Em Todo Canto, publicado em 1997, e mais 50 poemas do livro Pedra de Cantaria, de 2013, cujos textos tivemos a oportunidade e o prazer de comentá-los no nosso ensaio “Lírica e Memória em Pedra de Cantaria”, publicado neste Portal e no número 50 da Revista Presença, órgão do Conselho Estadual de Cultura do Piauí.[1], onde destacamos a memória como principal dominante poética naquela obra.
Sobre o modus faciendi da poesia de Graça Vilhena, eu resumiria nas palavras do Prof. Cineas Santos: “[...] Graça constrói versos de rara beleza. O estrutural e o ornamental, em sua poesia, estão de tal forma imbricados que é praticamente impossível dissociá-los”[2].
Os poemas de Graça Vilhena, magistralmente elaborados, são em geral de extensão curta e quase todos em versos livres. A riqueza de suas imagens é obtida com o emprego de metáforas, anáforas, assonâncias, aliterações e enjambements, facilmente encontráveis neste poema[3]:
não quero essa rotina triste
o dedo em riste na menor culpa
e a desculpa nos menores atos
não quero esse beco escuro
esse muro alto onde a gente tenta
pacientemente o outro lado
não quero censura por meu desacato
quando desato consciente
o nó indecente das convenções
não quero o coração acomodado
nem dado a aceitar passivamente
as queixas dementes da razão
não quero a vida com ressentimento
e nem momentos que sejam de abandono
em que o sono pareça morte.[4]
O poema é um grito de liberdade da mulher insubmissa, daí o caráter universal do texto. É construído com versos livres em uma só estrofe. A musicalidade do poema é obtida pelas assonâncias e aliterações em palavras distintas, que colaboram ainda em virtude do ritmo para a criação de imagens.
A propósito dos versos livres, o poeta Carlos Drummond de Andrade, em entrevista que concedeu em 16 de junho 1984 à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, afirma:
[...] o Modernismo abriu avenidas novas em matéria de versificação. Ele deu um impulso muito grande ao verso livre. É um verso talvez mais difícil de manejar, porque não tem limites, não há legislação técnica sobre o verso livre. Há quem diga que ele alcança o limite do ato de respirar da pessoa. Quer dizer, se a pessoa não consegue enunciar o verso de um simples golpe, ele não é mais um verso, serão dois ou três versos..[5]
Segundo relato da Prof. Graça, sua opção pelos versos livres se deve à influência de Bandeira e pelo fato de com eles obter imagens e mais ritmo em seus poemas.
H. Dobal[6], referindo-se à poesia da profa. Graça Vilhena, na introdução da obra “Em cada canto”, declara, parafraseando da autora o poema “Fim de mundo” que, “Ao contrário do Bandeira da primeira fase, Graça faz poesia como quem vive “pessoas comuns.” [...]. Por isso os seus poemas suportam com vantagem o teste da releitura, o que é sem dúvida, um sinal de grandeza”.
O viver pessoas comuns como afirma H. Dobal é uma forma de estar no outro. Vemos nesse processo de construção poética um traço marcante da lírica moderna, visto que a poesia, até então como expressão exclusiva do eu, faz-se agora porta-voz de um ser que não é mais uno.
A poesia passa a interpretar, também, o universo coletivo dos homens. O conteúdo de um poema, nos termos de Adorno[7] não é mera expressão de emoções e experiências individuais. Ao contrário, estas só se tornam artísticas quando, exatamente em virtude da especificação de seu tomar-forma estética, adquirem participação no universal, como nestes versos do poema Os ratos, extraído da obra Pedra de Cantaria:
Há um lugar
onde moram os ricos
e outro os pobres
porém há um povo
que mora em qualquer lugar
da cidade generosa
com seus chafarizes e sombras
bancos e marquises
dele nada sabe o rico
nem o pobre
só os ratos que engordam
e correm pelos domingos vazios
do centro da cidade
O texto, cuja temática centra-se na denúncia das desigualdades sociais que acometem as nações em todo o mundo, retrata a realidade do cotidiano transformada em poesia como instrumento de participação social e política. É um traço marcante da poesia lírica universal contemporânea.
