OS POETAS SYLVIO FIGUEIREDO E LILI LEITÃO> EPÍGONOS, SIM, MAS NEM TANTO
Por Cunha e Silva Filho Em: 11/05/2024, às 19H25
OS POETAS SYLVIO FIGUEIREDO E LII LEITÃO: EPÍGONOS, SIM, MAS NEM TANTO.
RESUMO:Este ensaio tem como eixo central realizar um estudo comparativo acerca de dois poetas fluminenses quase esquecidos, senão inteiramente das gerações, Sempre residiram em Niterói. Seus nomes: Sílvio Figueiredo (1 891-1972) e Lili Leitão (1901-1936), cujo nome por extenso era Luis Antônio Gondim Leitão .Grandes amigos, trabalharam juntos com o objetivo de conseguir publicar os seu poemas sob o título Sonetos (1913). Seu desejo foi cumprido e os Sonetos finalmente, publicados, em 1913, pela Livraria Editora Jacinto Silva. Ficou mais que comprovado o papel saliente de ambos no tocante ao que ocorria no restaurante Café Paris, frequentado que era por boêmios, artistas, escritores do ambiente intelectual niteroiense. Era a época em que o Café Paris atingiu seu apogeu durante três décadas do século passado, quando o ambiente divertid.o alegre e descontraído desses grupos que lá se juntavam no período conhecido como a Belle Époque, os anos vinte e trinta até, aproximadamente os fins da década de 1931. Por conseguinte, os grupos de poetas divertidos e talentosos daquele período desfrutavam do prestígio da vida intelectual niteroiense, sobretudo, considerando as duas figuras mais proeminentes enfocadas neste ensaio que pretende empreender uma análise comparativa entre a poesia de um e de outro desses dois poetas de Niterói, realçando-lhes as diferenças e similaridades, quer na dicção, quer nos temas por eles explorados, i.e., examina as estruturas, estratégias e artifícios retóricos de cada um no tocante ao uso de uma forma fixa de poema, o soneto. Poder-se-ia acrescentar que esses grupos de escritores habitués do Café Paris oportunizam uma excelente pesquisa de um farto material literário a pesquisadores interessados em novos trabalhos acadêmicos voltados a investigar a poesia e os valores estéticos desses poetas como também de outros mais que frequeantara o Café Paris.
Palavras-chave: Café Paris – poetas – Niterói – poemas - sonetos
ABSTRACT. This essay has its main axis focused on a compartive study of two poets almost, if not all, forgotten by present generation.They lived all their lives in Niterói, RJ. S Their names: Sílvio Figueiredo (1891-1972) and Lili Leitão(,890-1936), whose full name was Luis Antônio Gondim Leitão. Both were close friends and even worked together with the purpose of having their sonnets published under the title of Sonnets.This desire was carreid out and the book was finally edited by the publishing company in Rio de Janeiro, called Livraria Editora Jacinto Silva,1913. It goes without saying that they played important roles as far as literary life is concerned on what happened in a well-known and quite frequented restaurant, the Café Paris, by boheimians, writers and artists from the intellectual circle of Niterói. The time the Café Paris had its pick of fame dating back to the three decades of last century.both of them gathereed together in the night life of the Café Paris formed an amusing and talented group of intellectual life took place during the life span that corresponds to the so-called self-indulging years of Belle époque, a period between the twenties and thirties that elapsed around the end of 1931 in our country. Therefore, both poets were, so to speak, highly regarded and leading figures in the literay life of Niterói. This essay aims at presening a comparativce study of the two friends by showing their similarities and their diffrences traits, of dictions and diversifed themes. i.e., as to the structure of their poems and rhetoric devices and strategies in the as well useo of a fixed form of literary compostion, the sonnet. One might add that the groups of writers who were Café Paris’s goers offers an excellent and pleasant opportunitiy for researches interested on the aesthetic values of the these poets as well other poets who also joined Café Paris
Café Paris – poets – Niterói - poema – sonnets
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11 de mai. de 2024, 09:24 (há 1 dia) |
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Tinham apenas vinte e dois anos e vinte e três anos, respectivamente, Sylvio Figueiredo e Lili Leitão quando publicaram, em 1913, pela Livraria Editora Jacinto Silva a obra Sonetos, reunindo, na primeira parte, vinte sonetos do primeiro e, na segunda parte, igualmente vinte sonetos de Lili leitão. Na capa, os nomes dos dois poetas aparecem, na segunda parte, separada da primeira, surgem os sonetos. No corpo do livro, os sonetos de Syílvio Figueiredo não apresentam títulos. São apenas indicados por algarismos romanos de I a XX.. Na segunda parte, separada da primeira apenas com a indicação Sonetos, estão reunidos os vinte sonetos de Lili Leitão, todos exibindo títulos em sua maioria dedicados a alguém do convívio ou amizade do autor.
Sylvio Figueiredo e Lili Leitão são intelectuais que formaram parte do festejadp grupo de frequentadores noturnos da vida intelectual de escritores, artistas, jornalistas do velho Centro de Niterói, cujo espaço compreendia o Hotel Restaurante e o Café Paris, segundo informações do historiador Wanderlino Teixeira a Leite filho. A Roda teve duração de, pelo menos, três décadas visto que só acabou depois de um incêndio de 1933, que se alastrou até atingir as proximidades do local em que os concorridos encontros se realizavam. Entretanto, em menos de dez anos,, com a demolição de prédios no entorno e com a abertura da Avenida Amaral Peixoto, a famosa Roda deixou de existir.
À primeira vista, o conjunto de poemas oferece alguma confusão de autoria para o leitor caso não fosse este orientado pelas indicações de alguns sonetos republicados na obra humorístico-jocosa de Lili Leitão, Vida apertada (1923), ou por outras pistas informativas colhidas em obras de estudiosos desse admirável escritor. Comediógrafo e exímio improvisador nascido em Niterói.
Sabe-se que a breve coletânea Sonetos não foi bem recebida por alguma crítica da época. Todavia, Isso não é motivo bastante sólido para que se revisite essa obra em aos olhos de hoje se possa reavaliá-la sob novas perspectivas de interpretação e de julgamento crítico.
Alguém já afirmou que a literatura não se forma apenas de gênios, de grandes talentos. Escritores chamados menores muito têm a ensinar aos críticos e historiadores literários, até mesmo no processo de avaliação crítica, no estudo comparativo entre autores, os menores, os que os ingleses chamam de minors, para diferenciar dos majors, dos maiores, são balizas necessárias à avaliação e, por conseguinte, jamais podem ser subestimados nem muito menos alijados das historiografia literária. Outro dado contraproducente na avaliação dos menores bem poderia estar associado ao critério subjetivo e, portanto, precário, de algum historiador ou crítico, ou seja, o que é menor para alguns, não o é para outros. As nossas histórias literárias, mesmo as mais qualificadas, têm com frequência incidido neste erro de classificação valorativa de autores, quando não de crassa omissão de escritores com reconhecido valor literário. Poderia citar alguns exemplos dessa deficiência historiográfica. Confio, porém, na argúcia do estudioso e pesquisador para confirmar ele próprio esse fato.
Luis Figueiredo e Lili Leitão, no primeiro decênio do século 20, imagino, eram amigos e cúmplices nas incertezas da vida literária e da própria sobrevivência Um dia, decidem editar, num mesmo volume, os Sonetos de 1913. Culturalmente, seu tempo se situa na chamada Belle Époque, a qual, na Europa, terminaria com a Guerra de 1914 e, no Brasil, se estenderia além de 1930.
Os dois poetas niteroienses se afirmariam, nos seus redutos provinciais, num período de grandes transformações nas artes ocidentais, com o surgimento das vanguardas e com todos os seus desdobramentos em outros países, inclusive no Brasil. Literariamente, aqui no país, passávamos por um tempo literário de coexistência de estilos epigônicos, como o Neorromantismo, Neosimbolismo, Neo-parnasianismo de formas e temas, ou melhor, de sincretismo nas letras, na poesia, sobretudo.
Sylvio Figueiredo e Lili Leitão, com as suas obras, não chegaram, como na maior parte de autores da província, em qualquer estado brasileiro, com raras exceções, a níveis de aceitação das maiores figuras de escritores que, no Rio de Janeiro, na Metrópole, conseguiram a fama e o reconhecimento a ponto de, nas histórias literárias, serem citados e comentados.
Da mesma forma que grandes nomes de escritores provincianos não ultrapassaram, em sua maioria, os limites da província natal, os exemplos de Sylvio Figueiredo e Lili Leitão praticamente só se firmaram um Niterói e nas suas rodas literária e de grupos de boêmios noctívagos itinerantes, de talento sim, mas não a ponto de ganhar notoriedade nacional ou pelo menos nesta caixa de ressonância que sempre foi a cidade do Rio de Janeiro, na época, capital da República Velha (1889-1930).
Isso, contudo, não me parece nenhum desdouro às figuras dos dois escritores objetos dessa exposição.O sentido deste estudo, ao contrário, é o de recuperar para o leitor atual uma parcela da produção desses autores e dela extrair o que de permanente ou de original neles se pode buscar na oportunidade em que intelectuais nascidos ou radicados na “Cidade Sorriso” estão empreendendo uma justa retomada da obra um tanto esquecida de dois autores que sem dúvida em muito ajudaram a formar o espólio da produção literária e artística de Niterói e do estado fluminense.
