Os diferentes rumos de “Caminho dos Ventos”
Em: 16/07/2023, às 20H18
Por Pádua Carvalho - Professor e Escritor
“Caminho dos Ventos” traz a busca de um homem por seu próprio espaço, a procura por uma vida melhor. Essa condição é o ponto de partida para as escolhas e desdobramentos da sua jornada, na qual ele adota uma postura que desafia as situações adversas pelas quais tem de passar para se estabelecer.
Falar de “Caminho dos Ventos” é desvendar um universo que temos certeza que existe, mas que pouco conhecemos como realmente deveríamos, ou se conhecemos, fazemos questão de que nos pareça uma realidade distante.
Atualizados pelos noticiários, sabemos não ser de hoje as denúncias de destruição da floresta, a exploração sexual, o garimpo ilegal, o uso de mão de obra escrava, grilagem de terras, desvio do dinheiro público, politicagem, pistolagem entre outras práticas maléficas que assolam os estados mais ao norte do Brasil. Todas essas realidades se fundem nesta obra de José Ribamar Garcia. São muitas as referências que mostram a construção ou destruição de sonhos de tantos homens e mulheres que saem de sua terra em busca de uma vida melhor.
Para podermos entender todo o contexto da obra é preciso saber como, em nome do progresso, se estabelecem as relações de trabalho (se é que elas existem) nas regiões remotas do país, aspectos estes, muito bem mostrados pelo autor quando cita fatos e histórias adjacentes à trama principal e seus desdobramentos na jornada de Alberto Nasser, personagem e fio condutor da história.
A escravidão moderna se dá com o cárcere rural, promovido por fazendeiros inescrupulosos através do aliciamento de trabalhadores para as fazendas e garimpos, onde uma vez instalados, o regime de servidão os obriga a condições desumanas, coação e a trabalhos forçados, fazendo-os reféns desse criminoso sistema exploratório.
O livro traz essa temática na saga de seu protagonista, as referências são inúmeras: podemos fazer uma ligação dessa realidade com o filme “Pureza” (2022), do diretor Renato Barbieri, baseado na vida de Pureza Lopes Loyola, uma oleira do interior do Maranhão que empreende uma busca a seu filho em fazendas e garimpos do Pará e se choca com a reaidade brutal a que são submetidos os trabalhadores rurais - expostos à violência, doenças, fome e trabalhos em regime de servidão sem nenhum direito. A partir daí, além de procurar o filho, ela direciona sua luta no propósito de mudar a situação desses trabalhadores, o que lhe rendeu um prêmio Internacional contra a escravidão, da AntiSlavery International Award, uma organização conhecida e respeitada em todo o mundo pelo combate a maus-tratos e escravidão dos trabalhadores.
Segundo uma publicação produzida pelo Programa Educacional “Escravo nem Pensar”, ligada à ONG Repórter Brasil, em 20 anos foram resgatadas cerca de 55 mil trabalhadores em regime de trabalho escravo, dos quais 1.800 eram mulheres. Não que essa seja a temática principal do livro, mas é relevante a ressalva.
Quanto à prostituição, também vemos referência a essa questão através das meninas do “Beco dos Cajueiros” que travam uma luta pela sobrevivência, às vezes relegadas a essa situação como único caminho até então encontrado para escapar da fome e miséria absoluta. Apesar do romance citar situações de boemia que ocorrem na zona de prostituição do Beco dos Cajueiros, sabe-se que a realidade desses lugares é bem diferente e o fato das garotas estarem lá nem sempre é por opção, como foi no ciclo dourado de Manaus, com os “Barões da Borracha” que frequentavam cabarés luxuosos repletos de garotas francesas.
Nos garimpos, de onde veio o personagem Gervásio Carbono, a exploração sexual é retratada de outra forma. Embora não haja referência explícita, gira em torno de algo parecido com o que é mostrado em no filme “Anjos do Sol” (2006), de Rudi Lagemann, onde Maria, uma menina de 12 anos, é vendida pelos pais com uma promessa de vida melhor a um homem que na verdade era um recrutador de prostitutas para serem escravas sexuais e que a leva para um garimpo no meio da floresta onde a humilhação e maus-tratos eram constantes e o único jeito de escapar era a morte.