Conforme Adorno, essa universalidade do conteúdo lírico é essencialmente social e só entende o que o poema diz aquele que escuta, em sua solidão, a voz da humanidade refletida no poema. ” (ADORNO; p. 67)[8]
No entanto, adverte Adorno: “A referência ao social não deve levar o conteúdo para fora da obra de arte, mas sim levá-lo mais fundo para dentro dela mesma. ” Com isso, o filósofo e sociólogo alemão deixa claro que sua intenção “não é criar uma ponte entre dois elementos distantes, mas descobrir o vínculo que a própria lírica, justamente por causa de sua emancipação, ainda mantém com a sociedade”.[9]
Ocorre a partir daí o que Anazildo Vasconcelos da Silva denomina semiotização lírica do discurso, através da qual
“A mediação literária, ao tempo em que desenvolve o Eu lírico como instância do discurso, que não se confunde, por sua natureza mimética com o Eu histórico da identidade do autor, rompe com os possíveis condicionamentos externos. Desse modo a estrutura lírica se libera da imagem de mundo tomada como proposição da realidade, e se constitui numa unidade/totalidade autônoma.”[10]
Dessa forma, vemos o processo literário de criação de Graça Vilhena, constituído pela mímesis do real, converter-se em discurso lírico nos poemas com tendência para o épico ou epilírico, em que de uma forma híbrida a autora concilia o gênero épico e dramático com a expressão lírica.
Nesse sentido Emil Staiger (1997) corrobora a tese de que não há nenhum gênero puramente lírico, dramático ou épico, mas uma interação, uma inter-relação entre os gêneros literários ao acrescentar:
“[...] apenas chamo a atenção para um ponto: uma obra exclusivamente lírica, exclusivamente épica ou exclusivamente dramática é absolutamente inconcebível; toda obra poética participa em maior ou menor escala de todos os gêneros e apenas em função de sua maior ou menor participação, designamo-la lírica, épica ou dramática (1997, p. 189/190).
Esse hibridismo de gênero literário pode ser observado na poesia lírica de Graça Vilhena nos poemas cujo tom narrativo remete a algum acontecimento passado como no texto “Caso de amor”:
Foi como está
um bar
uma cerveja gelada
e o amor lúdico acontecendo.
Depois todos os beijos
pareciam definitivos
o amor amanhava manhãs
colhia girassóis à noite
criava constelações.
Foi o amor além do amar
além do mal
até tornar-se um desenventivo punhal.
O amor nem sempre tem um final feliz; a tragédia amorosa cerca a história dos amantes que não ascendem à felicidade sonhada. O poema embora se enquadre no ramo da Lírica, apresenta características peculiares também à Épica e ao Drama, quando se constata que a apresentação de uma ação é movida por um dinamismo de tensão que se encaminha para o desfecho trágico. Vimos, portanto, que o poema, além de cantar, também conta.
Vale ressaltar no texto uma peculiaridade da poeta: a criação de neologismos recorrentes em muitos dos seus poemas. Em nenhum dicionário encontramos a expressão “desenventivo punhal” que na poesia adquire uma extraordinária dimensão semântica.
Em outro poema, Cena Familiar, o tema social emerge do próprio poema:
O avô e a avó tossem
o pai viajou
a mãe talvez volte
o menino alheio ao perigo
brinca à sombra do relógio.
No texto, a voz de um narrador conta o drama familiar, em meio à indiferença da criança que tem a capacidade de imaginar e se maravilhar com a vida. Mesmo à vista do caos, e sinalizado pela inexorável passagem do tempo à sombra do relógio, vê ainda a grande oportunidade de reinventar a brincadeira. Há no poema traços estilísticos épicos, quais sejam: um tempo indeterminado, um espaço tópico, um narrador, a presença de personagens e uma ação que se desenvolve pelo protagonista.
O hibridismo dos gêneros literários, tão bem explorado na poesia lírica de Graça Vilhena, é recorrente em muitos poetas modernistas como Bandeira, Cora Coralina, Drummond, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto e outros.
Na obra de Graça Vilhena esse tom epilírico é predominante em seu primeiro livro, com destaque para os textos Poema Comum, Perdas e Danos e Homem Grande.
Na visão de Mikhail Bakhtin, filósofo e pensador russo, o que existe no texto possível de ser analisado é o enunciado. Ao concebê-lo como objeto de estudos linguísticos, ele considera o dialogismo elemento essencial da linguagem, cujo princípio constitutivo confere significado e sentido ao discurso. Assim, o texto se define pelo diálogo entre os interlocutores. Ressalta ainda como característica principal do enunciado, aqui entendido como a frase em uso, além do dialogismo já citado, a polifonia de vozes.