Um passo nessa direção já foi dado com a publicação recente, segunda edição (2009) da obra Vida apertada de Lili Leitão pela Editora Nitpress, num esforço meritório e oportuno do organizador da edição crítica, o professor e ensaísta Roberto Karhlmeyer-Mertens,[3] que reuniu sonetos humorísticos de Lili Leitão num volume único contendo – diria quase exaustivamente - o que de melhor se poderia recolher da fortuna crítica do poeta com importantes trabalhos de cunho não acadêmico e ensaios de especialistas e críticos de [4]literatura, a par de contar ainda com um indispensável Glossário fundamentado no léxico de Vida apertada criteriosamente preparado pelo professor e estudioso da lexicografia, Luiz Antonio Barros, com uma cópia fac-similar da obra, notas do organizador, cronologia do poeta, bibliografia ativa e passiva do poeta e índice onomástico e analítico.
Não é meu intuito desenvolver neste trabalho um estudo mais comparativo, mais denso, das poéticas de Luis Figueiredo antes examinar alguns tópicos de natureza temática e analítica de tal sorte que poético de ambos os autores. Para isso, a linha de pensamento abrangerá, separadamente, cada um deles sem, todavia, negligenciar, quando me parecer necessário, algum cotejo entre eles em aspectos formais ou temáticos em que um se avizinhe do outro.
Poetas contemporâneos como seria gratuita a circunstância de que cada um escolhesse o soneto. A meu ver, a condição comum de amizade, de ambiente espiritual e intelectual (Sylvio Figueiredo era também chargista, poeta satírico, jornalista) de que partilhavam entre si e a decisão de trabalharem em conjunto num volume único, ou até mesmo por razões financeiras, possam explicar ou dar alguma pista para a concretização do lançamento desta pequena obra nos idos de 1913.
A POESIA DE LUIS FIGUEIREDO
Lendo e relendo os vinte sonetos de Luis Figueiredo, o analista, pouco a pouco, começa a captar alguns ângulos que lhe aguçam a atenção, aspectos que podem apontar para confrontos com níveis de tratamento de temas e procedimentos formais além ou aquém do que o pesquisador teria como expectativa.
No caso de Sylvio Figueiredo, pelo menos nos poema que dele conheço não seria demérito afirmar que ele pouco se diferenciaria de tantos poetas de seu tempo no que tange ao tratamento do tema do amor e das estratégias poemas, com segurança se pode adiantar ser ele, ainda com apenas vinte e dois anos, um artista do verso que já demonstra familiaridade com os elementos intrínsecos da criação literária, com a economia do verso e sobretudo com um raro talento rítmico, ainda que a significação temática se mostre um tanto imatura na arquitetura geral dos poemas.
Como reforço a essa reflexão me vem um pormenor relativo à formação cultural de Sylvio Figueiredo. Segundo informa o ensaísta Roberto S. Kahlmeyer-Mertens o poeta era pessoa ilustrada, conhecedor de alguns idiomas modernos, que lia no original. Poetas de renome para leitores de sua época teriam sido Baudelaire, Leconte de Lisle, José Maria Heredia, entre outros
Outro fato que me parece útil assinalar foi que Sylvio Figueiredo interrompeu seus planos de escritor, pois não foi um autor de um livro só, porquanto à sua atividade n a imprensa, ainda escreveu em prosa: Contos que a vida escreve (1931), Quixote (1934) e Passos na areia (1962); em poesia: legou ainda Forja e Atlantes (1934), provavelmente escritas na década de 1930.
Seu falecimento se deu em 1972, quer dizer, não deixou, ao que tudo indica, uma obra extensa, mais indicando que, ou deixou de publicar regularmente, ou o que tenha escrito não tenha vindo ao conhecimento do público, i.e., não se publicou. Seria este ponto obscuro de sua biografia mais uma oportunidade de pesquisa a ser desenvolvida pelo historiador literário apreciador de sua produção.
Dos vinte sonetos de Sylvio Figueiredo, posso distinguir duas principais vertentes temáticas: a amorosa e a jocoso-heterodoxa.. Optamos por denominar à segunda vertente jocoso-heterodoxa por reunir esta temas com predominância jocosa e outros temas que, embora falando ou não do amor em contexto humorístico, representassem traços de modernidade conexionados com outros modos de construção poética indicando desvios do tradicionalismo literário e utilizando recursos de composição como os metapoéticos, os metalinguísticos, a paródia, a apropriação de textos não-poéticos A primeira abrange 11 sonetos: I, III, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII, XIV e XIX; a segunda, compõe-se de 9 sonetos: II, IV, V, VI, XIV, XV, XVII, XVIII e XX.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE AMOROSA,
Como se vê, a primeira vertente tem no conjunto de sonetos de Sylvio Figueiredo, uma leve superioridade numérica sobre a segunda. Quer dizer, a exploração do tema do amor se multiplica em motivos combinados a outros sentimentos pessoais neles imbricados, destacando-se: a sensualidade feminina (soneto I), a distância física do amor (soneto III) o amor sensual ou até mesmo com traços eróticos (soneto VII), a efemeridade física da beleza da amada (soneto VIII), sensualismo amoroso ( soneto IX), o amor não consumado (soneto XI), da passagem do amor sonhado à posse do amor (X), a natureza em descompasso com o sentimento do amor desiludido (soneto XII), da incerteza do amor ( soneto XIII), o desencontro amoroso (soneto XIV) o sentimento do amor ausente ou o receio da perda do amor (soneto XIX)
Obviamente, todas as nuances amorosas de seu estro fazem largamente coro com outras vozes poéticas, notadamente dos estilos literários românticos, parnasianos e até mesmo simbolistas.Em outras palavras, o lirismo que perpassa os sonetos de Sylvio Figueiredo, segundo atrás sugeri, mostra-se caudatário dessa mistura de estilos literários, desse sincretismo, o qual, à altura da produção do autor, final do século 19 e início do século 20, ou seja, já em fase de epigonismo, amolda-se ao conservadorismo literário do Romantismo, Parnasianismo e Simbolismo onde pontificavam grandes nomes da poesia brasileira.
Sem ostentar o nível alcançado por um Castro Alves, um Bilac, um Alberto de Oliveira, um Raimundo Correia, um Cruz e Sousa, Sylvio Figueiredo de certa maneira e consoante seu poder de adaptação, de influência de mimetismo, inclusive por via direta dos poetas portugueses e, por via indireta, das leituras de bons poetas franceses muito lidos no original ou em traduções no país de certa forma procurou obter o máximo daquela adaptação da tradição do cânone.
Este espírito de imitação no âmbito literário se estenderia a padrões de modas e de cultura francesa, muito comuns durante a Belle Époque no Rio de Janeiro, Metrópole cultural do país, que ditava, ou melhor, irradiava essa submissão cultural a outras cidades brasileiras .Não é gratuito Niterói dar nomes franceses a restaurantes como “Café Paris”, ou cinemas com nomes franceses como “Pathé” e mesmo francesismos no corpo de poemas tanto de Silvio Figueiredo quanto de Lili Leitão.
Mimetizando a tradição do cânone poético ocidental, Sylvio Figueiredo não deixou de levar em conta alguns elementos estruturais da poética ocidental: a dicção, a semântica do texto, o aparato ou solenidade dos versos, temas de extração clássica, o ritmo, a musicalidade, o apuro estrófico. A despeito de existir, em alguns sonetos, a posição ideológica do o narrador lírico de fundo romântico, a moldura dos sonetos, em geral, inclina-se para a forma parnasiana.
Posto tenha o poeta atuado nessa fase de cruzamentos ou coexistência de estilos e, segundo tenho reiterado, em tempo de epigonismo, até mesmo pela referência da forma poética empregada, o soneto, muito praticado por parnasianos, não vejo que essa preferência por aquela forma fixa seja necessariamente uma maneira de o poeta rebelar-se(falando-se aqui não só de Sylvio mas também de Lili Leitão) com os novos ismos trazidos pelas vanguardas europeias e pelos primeiros avanços do Modernismo brasileiro que se avizinhava.
O fato é que tanto Sylvio Figueiredo quanto Lili Leitão, no primeiro decênio do século passado, já haviam praticamente se formado no domínio das letras, ou seja, nessa fase de transição da poesia brasileira. Esta questão faz parte do âmbito da sociologia da literatura, acrescida da circunstância de que ambos os poetas, posto que vivendo perto da Metrópole e separados apenas pela Baía da Guanabara, não se arredaram da vida boêmia e provinciana de Niterói.
