O primeiro filme que assisti com ele foi “Marcados pela Sarjeta”. Eu era tão pequeno, mas tão pequeno, que lia o título como “Marcados pela Sargenta”. Era a história de Rocky Graziano, um boxeador fracassado, ancestral de personagens como os de De Niro em “O Touro Enfurecido” e Stallone em “Rocky”. Newman morreu dias atrás, aos 83 anos, depois de uma carreira em ziguezagues, na qual trabalhou em grandes filmes e em numerosas besteiras, sem nunca perder a pose, o charme e a competência.
Não era um grande ator, no sentido em que De Niro, Al Pacino e Dustin Hoffman são grandes atores: grandes impersonadores de psiquês que não são as suas. Newman era um só, fosse no papel de gangster, de cowboy, de político, de astronauta, de marido, de bebum. Mas esse um-só dele tinha (graças ao Actor’s Studio, e a uma inteligência muito acima da média) uma tal riqueza de nuances que 200 filmes (ou sei lá quantos fez) não esgotaram.
Newman era um ai-jesus do público feminino; moreno e de olhos verdes, gozava de uma unanimidade comparável à de Chico Buarque. Dava a quase todos os seus personagens uma aura de masculinidade descuidada, de quem é homem sem fazer força, e se comporta com as mulheres sempre no ponto médio ideal entre o rude e o delicado. Foi um galã másculo sem a truculência de seus contemporâneos Burt Reynolds, Burt Lancaster, Kirk Douglas. Foi galã e foi estrela com certo desdém por tudo isto. Era independente demais para o gosto de Hollywood, que ainda assim conseguiu espremê-lo até a última gota.
Para meu gosto, seus grandes papéis são as divertidas parcerias com Robert Redford (“Butch Cassidy”, “Golpe de Mestre”), sua densa e distanciada interpretação em “Ausência de Malícia”, seu detetive Lew Harper baseado nos livros de Ross MacDonald (“The Moving Target”, “The Drowning Pool”), o atormentado Billy the Kid de “Um de nós morrerá”. Fez, sem esquentar a cabeça, personagens meio improváveis como um ganhador do Prêmio Nobel de Literatura (“The Prize”), um cientista nuclear (“Cortina Rasgada”), um caçador de focas futurista (“Quinteto”). O último papel em que o vi foi há vinte anos, como o General de “Fat Man and Little Boy”.
Newman é um dos muitos atores/produtores/diretores que justificam a existência da máquina cinematográfica de Hollywood. Longe do que o cinema tem de melhor, é o que o cinema hollywoodiano conseguiu produzir de melhor. Era (pelo que se lê) um sujeito decente, ético, humanitário. Para o público, foi um ator correto, e um eventual diretor sem brilho mas com alma. Alguém a ser lembrado numa época em que os EUA são vistos pelo mundo (com razão) como uma Ditadura Financeira sustentada pelo maior exército da História, e o povo americano é visto (injustamente) como uma massa informe de caipiras, bairristas na política, provincianos na cultura e fundamentalistas na religião. O mundo de Newman é um reflexo do lado não-estragado da América.