O conceito de polifonia, neste caso, supõe o texto em suas relações com o contexto social, com os textos já lidos pelo leitor e com experiências vividas. Daí as criações metalinguísticas de Graça Vilhena, ao compor poemas dedicados aos poetas H. Dobal, Manoel de Barros e Mário Faustino:
Campos passados
(para o poeta H. Dobal, in memoriam)
campos de verde engano
terra alagada de desejos
onde pastava a inquietação
campos de verdes tempos
falso silêncio de carnaubeiras
leques de harém na mão do vento
ai meninas ai bastardos
grilos de dor que se perderam
na vastidão dos latifúndios
Lição de poesia
(para o poeta Manoel de Barros)
uma rolha de cortiça serve
para boiar lembranças
de um amor de festa
caixas de fósforo molhadas
são também silêncios
para não acordar os candeeiros
e baganas espalhadas nas calçadas
é só pisá-las
para que os outros pensem
que se apagam estrelas
...
Faustino
(para o poeta Mário Faustino, in memoriam)
dentro de tua hora
em um cavalo alado
viajo sobre os lagos
de cisnes traduzidos
disse-me o oráculo
que vives além do tempo
entre a aurora e o meio dia
no movimento das palavras ao sol
e se me põe na colheita
teu olhar semeador
sinto a presença humana e infinita
da poeira estelar que te ilumina
Nesses poemas dedicados a cada autor citado, as vozes dos poetas se cruzam em meio aos versos da autora que com eles compõe um novo texto. Cada poema apresenta informações novas e as que já fazem parte do conhecimento prévio do leitor, passando a ocupar novos espaços em que o eu lírico, deixando de ser o centro da interlocução, cede lugar à interdiscursividade.
Esses textos são enfim tecidos simultaneamente por vozes que se cruzam no interior de si mesmos. A forma como a autora os constrói guardam semelhança com o poema “Antologia”, de Bandeira, que é composto intratextualmente, mediante a colagem de versos diferentes dos vários poemas do poeta. No caso dos poemas pelos quais Graça Vilhena homenageia os poetas piauienses, eles são compostos de versos desses autores criativamente e intertextualmente reelaborados.
A metapoesia também comparece na obra de Graça Vilhena, no
“Poema sem lua”
melhor falar dos homens
e seus eventos
há muito mais poesia
no bêbedo que alinhava a rua
do que no repetido luar
que o ilumina
Aqui a poeta dialoga com Manuel Bandeira, quando este no seu Itinerário de Pasárgada relata como lhe chegaram as primeiras noções de poesia através do pai:
“Assim, na companhia paterna ia-me eu embebendo dessa ideia que a poesia está em tudo – tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas. ”
Para Graça Vilhena a poesia não é só produto da inspiração romântica, pois ao invés “do repetido luar que a ilumina” ela está dispersa no mundo e pode ser encontrada nas coisas e cenas mais cotidianas.
A poesia intimista e reflexiva é outro aspecto relevante na poesia de Graça Vilhena, principalmente quando o propósito é a tentativa de interpretar o eu lírico através da imagem que se apresenta no texto intrinsecamente relacionada à poesia.
Otávio Paz define a poesia como “a outra voz” que é “memória feita imagem e está convertida em voz. A outra voz não é a voz do além-túmulo: é a do homem que está dormindo no fundo de cada homem. Memória que presentifica o passado pela recordação, atitude fundamental lírica: o não distanciamento, isto é, a fusão do sujeito e do objeto, do mundo interior e exterior, passado, presente e futuro. Por essa razão, Emil Staiger denomina recordação a essência lírica, com base na etimologia da palavra, O vocábulo “recordar” deriva do latim: é a junção do prefixo “re”, que significa “repetir” e “cordis”, que significa “coração”. Assim, “recordar” (re-cordis), tem o sentido de fazer passar novamente pelo coração. Através do poema “Rua da Glória” (atual Lizandro Nogueira) tem-se o resgate da memória pela recordação em sua essência lírica não de uma rua, mas de uma cidade:
paisagem de sol nascido
na estação do trem
cerzindo os dias
sobre as pedras da rua
que abrolhavam luz
manhãs tangiam beatas
palmolivelmente
para a missa da Amparo
senhoras varriam calçadas
recolhiam leiteiras
e caçoavam histórias
com suas línguas de camaleão
no mercado central
as verdureiras arranjavam
buquês de cheiros-verdes
e mais além
mulheres permaneciam
sem hora de seus dias
dissolvendo-se em transparência
nas escamas do cais
Através da poesia podemos recuperar uma época e descobrir como se davam as relações sociais no nosso passado. Tem-se no presente a imagem do cenário de Teresina na década de 1950. Poesia que se constrói em estreita relação com a visualidade presentificada pela memória por meio de uma linguagem metafórica, sinestésica e criativa. O neologismo, tão recorrente em muitos de seus poemas, aqui “palmolivelmente” é empregado com humor e como referência á fragrância do sabonete palmolive que exalava das beatas, já comercializado àquela época. Seguem a mesma linha temática do texto Rua da Glória os poemas: Cine Rex (poema visual e de influência concretista), Na beira do Cais (todo ele composto com versos tetrassílabos, isto é, com quatro sílabas) e o Garrafeiro (poema que recupera a imagem de um profissional que não mais existe entre nós, a exemplo do leiteiro, padeiro, vareiro e pescador de defuntos. Este último, retratado na obra Palha de Arroz por Fontes Ibiapina.