Pesquisas desse lado biográfico do poeta Sylvio - e o mesmo serviria para Lili Leitão -, contribuiriam muito para estabelecer nexos entre a vida literária de ambos e, portanto, em parte ainda seriam bem úteis como “elementos extrínsecos” à visão mais ampla da poesia dos dois autores. Com poucas exceções, este fenômeno de comportamento cultural de intelectuais da província se me afigura muito ocorrente em outros estados brasileiros. Outro fator determinante provavelmente seria a condição social modesta dos dois.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE JOCOSO-HETERODOXA
Conquanto a dicção da vertente amorosa se pauta pela nobreza de vocábulos raros, na linha do sermo nobilis da palavra aristocratizante como moeda corrente dos estilos parnasianos, simbolista ou mesmo românticos, a vertente jocosa satírica, irônica ou humorista se permeia pelo rebaixamento do sermo vulgaris, do antilirismo – sinal de modernidade - como elemento fundante da poiesis.
Os sonetos dessa vertente desssacralizam,.por conseguinte, qualquer pretensão de seriedade em lidar com a tradição da vertente amorosa, na qual a luta do eu lírico canta a família às voltas com problemas de natureza financeira, ressaltando-se, a par disso, a novidade introduzida pela mudança, a que já aludi, do aspecto de oralidade, aspecto este que equivale a um turning point em relação ao conservadorismo literário.
Destarte, podem-se apontar, no soneto II, vocábulos como “catadura”, “berreiro”, “descompostura”, “ferve”, os sintagmas,” “vida torta, ” “tempo quente”, “pobre diabo”, além da nomeação de um personagem visivelmente de extração popular, Candido Barreiro . Esta ausência de um ambiente físico e humano interagindo com uma subjetividade e evasão romântica contrasta radicalmente com a atmosfera lúdica da comédia à moda de um Artur de Azevedo, de um Martins Pena. Ou seja, a poesia satírica se aproxima dos códigos prosísticos da representação dramático-jocosa:
[...]
Para mais aumentar tal desventura,
briga a mulher porque falta dinheiro
e lhe permite uma descompostura
se não for paga a conta do padeiro4
[...]
No soneto IV, de forma análoga, os desencontros de uma família são objeto do eu lírico que, distanciado do quadro retratado, expõe as mazelas de um personagem protagonizando uma situação existencial grotesca devido ao vício da bebida, enquanto, no lar abandonado por ele, “choram, filha e esposa na miséria.” O elemento do “enredo”, também manifesto no grotesco do vocabulário do poema reitera a ruptura entre o léxico elevado da primeira vertente em comparação com a segunda – traço também de modernidade lírica - nos sintagmas “boca suja”, “testa negra”, “desgraçado aborto”, nos lexemas “adunca”, “asquerosa”, “imundo”, “miserável, “torto”.” Este campo semântico passa a ser uma recorrência de uma realidade física e humana degradante, valendo como ressonância - poder-se-ia aventar - do espaço poético de um Augusto dos Anjos.
A poesia de Sylvio Figueiredo, a esta altura de amostragem e comentários já me permite afirmar ter ela ultrapassado os limites do mero epigonismo para uma fase aberta a formas de realizações artísticas justificando-se o título deste estudo e a qualidade do verso do poeta que, absolutamente, não se restringindo apenas a formas estagnadas do sistema literário, contudo abriu-se a novas formulações de sua poética.
O soneto V não se desvia da verve do conjunto de poemas da segunda vertente.
O poema se realiza pela desconstrução do rival por parte do eu lírico em questões amorosas. Em consequência, o soneto se estrutura à base da demolição física e moral do adversário. Entretanto, logo no 1º quarteto, o retrato físico da jovem da vizinhança, motivo da rivalidade amorosa, embora seja objeto de admiração do eu lírico, ao mesmo tempo lhe é objeto de critica. Com ela não existe nenhuma possibilidade aparente de uma aproximação maior. O objeto de desejo amoroso se frustra desde o início do poema, sem que exista nenhuma chance de conquista, tal como faz notar a citação abaixo:
[...]
Eu, que no maior não tenho tal ventura,
invejo a esse magano sem decoro,
que o amor possui de tão gentil criatura.
A jovem namora um homem que, aos olhos do eu lírico, não preenche dotes físicos ou morais. Sua descrição e corrosiva: é “gordo”, “paspalhão”, boçal, “magano”, sem modos. Isto é, o pretendente da mocinha bem criada, porquanto seu status social se indicia pelo adjetivo “chic”, francesismo muito usual na poesia do tempo de Sylvio Figueiredo, tempo de forte influência da moda, cultura e convívio com a língua francesa.
O lexema “magano” salta logo à vista pelo historicismo de que se impregna desde a época colonial através da sátira ferina e debochada de Gregório de Matos:
[..]
Que os Brasileiros são bestas,
E estarão a trabalhar
Toda a vida por manterem
Maganos de Portugal[5]
Ora, “magano” instaura no soneto um sentido de falta de ética, conducente a uma existência conduzida sob o signo da malandragem, do querer levar vantagem. No entanto, um pormenor me chama a atenção logo no 1º quarteto. Na descrição dos predicados estéticos e físicos da jovem moradora da “avenida mais chic da cidade”, jovem “linda”, ela simultaneamente é aquinhoada com alguns epítetos nada moralmente abonadores: uma moça “viva”, “astuta”, “repleta de maldade” e irrequieta, i.e., “não descansa” a “cabecinha”.
Abre-se aí um espaço no poema em que uma camada submersa vem à superfície e lhe dá melhor potencial analítico: o mundo das ações, pensamentos e valores internos do poema surpreende o leitor em termos de realidade e aparência, verdade e mentira, e esse espaço do subtexto não acaba só nesta gama de desvelamentos ou virtualidades. Ao lado do tema do amor frustrado, esboça-se um quadro coreográfico nos domínios do universo da malandragem entre o magano e a mocinha esperta. Ambos possuem elementos para terçar armas a fim de levar a cabo a sedução pela picardia:
[...]
Tem namorado: um paspalhão de pança,
que lhe fala, feliz, muito à vontade
e que os ouvidos seus mimosos cansa
com farta dose de boçalidade.
A malandragem da mocinha pode resultar vitoriosa e a aparência ou realidade de um espertalhão sem modos e balofo pode dar com os burros na água
Por conseguinte, o narrador lírico,ao lamentar a carência de sorte e demonstrar inveja pode perder no enganoso jogo do amor, mas bem poderia também lamentar se a sua sorte no amor fosse a de um “cretino”. Ou seja, aparentemente formam um par perfeito de malandrice cujo desfecho pode ter sucesso ou não. Tudo depende de quem seja mais matreiro.
A qualidade do soneto reside justamente neste cenário de comédia e de humor permitindo ao leitor uma oportunidade de divertir-se com o riso e o ridículo da comédia humana, no que diz respeito ao tema do amor, bem dentro daquele velho preceito de Sêneca: Castigat ridendo mores (“Pelo riso corrigem-se os costumes”).
O soneto descortina um veio rico da literatura brasileira, o tema da malandragem, o qual remonta aos poemas satíricos de Gregório de Mattos e atravessa sucessivamente uma linha que já tornou tradição, muito mais na ficção do que na poesia, e que se fez contínua através de Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto, Marques Rebelo e deságua ainda com força em vários autores brasileiros contemporâneos. Os mecanismos psicológicos e da escrita do humorismo, da jocosidade, próprios da comédia, desencadeiam a derrisão, põem a nu as vilanias, as fraquezas da alma humana, i.e., fazem o homem rir-se de si mesmos.
No soneto VI, me deparo com um curioso exemplo de um poeta que, ao procurar elaborar um soneto de estofo romântico, onde o lirismo possa ser a tônica, termina por “abandonar” o projeto poético, saindo, assim, da fantasia do universo das musas para o ramerrão pragmático da vida “real”, quer dizer, a pena com que comporia o poema, o papel, a inspiração cederam lugar a uma ação prosaica meramente mecânica : fazer as contas de despesas.
O soneto em questão me leva a interpretá-lo como uma possível sátira às formas de composição da tradição literária, do escrever bem uma peça poética de feição romântica. Fisicamente, um poema se escreveu. Porém, como realidade abstrata,como substância, i.e., no plano das ideias, o soneto não se realizou. Aqui se tocam as questões teóricas e complexas entre a realização física do poema e a da poesia.
Compreende-se aí a “luta pela expressão” entre a vontade de criar e a impossibilidade de fazê-lo em decorrência da ausência do “fado”, da “inspiração - questão de monta na poesia do Romantismo Ocidental. Tem–se nesse soneto aquela situação, que é um dado metapoético no qual o autor afirma a impossibilidade da realização de um poema quando, ironicamente, o poema se concretiza na escrita, na linha do verso Esse tópico da criação literária é bem recorrente entre poetas:
[...]
Na confusão dos ritmos me abismo,
Busco das rimas o alvo bando alado,
Nada consigo. Ponho a pena ao lado
E eis que de lado ponho o romantismo.
No soneto XIV, há uma hilariante situação pessoal-amorosa na qual o eu lírico, relando-se um tímido diante da mulher amada, depois de um grande esforço, reúne força e coragem para lhe dar provas de todo o seu sentimento. No entanto, no final do último terceto, a chave de ouro lhe reserva uma surpresa, funcionando então como um exemplo de bathos, um recurso poético da teoria literária que, na definição de Terry Eagleton, seria “um movimento do sublime ao lugar-comum ou ridículo” [6]
- Vou demonstrar-te o afeto que me empolga! –
porém, sorrindo com o sorriso louco,
ela me disse: - Ó filho, dá uma folga! –
Os demais sonetos do autor, XV, XVII, XVIII e XX reiteram esta linha temática introduzindo novas realidades comunicativo-poéticas, não somente no conteúdo como também na expressão literária.
