Paráfrase de uma crítica
Por Carlos Evandro Martins Eulálio Em: 26/07/2009, às 18H35
Por Carlos Evandro Martins Eulálio
Pretende-se nesta resenha fazer uma reflexão sobre o texto “A Criação do Texto Literário”, de Leila Perrone Moisés, o qual está inserido na obra Flores na Escrivaninha.[1] Como o próprio título anuncia, o texto levanta alguns questionamentos de natureza teórica sobre o fenômeno da criação literária.
Inicialmente, a autora mostra a relação entre os significados dos vocábulos texto e criação. A criação diz respeito ao “tornar existente aquilo que não existia antes,” enquanto o texto consiste na materialidade do escrito, isto é, na obra literária.
A palavra criação, por sua vez, é associada aos termos invenção, produção, representação e expressão. No sentido literário invenção é referida não conforme Platão, isto é, como entidade relacionada ao divino ou absoluto, mas como prerrogativa do engenho humano, que torna a vida mais rica e interessante, ressaltando mais suas habilidades do que a inspiração. A produção refere-se à materialidade do texto e a este se liga mais estreitamente, por sua natureza concreta. Os termos representação, do ponto de vista da mimese aristotélica, e expressão remetem àquilo que é exterior ao texto. Esta diz respeito ao ato de escrever, enquanto aquela se ocupa do real, como ponto de partida, mesmo que para transformá-lo.
A autora deixa explícito que as palavras invenção, produção, representação e expressão, com as quais tenta explicar o fazer literário, embora insuficientes para tal, são, no entanto, retomadas por ela como subsídio de investigação da criação literária. Por essa razão, ressalta a impossibilidade de “a linguagem representar ou expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objeto que seja auto-suficiente ou, pelo contrário, reabsorvido e utilizado pelo real concreto.” (2006, p.101). Assim, a literatura, ao partir do real, impossibilitada de representá-lo da forma como se apresenta, desvela “um mundo mais real do que aquele que pretendia dizer.” A literatura nasce, portanto, dessa falta ou lacuna que seria, portanto, preenchida pela linguagem. Esse mundo a que a autora alude é o mundo “insatisfatório” em que vivemos, cuja maneira de reagir a essa insatisfação tem sido através da religião, aceitando os desígnios da providência, e remetendo o mundo sem falhas para o além-morte; pela ação social procurando fazer pequenos ajustes no real e finalmente por meio da imaginação, isto é, do faz-de-conta que nos ajuda a superar os descontentamentos causados pelo real.
Em suma, o artista procura compensar aquilo que lhe falta pelo exercício da imaginação. É a literatura uma forma de preencher os vazios da existência pela construção de um mundo idealizado por palavras, sempre numa tentativa de ultrapassá-lo. O universo criado pela linguagem literária, embora não seja totalmente adequado ao real, paradoxalmente deste sempre estará próximo.
Espelhando a realidade ou não, a literatura sempre a ela se refere, seja em situação de fuga ou não, seja tanto para questioná-la quanto para reinventá-la. Daí a relevância da forma inventiva na realização da obra literária, uma vez que a palavra tem o mérito de fundar uma nova realidade, ou pelo menos transformá-la. Como lembra Otávio Paz, citado pela autora: “A palavra não só diz o mundo, mas também o funda – ou o transforma”. A autora conclui que a literatura, como qualquer outra atividade, “nasce da vivência da falta e da aspiração à completude.” Essa completude a literatura não nos pode dar, mas nos satisfaz, na medida que transmite conhecimentos e saberes sobretudo o saber da falta e o permanente desejo de supri-la.
Do texto de Leila Perrone-Moisés, dentre muitas informações sobre a criação artística, extrai-se a noção de que a literatura, embora se submeta ao sistema de linguagem comum, nos seus diversos níveis de comunicação, e busque apoio no mundo real, com ele não se confunde nem se compromete, porque está além e acima dele graças ao poder criador e transformador desse mundo na pessoa do escritor. No entanto, não esqueçamos de que o texto, por se constituir de múltiplas vozes e de escritas múltiplas, inexoravelmente chega a um lugar e esse lugar, conforme Barthes, não é o autor, é o leitor: “o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino; o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.” [2]