Para escrever (e ler) literatura
Em: 09/07/2019, às 15H35
[Cassionei Niches Petry]
Proponho-me a escrever uma crítica sobre um livro. Por certo, gostaria que meu texto fosse lido. O livro em questão aborda a escrita, não a que faço aqui, mas sim a literária (apesar de considerar o gênero crítica como tal), especificamente de ficção. Propõe-se a ensinar as técnicas da escrita criativa, pelo que se pode interpretar pelo subtítulo. O objetivo é municiar o escritor com armas que, devidamente direcionadas ao leitor, o façam seguir a leitura. E não há nada que não façamos se tivermos uma arma apontada na cabeça.
Não, não era assim que eu gostaria de iniciar a crítica. Volto ao princípio.
Assim como este plumitivo que ora escreve, a preocupação de um autor é escrever e ser lido. Por isso ele pensa e repensa formas de começar, desenvolver e concluir o projeto, no intuito sempre de atrair a atenção do leitor. Não apontarei nenhuma arma na sua cabeça, meu caro (muito menos uma pena – o teclado do computador, talvez), mas espero que tenha conseguido despertar sua curiosidade, tanto para permanecer nesta página e, depois dela, ler a obra analisada.
Sem mais delongas, vamos ao livro. Quando se é novo no ramo, ou nem tão novo assim, qualquer ajuda é bem vida. E se essa ajuda for de um grande escritor, há quem invista dinheiro, viaje quilômetros e largue até o emprego para ouvir, aprender e ser lido por esse mestre. Alguns sonham com uma carreira promissora. Outros, simplesmente, querem ser lidos. Há quem deseje apenas se aprimorar. Uma determinada oficina literária, uma das mais antigas do país e ministrada por um grande romancista, numa igualmente grande universidade, é o espaço onde se pode treinar habilidades para se chegar a algum lugar de destaque. Muitos nomes que passaram por essa oficina comprovam sua eficácia.
Não disse o nome da obra ainda. Já chegaremos lá. Antes é importante dizer que uma das lições para se criar uma narrativa que envolva o leitor é a elaboração de um conflito que esteja “interligado à questão essencial do personagem” (isso está no livro). Digamos que nossa personagem seja a Oficina e que sua questão essencial é ensinar a quem se propõe a escrever a fazê-lo da melhor forma possível. Suponhamos, também, que há um personagem que não concorda que a Oficina possa realizar isso, além de considerá-la como uma fraude ou caça-níquel. Demos a ele o nome de J. H. Dacanal, que escreveu um artigo demolidor, que depois foi publicado em livro (Oficina literária: fraude ou negócio sério?, Editorial Soles, 77 páginas). Esse antagonista (termo que não agrada o professor da oficina) fala representando parte dos intelectuais que desprezam qualquer curso de escrita criativa. Na minha leitura, este “vilão” (às vezes sou simpático aos vilões) quer mostrar a todo o mundo que a Oficina não tem valor. Pois o livro (já direi qual é, impaciente leitor) é uma forma de narrar o percurso da nossa protagonista para provar sua relevância.
O narrador da obra é o professor, o mestre, o romancista Luiz Antonio de Assis Brasil. O romance que conta as aventuras da Oficina tem o título (ufa!, suspira o leitor deste jornal) Escrever ficção: um manual de criação literária (Companhia das Letras, 396 páginas). Assis Brasil também é personagem (o “poderoso da história”), assim como um certo Thiago (adjuvante ou personagem secundário?), que dialoga em vários momentos com o mestre. Entre as várias lições que vão guiando a jornada dos heróis dessa história, se aprende, por exemplo, que ter talento é uma “ideia anacrônica e, pior, preconceituosa”; que “é o personagem, quando bem construído, que dá sentido a tudo o que acontece na história; que “se não há conflito, não há interesse no leitor e, portanto, não há literatura”; que “escrever ficção é tramar”; que a escolha errada de quem narra a história, a focalização, pode jogar todo um trabalho fora; que “não há espaço inocente na narrativa”; e que o “tempo, para todos nós, e para qualquer personagem, é o ontem, o hoje e o amanhã, tudo misturado”, mas deve-se ter cuidado para que seu uso “não seja uma coisa mecânica”.
Vale destacar ainda o capítulo sobre o estilo. O ideal seria escrever com períodos longos, muitas vírgulas, ocupando “uma mancha gráfica compacta” na página, estilo ao qual se dá o epiteto de “abundante”? Ou o melhor é o estilo essencial? Enxuto. Ágil. Frases incisivas.
O desfecho dessa jornada é um capítulo apresentando um “roteiro para a escrita de um romance linear”, que não verdade é um resumo do que se viu em todo o manual.
Para ampliar e demonstrar suas lições, o professor se utiliza de muitos exemplo do que se escreveu até hoje, dos clássicos aos contemporâneos, incluindo obras de ex-alunos da Oficina. E é aí que o livro pode atingir um público maior, pois as análises também ensinam a ler um texto ficcional. Esse, aliás, costuma ser o argumento quando se defende a importância das oficinas: se não formam escritores, podem formar melhores leitores. Por isso não ficaria ruim se a obra se chamasse “Ler ficção: um manual de apreciação literária”.
E Finis coronat opus.
(Cassionei Niches Petry é crítico literário e escritor. Autor de Os óculos de Paula e Cacos e outros pedaços.)