O soneto XV tipifica outra dimensão jocosa, em verso que relatam a história de um convite para aniversário feito ao eu lírico que,, entretanto, não pode ser atendido visto que a ele falta a roupa adequada ao evento e nem a possibilidade de comprar uma nova, em razão da “pindaíba” em que se enreda. É um soneto leve, divertido e que sinaliza para outro tema que rondará a produção poético-humorística de Lili Leitão. Verei esse aspecto quando tratar mais adiante de sua poesia: a falta de dinheiro como elemento constante e provocador de quase toda a sua obra poética. Da mesma sorte, lexemas nada nobres da linguagem comum se fazem presentes no poema “bródio, “cuéca”, “candongas” e expressões proverbiais ou sentenciosas como “... em festa de jacu nhanbu não entra”, os quais, à semelhança do que ocorre no soneto II, comentado atrás, reforçam o nível de oralidade de usos de lexemas apoéticos como sinais de modernidade.
O soneto XVII, o mesmo tom peralta, entre sério e brincalhão, da perspectiva, é claro, do eu lírico, não do receptor, apresenta um diálogo entre um casal, em descompasso de visões na relação entre marido e esposa. O poema, de tema ainda bem atual em algumas camadas sociais, discute a posição machista, patriarcal de um marido que não aceita a possibilidade de a mulher trabalhar em atividade que, segundo ele, só seria compatível ao homem. Trabalho esse em “forja”, vestida de calça, atividade considerada pesada, grosseira, masculina, indigna da mulher e de sua fragilidade. A arquitetura do poema lembra uma cena teatral, num aparente monólogo do narrador lírico em interlocução com a mulher, indicada pelo dêixis “tu”
Tu, numa forja, por exemplo, à frente
da fornalha! Imagina, ó meu derriço,
pensa bem, anjo meu terno e roliço,
tu, no trabalho da barbuda gente!
Concomitante, há ainda no poema outra questão associada a mudanças de comportamento das mulheres. A polêmica questão do “feminismo.” Para o marido, uma estultice. Ora, esta questão do preconceito contra a condição da mulher no trabalho se coloca como bem avançada para a época da escrita do soneto, início da segunda década do século passado.
Poeta de fase liricamente transitória, conforme tive oportunidade de acentuar mais de uma vez nesta exposição, Sylvio Figueiredo, não se furta a artifícios quer na dicção, na temática, no imaginário, quer nas situações de existência e nos recursos retórico-métrico-estilísticos já repisados com mais ou com menos sucesso por seus predecessores ou contemporâneos.
Um desses artifícios que, de resto, não era comum na poesia simbolista, foi empregado por alguns poetas tais como Severino de Resende, Marcelo Gama e Da Costa e Silva.[7] No que consistia esta retórica temática? Diria respeito a poemas tematizando descrições de animais, a exemplo dos “Poemas da Fauna,” da obra Mistérios (1920) do mencionado Severiano Resende, com o seu conjunto de poemas descrevendo tipos diversos de animais. O mesmo fez o piauiense Da Costa e Silva, com seus “Poemas da Fauna,” da obra Zodíaco (1917) grupo de soneto descritivos nos quais figuram caranguejo, lagartixa, sapo, cobra, morcego, aranha, besouro, cigarra e vaga-lume.
A ensaísta Francine Ricieri,[8] em substancioso prefácio à Antologia da poesia simbolista e decadente brasileira, recorda que esses poemas sobre animais bem podem ter sido espelhados em Tristan Corbière, na obra Les amours jaunes, onde aparece o poema “Le crapau” (“O Sapo”). Para Ricieri, esse poema foi bastante traduzido para o português, acrescentando que o poeta baiano Pedro Kilkerry havia até feito uma versão dele.
No poema “Le crapau”, Corbière refere ao “sapo,” porém entendendo este como a figura do poeta, da mesma maneira que Manuel Bandeira, no poema “Os sapos”, do livro Carnaval (1919) satiriza os parnasianos.[9]
No soneto XVIII, Sylvio Figueiredo retoma uma figura zoológica – o corvo – assim como Lili Leitão fará com “A coruja” para descrever tanto a ascensão do animal à “região do silêncio absoluto”, quanto a sua descida à terra, num contraste de imagens que vão do sentimento de euforia ao efeito disfórico. Ou seja, do ponto de vista visual, a descida sofre uma metamorfose de cento e oitenta graus. O corvo, antes descrito em tons de beleza, sofre uma redução estética qualitativa. Sua figura, agora, ante o olhar do narrador poético reveste-se de deformidades. O que atraía a visão torna-se repulsão. A “abelha” que exerce, visualmente, dependendo da distância do olhar, uma figura dupla, passa a ser apenas um animal agourento, une-se ao domínio do escatológico. Alinha-se, enfim, com laivos satânicos remetendo o leitor a vozes de alguns poetas malditos, como Charles Baudelaire ( com sua obsessão pela morte) Artur Rimbaud, na França, Guerra Junqueiro, em Portugal e Augusto dos Anjos, no Brasil, com o uso de um léxico associado ao estado de putrefação:
[....]
pois, nu passo cadente, em lerdos empuxões,
caminha, horrendo, lento e lento, farejando
a delícia da morte e o horror das podridões!
Ao contrário dos poemas da fauna de Da Costa a e Silva[10], existe um dado que se distingue neste poeta: a descrição tende à objetividade parnasiana, ao passo que no soneto de Sylvio Figueiredo o mood do soneto expressa imagens oscilantes entre a dicção simbolisto-abstrata e a objetividade parnasiana sem descartar , outrossim, impulsos de um narrador poético romântico:
Riscando o azul do céu, tranquilo, o corvo monta,
Galga, ascende à região do silêncio absoluto;
E enquanto da terra imensa as belezas sem conta.
Compare agora com uma quadra de Da Costa e Silva,[11] extraída do soneto “A cobra”:
Certo ninguém prevê, nem ao menos suspeita,
Mas esse tronco anoso, ulcerado de galha,
De alguma árvore umbrosa, outrora ao bem afeita,
Hoje, abrigo do mal, uma cobra agasalha.
No soneto de Sylvio Figueiredo o contraste, euforia seguida de disforia, a que aludi se torna evidente ante a subida do pássaro e sua correspondente descida. romântica. Vejam-se, para comprovação desse contraste ,respectivamente evidenciados nos seguintes quartetos:
E a ave sobe e evolui e ergue-se, ousada e pronta:
lembra uma abelha sobre um terreno ermo e bruto.
olho-a e a vejo tão linda, o olhar atento e arguto,
quando penso que cai de fatigada e tonta.
Desce, entanto e é medonha e asquerosa e nojenta;
causa repulsa e dó se vai, calma, baixando
e a transformação aos homens apresenta [...]
É na subida que a visão da natureza toma uma característica particular: a ave pelos olhos do narrador poético o não exibe nenhuma realidade grotesca, disfórica. No soneto esse segmento temporal vai do 1º ao 2º quarteto. Nesse ponto, a imagem física do corvo, um animal reputado em geral, repugnante e aziago, anunciador de acontecimentos trágico, é vista até mesmo por uma ótica impressionista e positivamente, reitero, eufórica, segundo se percebe claramente no 1º quarteto acima-citado, no qual existe até uma comparação indireta, ou melhor, uma associação estética de cunho eufêmico.
O maradr poético o corvo lembra uma “abelha”. Ele chega chega ao ponto de exultar-se diante da beleza e das suas qualidades exaltadsa em clave romântica. Recorde-se, por outro lado, que nos ”Poemas da Fauna” de Da Costa e Silva, aquele sentimento em relação ao animal não exprime uma ideia de ser desprezível ou asqueroso, ao passo que em Sylvio Figueiredo e Lili Leitão (“A coruja”), a descrição do animal conota-se de real sentido de asco. De modo semelhante, não se pode negligenciar o fato de que. no universo do simbolismo, alguns seres, por exemplo, pássaros, insetos etc. expressam significações ambivalentes, quer dizer, dependendo da cultura, da ética, da região da Terra, tanto podem definir-se por qualidades positivas, ou do Bem, como ainda por atributos negativos, ou do Mal. Os lexemas “corvo” e “abelha” ilustram bem esta questão[12]
No poema ‘The Raven” ( “O Corvo”) de Edgar Allan Poe, o pássaro ´´ simboliza um anunciador da morte.No soneto de Sylvio Figueiredo, a ave comporta explicitamente essa mesma acepção de elemento agourento além de animal devorador de cadáver.A “abelha”, segundo já aludi, na condição de duplo a partir, é claro, da perspectiva visual-distancial do eu lírico, afastada, lembra a sua condição de inseto que, por seu turno, sofre a metamorfose, i.e., retorna à sua configuração original de “corvo”.