O prof. e filósofo Flávio Kothe, na obra “Literatura e Sistemas Intersemióticos”, afirma que o texto literário, isto é, o artefato, é como Lázaro no túmulo: “a leitura é sua ressurreição. Os textos são cadáveres que ressuscitam de seus túmulos ao toque das mãos e dos olhos do leitor. ” (KOTHE, 1981, p. 17). Assim, os motivos que tecem a estrutura de uma obra poética, oferecem inúmeras possibilidades de leitura.
O poeta Mário Faustino criou e manteve no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB) uma página inteiramente dedicada à poesia, no período de setembro de 1956 a janeiro de 1959. As matérias que ali publicava eram distribuídas em páginas por diferentes seções. Dentre essas seções, a mais lida chamava-se “Pedras de Toque”, título inspirado nas célebres touchstones de Wallace Steven: eram versos de poemas que exemplificavam os momentos de alta realização da linguagem poética.
Neste ensaio, selecionei 10 pedras de toque que considero os momentos mais expressivos da poesia de Graça Vilhena:
1. Meus olhos velam tua ausência
2. Os dias são feitos de um longe esquecer
3. Do nosso segredo sabe a flor que vigia a noite
4. Meu coração é um pássaro alongando o céu das incertezas
5. Menino, passa pra dentro, senão o amor te pega!
6. O amor ultimamente anda assim desprevenido sem vontade de ficar.
7. Arranquei de mim tua lembrança como quem solta um pássaro que não canta
8. Ria do que sobrou – dos meus pedaços eu renasço.
9. A mágica feliz do amor: ser amado à loucura e não ser louco de amar.
10. Foi o cafuné das andorinhas que adormeceu os sinos da cidade.
A obra da professora Graça é vasta, bela e agradável de ler. Diz o escritor IÍtalo Calvino que uma obra clássica é a que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Por isso, a análise que realizamos da obra literária de Graça Vilhena, por si, não esgota todos os aspectos estéticos e estilísticos de seus poemas que possuem um campo linguístico fértil, multissignificativo e plurissignificativo à espera de outros leitores e de outras leituras.
[1] EULÁLIO, Carlos Evandro. Lírica e Memória em Pedra de Cantaria. Teresina-PI : Revista Presença Ano XXZVIII, nº 50 – Conselho Estadual de Cultura, 2013, p.38/41
[2] SANTOS, Cineas. Água de Cacimba. In VILHENA, Graça. Pedra de Cantaria, Teresina : Nova Aliança, 2013, p. 8
[3] VILHENA, GRAÇA.Não querer, In Em todo canto. Teresina : Corisco / IDB, 1997, p. 19
[4] Não querer, VILHENA, 1997, p.19.
[5]folha.uol.com.br/ilustrissima/2012/07/1116430-erotismo-poesia-e-psicanalise-em-entrevista-inedita-de-drummond.shtml, acessado em 4/11/18.
[6]H. Dobal. Um sinal de grandeza. In VILHENA, Graça. Em todo canto. Teresina : Corisco e IDB, 1997, p.7
[7] ADORNO, Theodor. “Palestra sobre lírica e sociedade.” In. Notas de Literatura. Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 66
[8] ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1988.
[9] BOTTON, Alexandre M. A individualidade imanente na poesia lírica. www.unemat.br/revistas moinhos/media/files, acessado em 3/11/18.
[10] SILVA, Anazildo Vasconcelos da. Semiotização literária do discurso. Rio de Janeiro : Elo Edit. 1984, p97