O soneto esteticamente valoriza-se pelo poder de visualização, porquanto, no decorrer da sua descrição, aduz-se com facilidade, como se víssemos por lentes de alcance gradativo, à semelhança de uma objetiva: a imagens distanciando-se e as imagens. em seguida, se aproximando do ponto de observador atento. Segundo o movimento, tem-se uma ou outra forma do animal.
Provavelmente por essa forma de realização do soneto é que me vejo compelido a ajuizar pela sua superioridade de técnica e criatividade.
O soneto XX, não possui a elevação aristocratizante do verso parnasiano nem as dores e frustrações do amor romântico, nem tampouco os voos dos nefelibatas. Ao contrário, trata-se de uma peça leve, de humor em clave menor.
Sua leitura, em alguns aspectos, me faz vir à tona um divertido poema de Alphonse de Lamartine,”Mon habit”” da obra Chansons [13] no qual o eu irico se dirige, como se o objeto de atenção fosse uma pessoa querida, a uma velha casaca, testemunha fiel de muitos fatos e feitos. Da velha casaca não quer se desfazer de forma alguma, assim como o soneto de Sylvio Figueiredo. Veja-se, primeiro, em Lamartine em tradução minha considerando apenas os versos que mais de perto atendem ao cotejo:
[...]
Ó pobre casaca amada, sede-me fiel!
[...]
Bem me recordo, pois, memória boa tenho
Do primeiro dia que te vesti.
Era meu aniversário e, por cúmulo da glória,
Elogiado foste por meus amigos.
[...]
Prontos estão todos a nos festejar.
Nada de adeus, velho amigo meu.[14]
Agora, coteje-se com os versos de Figueiredo:
Quando a primeira vez te enverguei, meu fraque
fiz sucesso na zona e andei de boca em boca.
Ficou louco por mim muita menina louca,
Tornei-me nos saraus figura de destaque.
[...]
E se te visto, enfim, triste, num desalento,
Tu, relembrando, acaso, altas glórias passadas,
Soltas, alegremente, essas abas ao vento!
Se existe certa afinidade em alguns pontos dos dois poemas, há também diferenças entre os dois autores, o tom soa mais saudosista com travos românticos próprios do poeta Alphonse de Lamartine.
O de Figueiredo, mais se aproxima de um tom farsesco, solto, humorístico, divertidamente provocativo. Porém, sempre misturando sensações díspares, o eu lírico posa de boêmio conquistador de corações “na zona”, em companhia de seu velho “frack”, sempre disponível a outras aventuras ainda que anuviadas de desencanto romântico.
O que une ambos os poemas é a louvação do objeto-fetiche indissociável da vida do seu proprietário e do seu passado. Num, um casaco; noutro, um “frack”. Na composição literária, Figueiredo emprega o soneto; Lamartine, um poema de 16 versos - uma canção - composto de duas oitavas.
A POESIA DE LILI LEITÃO
Ocupar-me-ei, agora, dos sonetos de Lili Leitão que, consoante assinalei no estudo de Sylvio Figueiredo, se encontram na segunda parte da obra Sonetos.
Custa-me imaginar, ante a grande vocação do humorista, satírico, comediógrafo, repentista, jornalista Lili Leitão que esta figura de intelectual, superiormente dotada para o humorismo, tenha também produzido versos sérios, poesia amorosa e de qualidade. De resto, humorismo, vazado em sólidos conhecimentos de versificação, de originalidade de estilo, domínio da língua portuguesa e, acima de tudo isso, genialmente combinando poemas humoristas com poemas sérios, principalmente da sua dimensão amorosa, escritos com perfeição e rara capacidade musical. Seus poemas, lidos em voz alta, primam pela qualidade rítmica, melódica. Óbvio que não se pode nem deve negar a superioridade deste autor para a manifestação poético-artística da irreverência, ironia, farsa, humorismo – virtudes que o tornaram famosos no seu tempo na Niterói das três primeiras décadas do século passado.
Não entendo tampouco por que Lili Leitão, com toda a sua posição de liderança entre os amigos intelectuais, residindo tão perto da Metrópole carioca, não tenha sido voz satírica influente na vida intelectual carioca nem tenha tido a merecida visibilidade que outros poetas de verve menos dotados do que ele tiveram. Mistérios da história literária ou seriam outros motivos inconfessáveis que impediram injustamente que o grande humorista tivesse popularidade nos círculos intelectuais da cidade de São Sebastião? Cabe à história literária procurar respostas a estas indagações.
Felizmente, a privilegiada veia mordaz – somente o tempo pode fazer justiça a um escritor - de Lili Leitão agora se vê consubstanciada na obra Vida apertada sobre cuja edição crítica recente já me pronunciei na primeira parte deste ensaio.
Diante dessas observações preliminares, ao refletir analiticamente sobre o legado poético que compõe a segunda parte do pequeno volume dos Sonetos, pretendo neste trabalho considerar como diretriz metodológica, duas linhas temáticas diferentes ou seja, divisando duas vertentes temáticas sobre a poética de Lili Leitão, à semelhança do que fiz com respeito a Sylvio Figueiredo: a amorosa, cobrindo 11 sonetos e a vertente que, para este estudo, denominei, à falta de outro termo melhor, jocoso-heterodoxa., sendo esta constituída de 9 sonetos.
Pelo visto, em comparação com a classificação temático-expressional que adotei para o estudo de Sylvio Figueiredo, deu-se, no que concerne à divisão temática dupla, perfeita coincidência no quantitativo de sonetos em ambos os autores. Mera coincidência ou tácito acordo entre os dois poetas? Por outro lado, sendo um volume organizado a quatro mãos, não seria de todo impensável que os dois amigos pudessem chegar a esse consenso na seleção e organização dos Sonetos. Fica a pergunta no ar. Não resta dúvida, todavia, que a semelhança ou a afinidade sejam instigantes (ou intrigante) ao pesquisador.
Seguindo o mesmo procedimento da primeira parte, abordarei primeiro a temática amorosa de Lili Leitão e se não me proponho agora a analisar exaustivamente, poema por poema, algumas formulações estético-formais pretendo extrair do pensamento poético de Lili Leitão. Isso no que tange a essa temática. No entanto, me estenderei a análises mais abrangentes de alguns poemas da segunda vertente, tendo em vista que, a despeito de os poemas amorosos atingirem um bom nível de realização estética, os poemas da vertente jocoso-heterodoxa, por suas características singulares de desvios de formas convencionais advindas do sincretismo da época do autor, efetivamente são os que mais riqueza estratégico-formais oferecem ao analista da poesia.
Entendo e enfatizo como vertente jocoso-heterodoxa um somatório de tendências de formas de composição no gênero do soneto, às quais se podem agregar temas não centrados em situações meramente amorosas, mas em contextos gerais da vida, no cotidiano, em fatos pitorescos, hilariantes, trágicos, soturnos, recursos metapoéticos, metalinguísticos, intertextuais, cenas emolduradas, paródias, anedotas. Em outras palavras, trata-se de um grupo de sonetos que subvertem a tradição canônico-literária e se dirigem a um variegado universo que, pelas suas virtualidades de formas e de técnicas e estratégias da linguagem, abrem flancos em direção a uma postura poética cujos sintomas não mais têm quase a ver com o passadismo estreme ao discutir a poesia de Sylvio Figueiredo.
Neste sentido, posso antecipar ser Lili Leitão muito mais subversor do cânone literário do que seu companheiro de livro..Nos poemas amorosos Figueiredo e Lili Leitão não assinalam diferenças de monta no que se refere às formas métricas do verso. Ambos usam o verso decassílabo e o alexandrino.
Contudo, Lili Leitão vai além, compõe sonetos de redondilha maior, como é exemplo o “Cromo.”Na leitura em voz alta, aduzo que Lili Leitão consegue, em alguns poemas, alcançar efeitos rítmicos e musicais mais felizes do que Silvio Figueiredo.Por outro lado, segundo foi já salientado por Roberto S. Kahlmeyer-Mertens,,[15] Figueiredo se mostra mais erudito, exibe mais bagagem literária do que Lili , que é mais inventivo, espontâneo e possui maior habilidade e maleabilidade do instrumental técnico-estratégico da arte do verso.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE AMOROSA
Na ordem em que estão distribuídos os sonetos amorosos, a seguir identifico os temas explorados por Lili Leitão:
a) O amor impossível (soneto “Pequenina”);
b) A mulher inacessível (soneto “Quando ela passa”);
c) A oposição amorosa entre o passado e o presente (soneto “Recordação”);
d) A transcendência amorosa (soneto “Olhos d’alma”);
e) O amor apenas acessível na forma poética (soneto “Supremo brinde”);
f) O reencontro da felicidade (soneto “Nosso amor”);
g) O amor desfeito pela morte (soneto “Noive morta”;
h) O amor como sentimento mutável no tempo (soneto”Noivos”);
i) Amor sensual (soneto”Contraste”);
j) Amor e erotismo (soneto “Súplica”);
l) A falência erótico –amorosa com o passar do tempo
(soneto “Eu e tu”)
À vista da divisão acima, os temas amorosos em Lili Leitão pouco se diferenciam do leque de temas dessa vertente em Silvio Figueiredo. O que os separam são alguns elementos de natureza retórico-estilístico-semântica, conforme se pode verificar no soneto “Pequenina”, no qual certos jogos de lexemas homônimos e homógrafos mostram-se engenhosamente empregados na economia do poema. Para ilustrar, tomo o lexema “Pequenina” extraído do título do soneto, onde desempenha função temática nuclear no poema, notadamente se o leitor atentar para o aspecto semântico, pois é a partir dele que o soneto adquire consistência estetica e perfeição artesanal.
Uma jovem bela e de porte pequeno é objeto da admiração do narrador poético que a ama e por ela não é correspondido. Disso tem certeza, como certeza tem de que nem mesmo ao nível do pensamento interior, do amor sentido, há para ele qualquer esperança.
Todavia, como bom soneto de corte romântico, o narrador poético faz da impossibilidade do amor físico, a possibilidade de um amor platônico, quando reconhece estar aquém do poder da conquista do amor carnal.
Uma plêiade de atributos de beleza cerca a amada, atributos que ascendem até ao plano místico, ao proclamá-la “santa. Vejam-se o 1º quarteto e o 1º terceto, respectivamente:
Pequenina, a formosa pequenina,
De pequenina boca e pés pequenos
É a deusa que idolatro, a púrpura
Constelação dos sonhos meus amenos.
[...]
Em parte, tem razão: - Como essa santa
Há de adorar-me com loucura tanta,
Sendo eu tão pobre e tendo pobre sina?
A repetição, por boa parte do poema do lexema “Pequenina” (título do soneto), nome da amada, como substantivo próprio, seguido de “pequenina”, substantivo comum, e de “pequenina”, adjetivo no sintagma “pequenina boca”, a par da forma variante adjetiva no sintagma “pés pequeninos,” reforça, do prisma do sentimento da amizade, a fragilidade desse sentimento entre a amada e o pretendente desprezado. A reduplicação do desvalor, do ser do narrador poético, através da enunciação “pequenino,” este último lexema, colocado no fecho de ouro do soneto, concorre ainda mais para rebaixar a condição humilhante em que, no poema, se encontra o narrador poético :
[...]
É pretensão demais, de louco amante,
Pois eu devo lembrar-me, a todo instante:
- Sou pequenino para Pequenina!
A reduplicação em número de sete vezes, variando a grafia e a semântica do lexema liderado pela forma primeira do titulo, e aliada à aliteração da oclusiva bilabial surda “p” no conjunto das ideias da peça literária, não deixa de ocultar algo do texto enquanto fatura poética de extrema ludismo linguístico e mesmo uma atmosfera patética de auto-comiseração.
Convém, ademais, notar a dominância da oclusiva “p”, que ainda se faz presente nos lexemas “pobre”(1º terceto, 3º verso), a predisposição do poeta (e mesmo precocidade) para o relevo que Lili Leitão atribui à linguagem sobre a linguagem, i.e., a metalinguagem. Releva recordar que o humorista joga muito com o trocadilho, o inusitado da língua, a anfibologia, como no caso da anedota ou da piada, que exigem certo esforço mental para entender jogos de sentidos, empregos de nonsense e outros expedientes que põem o ouvinte/leitor em estado de alerta à compreensão da mensagem..
O tema da impossibilidade da conquista amorosa por razões financeiras ou de nível social superior, caracteriza um soneto de corte romântico. Recorde-se que a vida pessoal de Lili Leitão foi pontuada de aperturas financeiras A relação entre Romantismo e biografia do autor é uma questão polêmica recorrente envolvendo os liames entre autor e literatura.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A VERTENTE JOCOSO-HETERODOXA.
Para a vertente jocoso-heterodoxa, escolhi como objeto de análises quatro sonetos de poeta com os quais pretendo concluir este ensaio: “Um poema”, dedicado à mãe do autor; “As fitas,” explicitamente classificada por Lili Leitão como uma paródia ao soneto parnasiano “As pombas” de Raimundo Correia; “Analisando” e “Na loja”.
“Um poema”, a começar do título, conota-se primordialmente de motivos que combinam dois constituintes temáticos fundamentais: o sentimento de amor materno e a velha questão da criação literária – este último sempre retomado por poetas, escritores, ensaístas, críticos e teóricos da literatura. O primeiro constituinte motivacional do sentimento profundo de amor à mãe não vem enunciado somente na superfície dos lugares-comuns dirigidos à mãe do poeta.
Como se sabe, a mãe é símbolo primordial da criação do homem na Terra, desde as referências bíblicas da criação do mundo, da costela de Adão, da vida no Paraíso e da queda da inocência pelo pecado de Eva – a primeira mulher, a que dará frutos para sempre, a mulher-símbolo da fertilidade, da reprodução, do caminhar da humanidade e da perpetuação da espécie.
O segundo constituinte motivacional, enquanto houver a capacidade humana para criar Arte, será retomado pelos poetas e todos os autores de outros gêneros literários e inelutavelmente conduzirá a dois caminhos teóricos: o da inspiração, que é de procedência romântica, e o da construção do poema ou outro gênero literário como resultante do trabalho lógico, consciente, produto da imaginação, da emoção e do conhecimento técnico a serviço da linguagem-objeto, do que os formalistas russos designaram como literariedade.
Por conseguinte, na criação literária do soneto e no correspondente desvelamento analítico do “Poema” reside a força- motriz da essência do sentimento profundo do amor à mãe.Repare-se que, no desenvolvimento dos versos tem-se a tensão dialética entre o que o narrador poético anseia concretizar e a formalização poética no processo de construção pela escrita.
A dificuldade que se põe perante o narrador poético estará entre conseguir escrever um poema de homenagem à mãe e o receio de que não seja capaz de externar esse sentimento extremoso de forma ideal e artisticamente compensadora, i.e., que esteja à altura da nobreza do ato da escrita do poema.
O campo semântico do soneto é francamente romântico, especialmente pelo desejo manifesto de louvar as virtudes maternas. O esforço do eu lírico soa até com intensidade épica no quarteto inicial:
Tentei fazer um poema, em que pudesse
Despejar flores sobre o teu regaço,
Revelando o teu nome a cada passo,
Com todo o ardor que a inspiração me desse.
No 2º quarteto, a dificuldade da comunicação poética mais se intensifica quando o narrador poético se defronta com o elevado nível de emoção, o qual se torna até obstáculo à realização do poema. Em outras palavras, a emoção sufoca a razão, a ponto de, no 1º terceto, sofrer uma interrupção do processo criativo:
[...]
Parei, porque nem sempre a pena exprime
Tudo que é puro e tudo que é sublime.
O 1º terceto mostra, claramente, um dos grandes problemas da criação literária: a de que nem sempre a expressão comunicativa é lograda pelo artista.
Neste diálogo silencioso entre o “eu” do poeta e o “tu”, a destinatária da mensagem, a mãe do poeta, a confissão se reveste de aparente sinceridade no sentido de que a obra literária virtualmente pode atingir seu objetivo, só que no plano abstrato, no plano do pensamento.
A função conativa, em tom de desculpa pela impossibilidade de realização estético-emotiva do poema, reitera a contradição entre o que se construiu fisicamente como poema – o soneto de título “O poema” – e o tumultuado coração romântico do poeta; Vale, por fim, acrescentar que a chave de ouro do soneto em causa, longe de negar a existência do poema a ser produzido, o confirma pela presença do enunciado do discurso poético, ou seja, por todos os seus elementos configuradores : versos, ritmas, estrofes, acentuação, métrica, sintaxe, imagens, metáforas, disposição grafemática do poema de forma fixa, enfim, tudo distribuído no espaço que lhe é próprio, que é o espaço físico, visual, da poesia:
[..]
Mas não te zangues, não, nem fiques triste...
O poema que mereces, ele existe:
Ficou guardado no meu coração!.
No soneto “As fitas”, claramente definido pelo autor como uma paródia ao soneto “As pombas”,[16] de Raimundo Correia, famoso vate parnasiano, ao explicitar o texto original do qual Lili Leitão faz um exercício parodístico, ele dessacraliza todo o clima aristocrático do uso de lexemas raros, solenes, “o lavor do verso” como queria Bilac por influência de Gautier que, por sua vez, redundou no seu “Profissão de fé”, embora seja preciso sublinhar um fato: Raimundo Correia, tendo sido parnasiano, não o foi nos exageros formais e marmóreos deste estilo literário. Até chegou mesmo a confessar certa hostilidade a essa forma de linguagem.
Tendo-se como princípio de que a paródia tanto serve para descaracterizar criticamente a forma do texto original quanto se emprega para prestar homenagem ao autor parodiado, na situação de Lili Leitão, meu ver, e conhecendo-lhe alguns traços de sua poesia como de sua própria personalidade inclinada ao humorismo, não é difícil concluir que sua paródia decalcada do soneto “As pombas” mais se deve à sua habitual vocação satírico-humorística – o prazer do jogo lúdico com a linguagem em si - que mais explica histórica e socialmente o poeta Lili Leitão do que algum componente de cunho corrosivo da paródia em si.
Apagando do texto de Raimundo Correia as imagens e construções mais grandiosas no que diz respeito ao conteúdo de ordem filosófica ou moral do soneto “As pombas”, as quais são inerentes ao Parnasianismo, o poeta de Vida apertada manteve o essencial - espécie de vigas mestras compostas de palavras que indicariam as “marcas” do texto original, que foram empregadas no texto parodiado, de que resultou a seguinte figuração espacial :
Vai-se a primeira x x,
Vai-se outra mais ... mais outra xxx
x x vão-se, x x, apenas,
x x x x.
E x x x x x,
x x x x x elas, x,
Voltam todas x x x.
Também dos x x x,
x x x x x
Como x x x x.
x x x x x x x x Soltam
x, x x, x x voltam
e x x x não voltam mais !
Os símbolos representados por x constituem as palavras do texto parodiado. A pontuação figurada é a utilizada por Lili Leitão. Pelo visto, os lexemas retirados do poema-fonte são reduzidíssimas ressaltando que, no 3º verso do 11º quarteto, o lexema “apenas” que parece no texto de Correia, aí foi deslocado, no soneto de Lili para o princípio do 4º verso deste quarteto. Da mesma maneira, o esquema rimático obedece à mesma disposição no texto parodiado.
Não pretendo neste estudo por ora examinar pormenores da estrutura versificatória em Lili comparando-a, no âmbito do soneto, com a de Raimundo Correia. Apenas posso antecipar que os dois sonetos se realizam em versos decassílabos, nos quais o elemento rítmico e rimático em ambos mantém rigor no discurso poético.
A grande diferença entre o texto de Correia e o de Lili se patenteia na desconstrução do pensamento filosófico elevado do primeiro, em que os sonhos idealizados pelos corações na adolescência são, mais tarde, desfeitos, ao passo que, em Lili Leitão existe um intencional comportamento caricatural ligado à diversão. Na mudança de ambientes completamente diversos de um soneto (“As pombas “) e outro ( “As fitas”), e dos seres neles envolvidos, num os pombais com as suas pombas que deles partem e voltam mais tarde; noutro, os cinemas que, em sessões de horários noturnos diferentes, exibem velhos filmes assistidos por seus habitués noturnos.
A paródia tem sido um velhíssimo recurso intertextual muito utilizado na história literária ocidental. Num capítulo sob o título de “Limites da Intertextualidade”, da obra A retórica do silêncio, o poeta e ensaísta Gilberto Mendonça Telles[17] enumera algumas situações de relações formais e semânticas entre textos que guardam entre si relações de semelhanças, contiguidades formais, semânticas, retóricas, que implicam discussão de conceitos de texto-fonte e textos derivados, modificados, influenciados, imitados, plagiados e até textos que se relacionam a um outro por servirem como referência cultural, forma de diálogo ou chancela de uma autoridade reconhecida e respeitada., tais são os exemplos de epígrafes, prefácios, posfácios, manifestos, paródia, introdução ou apresentação de obras. Mendonça Telles, nos exemplos enumerados por ele, os chama de “discursos paralelos”.
O princípio da paródia se estabelece nesta mudança, neste deslocamento, numa descida de tons, de ambientes cênicos, da linguagem que da pompa retórica desce à vulgaridade coloquial, da anulação praticamente do seu nível conotativo, da subtração das imagens finamente elaboradas do texto-fonte. A paródia, no soneto de Lili Leitão atinge seu clímax de rebaixamento moral-existencial quando, no último terceto, citado mais adiante na conclusão desta análise, contrasta a ideia central dos sonhos juvenis desfeitos do soneto de Correia com o lamento carnavalizado do gasto minguado dos cinco tostões na compra das entradas ao cinema, num patético gesto de um mendigo.
Neste aspecto, o soneto de Lili se enquadraria nos três tipos de paródia da classificação de Joseph T. Shipley, os quais extraí do citado livro de Mendonça Telles:
1) A verbal, “ ... na qual a alteração de uma palavra torna trivial uma peça literária:
2) A formal, “na qual o estilo e os amaneiramentos de um escritor se usam como tema de zombaria. Estes dois níveis são humorísticos;
30 A temática, “em que a forma e o espírito do escritor são caricaturados .”[18]
Entre o tom de impassibilidade parnasiana e a veia satírica de Lili a metamorfose, no tocante ao tema, rebaixa a linguagem, a situação existencial de um eu lírico que, além disso, sinaliza uma recorrente situação da temática da obra humorística de Lili Leitão, de resto aludida anteriormente neste trabalho: o problema da fome, das aperturas financeiras, o que explica os seus desacertos de intelectual boêmio em constante combate quixotesco contra os “tostões” que a vida madrasta lhe negou e como é exemplo paradigmático o soneto em exame citado abaixo no seu último terceto :
[...]
Nas trevas da gaveta o timbre soltam,
Porém, noutra sessão, as fitas voltam
e esses cinco tostões não voltam mais!
O soneto “Analisando...” é bem curioso pelos desvios estratégico-compositivos. Foge aos paradigmas poemáticos tanto dos estilos literários conhecidos em que poderia se moldar como sobretudo pela introdução de um breve diálogo. Mais se ajustaria a uma breve peça de palco de revista. A conversa se trava entre um professor, o eu lírico, e uma aluna.Veja-se o 1º quarteto do poema:
- Sei eu conheces bem a língua portuguesa.
Vamos analisar um pouco uma oração.
Aí tens: “O nosso amor domina o n osso coração”.
É um trecho bem comum, de máxima clareza.
Tudo é muito simplesmente desenvolvido, sem rodeio,nem artifícios retóricos, sem aparente poeticidade. Seria, a princípio, um soneto apenas nos seus elementos extrínsecos com intenção de aliar a função metalinguística à alusão do amor, lexema recorrente sobretudo no Romantismo. O soneto ganha em invenção, leveza e originalidade na medida em que joga, como disse, com a forma de composição poética.
Aqui repousa em grande parte a significação básica do soneto, assim como cria uma ambiguidade: saber se “o nosso coração” ultrapassa as fronteiras de uma simples aula de língua portuguesa ou se o pretexto da frase adrede escolhida como objeto de análise sintática esconde alguma intenção de natureza sentimental entre mestre e discípulo. Poesia é plurissignificação, mesmo quando subentende ludismo, humor e irreverência – recursos iterativos e identificáveis a quem se familiariza com os textos de Lili Leitão.
A atmosfera do soneto segue sem voos poéticos. Apenas toma forma poemática para mostrar como a construção de um soneto pode-se valer de um pequeno diálogo teatral que, servido dos protocolos técnicos do verso, do poema, consegue fazer-se poesia. Alguém já disse que a poesia moderna está em todas as coisas. Dos grandes e pequenos temas ou mesmo de tema algum, Girando em torno de si mesma, a poesia ainda encontra amplo espaço para ser menos tema, menos assunto e mais literatura, mais linguagem.
A ruptura que o Modernismo de 22 desencadeou, no que dizia respeito a temas, formas e linguagens próprias do conservadorismo literário até pelo menos a fase epigônica da produção poética brasileira, fez emergir uma nova postura anti-aristocratizante e, aos poucos, foi substituindo o uso de vocábulos solenes por vocábulos fora dos circuitos e temas elitistas e eruditos, como seriam dois bons exemplos um poema de Manuel Bandeira, o que estaria dentro da nova postura bandeiriana que se iniciou com a sua conhecida “Poética.” da obra Libertinagem (1930) e ainda nesta mesma direção com o poema “Nova Poética”, da obra Belo Belo (1948)[19]
Para os objetivos da minha análise do poema “A loja” de Lili Leitão recorro a uma fonte de comparação e de referência devido a pontos comuns na natureza do material empregado na composição do soneto de Lili e daquele poema de Bandeira extraído de uma notícia de jornal. Reporto-me ao “Poema tirado de uma notícia de jornal”[20], do mencionado livro Libertinagem, obra editada já em plena ebulição modernista. .Bandeira já havia aderido às formas modernistas da poesia, com o livro O ritmo dissoluto (1924), que anunciava um divisor de águas de sua poética ainda presa aos cânones tradicionais.
O poema criado a partir de uma notícia de jornal exemplifica aquele preceito proclamado pelas vozes modernistas segundo o qual não existem temas especiais para a poesia. Esta se pode achar em qualquer espaço físico ou mesmo em qualquer fonte não necessariamente “ poética.”.
Ao utilizar uma matéria narrativa no espaço poético, Bandeira transfunde o prosaico em poético e, por cima disso, ainda constrói um pequeno poema criativo, com traços até pré-concretistas, porquanto a organização estrófico-espacial por ele empregada produz emoção e apelo visual-espacial (os verbos “Bebeu.” “Cantou.” “Dançou” verticalmente dispostos) fruição lírica e até agrega ao lirismo uma dimensão trágica. Não há nada semanticamente no poema que na superfície faça o leitor pensar estar diante de poesia. Só pelo poder da manipulação das imagens, dos artifícios “técnico-compositivos”, como diria Aguiar e Silva[21], ao sintetizar as ideias de Paul Valéry sobre o complexo ato de escrever um poema, aproveitando um assunto digno de matéria sensacionalista de jornal, consegue o lírico de Itinerário de Pasárgada realizar um poema de impacto e de natureza eminentemente poética.
No soneto “A loja” de Lili, consta, todavia, observar que o autor, apropriando-se de uma anedota, a qual, em certa medida, se alinha entre todas aquelas formas escritas (ou orais) como a piada, a ironia, a sátira, a zombaria, o chiste, a transfere para uma forma poética tradicionalmente de natureza canônica, sem que, no trabalho de elaboração criativa e original, o soneto deixe de perder sua intenção humorística. Já no exercício da paródia, cujo exemplo é o soneto “As fitas,”, a transferência se concretiza diretamente de um poema de formalização séria que, pela paródia, provoca o estranhamento de natureza cômica. Neste caso, valeria esta citação de André Jolles:
[...] Certas formas de zombaria – penso na paródia - oferecem uma certa semelhança com a imitação. Elas repetem aquilo de que zombam, mas sublinhando, pelo cômico, o que continha os germes de um desenlace; reptem-no de uma maneira que o desfaz como um todo.[22] [...]
Mantidas as proporções devidas, o poema “Na loja” presta-se a comparações pertinentes. Se no poema de Bandeira há uma “notícia” de jornal, e no de Lili textualmente se declara a origem da fonte do tema, uma “anedota,” mas nem um nem outro reproduzem a fonte, já que ambos os poemas se apresentam feitos diante do leitor.
O material em ambos é apropriado de uma realidade não–poética. Em Bandeira, "João Gostoso" é o protagonista da “narrativa,” que se suicida jogando-se nas águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. No soneto de Lili, a personagem, uma jovem “meiga” e “bonita,” entra numa loja em companhia da avó a fim de comprar uma fita de cetim azul-marinho. Ao perguntar pelo preço, o vendedor, um galanteador, não se demora ecomo resposta lhe diz que o preço seria “um beijo” para “cada metro”.
A mocinha se queixa do preço, mas acaba pedindo ao vendedor que “lhe corte dez metros”. O caixeiro, prelibando o prêmio em forma de dez beijos, rápido, exultante, atende ao pedido da jovem.
No momento de pagar, em chave de ouro, a mocinha malandramente dele se despede e conclui com essa tirada imprevisível : a avó pagaria a conta:
[...]
- Pronto, formosa! O pagamento, agora...
E a moça lhe responde, sem demora:
- Adeus! Quem paga as compras é vovó!.
CONCLUSÃO
Na leitura dos poemas humorísticos de Lili Leitão, a chave de ouro mantém regularmente um insuspeitado final cuja consequência por parte do receptor da mensagem é o humor, a galhofa, o intento carnavalizado.
Tomando o ensaio como tentativa de não esgotamento das virtualidades estéticas dos dois poetas, Silvio Figueiredo e Lili Leitão, nos aspectos da pesquisa ora concluída, posso reafirmar que a obra de ambos em muitos ângulos mostra uma certa unidade poética, seja pelos temas dominantes em Sonetos, seja pelos seus valores literários.
Este estudo não confirma absolutamente serem os sonetos reunidos de qualidade secundária ou dignos do limbo, posto que, em termos de avaliação crítica, diria que Lili Leitão, por ser dotado de maior talento inventivo e de dispor de mais recursos estratégicos compositivos, por vezes atinge um nível de qualidade superior a Silvio Figueiredo, malgrado este dispor de mais sólida formação cultural, segundo já referi neste trabalho.
Por outro lado, a leitura de ambos bem merece ser objeto de maior reflexão e, no meu entender, ainda se presta tanto aos rigores da crítica de hoje, quanto maior divulgação junto ao público ledor.
O passado da literatura é também um modo de inscrição histórico-social que ao presente importa como conhecimento, experiência e acumulação do saber. Incursionar pelo pensamento poético, imagens e formas de linguagens destes dois poetas da Belle Époque daqueles recuados tempos das três décadas do século passado é uma oportunidade que o leitor não pode perder de vista.
Ainda que distante do seu contexto literário e os Sonetos podem bem ainda propiciar um proveitoso momento de leitura para os amantes de poesia, sobretudo porque – releva lembrar – a poesia destes dois poetas honram a intelectualidade boêmia e inesquecível dos frequentadores notunos, em Niterói, do célebre Café Paris.
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NOTAS:
[3]KARHLMEYER-MERTNS, Roberto., (Org.) .. In: -- LEITÃO. Luiz ; Vida apertada - sonetos humorísticos. 2 ed Niterói: NITPRESS, 2009, p
Ver, também. na mesma obra, . BARROS. Lui Antonio.. .. .Glossário estabelecido por Luiz Antonio Barros. P; 255-263.
4 Todas as citações de versos de Sylvio Figueiredo e de Lili Leitão, para os propósitos deste estudo, foram por mim atualizadas com a ortografia em vigor.
[5] MATOS, Gregório de. Obras de G. de M. – IV – Satírica, vol. I. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1930, p. 137-142.
[6] EAGLETON, Terry. How to read a poem. Malden, MA. USA: Blackwell Publishing, 2008., p. 165..
[7] Cf. RICIERI, Francine. Antologia da Poeisa simbolista e decadente brasileira. Seleção e notas de Francie Ricierei. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2009, Op. cit.,. Ver página 24.
[8] RICIERI, Francine. Op. cit., ibidem.
[9] BANDEIRA, Manuel. “Os sapos”. In ---. Poesia completa e prosa. Vol. Único. Org. pelo autor.. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1986, p. 158-159.
[10] SILVA, Da Costa e Silva; .In: - Poesias completas. .
[11] SILVA, Da Costa e. Poesias completas.2 ed. Ver e anotada por Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: LIVRARIA Editor Cátedra; Brasília: INLMEC, 1976, p. 177-186.
[12] Ver CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT. Dicionário de símbolos. Trad. de Vera da Costa e Silva et alli. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1994. Ver os verbetes “Abelha”, p.3-4 e “Corvo,” p. 295.
[13] Apud BURTIN-VINHOLES, Suzanne. Cours de français. 1er. Anné. Porto Alegre: Globo Editora, s.d., p. 244-245.
[14] Cf. O poema no original em francês: Sois-moi, fidèle, ô pauvre habit que j’aime!/Ensemble nous devenons vieux/Depuis dix ans, je te brosse moi-même/Et Sócrates n’eut pas fait mieux./Quand le sort à ta mince étoffe/Livrait de nouveaux combats/Imite-moi, résiste en philosophie:/Mon viel ami, ne nous séparons pas./Je me souviens, car j’ai bonne mémoire/Du premier jour ou je te mis,/C’était ma fête, et, pour comble de gloire,/Tu fus chanté par mes amis./Ton indigence que m’honore,/ne m’a point bani de leurs brás,/Tous ils sont prêts à nous fêter encore :mon vieil ami, ne nous séparons pas.
[15] Cf. nota 3 deste estudo.
15. CORREIA, Raimundo. Poesias completas. Vol. 1. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948, p. 38.[16] Eis a íntegra do soneto de Raimundo Correia: Vai-se a primeira pomba despertada.../ Vais-e outra mais... mais outra... enfim dezenas / De pombas vão-se dos pombais, apenas/Raia sanguínea e fresca a madrugada.. //E à tarde, quando a rígida nortada/Sopra aos pombais de novo elas, serenas,/Ruflando as asas, sacudindo as penas,/Voltam todas em bando e em revoada...//Também dos corações onde abotoam,/Os sonhos, um por um, célebres voam,/Como voam as pombas dos pombais //No azul da adolescência as asas soltam,/Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,/E eles aos corações não voltam mais...
[17] TELLES, Gilberto Mendonça. A retórica do silêncio. – tória e prática do texto literário. São Paulo: Cultrix/INL?MEC, 1979, p. 21-37. Para um breve e consistente estudo sobre a paródia , assim como da paráfrase e ouras temas correlatos, seria bom consultar o livrinho Paródia, paráfrase & CIA, de Affonso Romano de Sant’Anna. 5 ed. São Paulo: Ática, 1995, especialmente os capítulos 3, p.11-13, e o capítulo 12, p.6567 sobre o conceito de “Intertextualidade,” no qual desenvolve um brevíssimo e útil comentário sobre o “Poema tirado de uma notícia de jornal,” de Manuel Bandeira.
[18] TELLES, Gilberto Mendonça. Op. cit., p. 28
[19] BANDEIRA, Manuel. Op. cit.,. p. 20, referente ao poema “Poética.” p. 28, referente ao poema “Nova poética”.
[20] Idem , p. 214. Por falar no poema de Bandeira “Poema tirado de uma notícia de jornal,”, conviria consultar uma análise monumental que Davi Arrigucci Jr desenvolve sobre esse poema, na seção 3, sob o título “Poema desentranhado” da Primeira parte da obra A poesia de Manuel Bandeira: humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 89-119.
[21] SILVA,Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Volume 1. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1984, p. 216.
[22] JOLLES, André. Formas simples. Trad. De Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976, p. 214.