“Caminho dos Ventos” traz a busca de um homem por seu próprio espaço, a procura por uma vida melhor. Essa condição é o ponto de partida para as escolhas e desdobramentos da sua jornada, na qual ele adota uma postura que desafia as situações adversas pelas quais tem de passar para se estabelecer.
No romance a identificação entre o real e o ficcional se confunde e vez por outra não conseguimos separá-los, tamanha é a riqueza descritiva de fatos, lugares e situações que nos guiam na aprazível leitura de querer conhecer um pouco mais da trajetória de cada personagem que orbita esses dois mundos.
Podemos distinguir na obra de Ribamar Garcia, três viagens distintas: uma, a que o romance nos conduz - ao Norte do País, onde a Amazônia serve de pano de fundo para a saga de Alberto Nasser. Outra, mais introspectiva, é um mergulho na alma dos personagens, tão bem construídos em sua humanidade, com força, fragilidades, angústias e sonhos, que por vezes conseguimos identificar na junção de todos eles, um pouco de nós mesmos. Isso, porque seus valores, defeitos, e qualidades formam as camadas com as quais somos forjados em nosso caráter. Uma terceira viagem, é aquela onde tentamos desvendar através das tantas subjetividades a que rumo a história nos conduz, a visão do autor ao se dividir entre os ventos que varrem os caminhos pelos quais o romance se desenvolve.
Ribamar cria um universo onde as situações relatadas absorvem a realidade que ao longo de anos marcou os ciclos econômicos do país na ascensão da nova eldorado reluzente: a cidade de Manaus, que se agigantava com a extração do ouro branco - a borracha.
Uma época que se perdeu no tempo por conta da soberba, do esbanjar e do fim melancólico causado pelo que hoje chamamos de espionagem comercial ou industrial, onde segredos são copiados e contrabandeados para outros países.
Nesta obra, repleta de menções aos diversos desdobramentos na história do país, temos uma visão particular do autor sobre como se deu (ou ainda se dá) a saga de muitos trabalhadores que, cheios de sonhos, tentam mudar o curso de suas vidas lançando-se em jornadas onde nem sempre a sorte lhes sorri.
Guardando as devidas proporções e as realidades distópicas, pode-se comparativamente dizer que a conduta do personagem Alberto Nasser em “Caminho dos Ventos” tem muito a ver com a do personagem Aragorn, o cavaleiro sem reino do livro “O Senhor dos Anéis”, de J. R. R Tolkien. Isso, no que se refere em sua Jornada do Herói, como descreveu tão bem o estudioso Joseph Campbell em sua obra “O heroi das mil faces”. Ambos os personagens trazem em si um inabalável senso de honra, de justiça e, acima de tudo, uma consciência de seu papéis em mudar a realidade em torno de si, afetando e transformando a vida de outras pessoas.
Embora diferente da obra de fantasia do escritor inglês, Ribamar Garcia desnuda uma realidade presente e responsável pelas mazelas humanas na vida dos trabalhadores itinerantes na pessoa de Alberto Nasser, que busca justificar sua jornada na construção de uma realidade melhor e mais justa para si, seus amigos e sua família.
Vemos a diversificação de propósitos de seus filhos, o desafio às normas sociais quando ele desposa Jaciara, a procura de um sentido que não seja o dito pela comodidade, como é o caso de Otávio, ou mesmo a vida sem ambição de Júnior.
A história traz uma gama de personagens cativantes, nuances do povo brasileiro, representados em Gervásio, Alberto, Jaciara Otávio, Lucas Barros, Jesuino, Alberico, Júlio, Paulo, Júnior, Sebastião, Jurandir, Marinete, Doralice, Zé Pequeno, Pernambuco, Manuel Caxim, Nélson Carvalhedo, Dona Geraldina e tantos outros onde se veem as mais variadas ocupações, que vão desde o comerciante, o professor, a prostituta, a rezadeira, o agricultor, a cozinheira, o estudante, o empresário, o padre, o peão ao vendedor.
Temos a nítida impressão de viver uma utopia ao conhecer o político Gervásio Carbono, que, averso a conchavos, favorecimento ilícito e politicagem, características presentes nas governanças atuais, apresenta-se como uma pessoa simples que lança mão inclusive de recursos próprios de sua fortuna de tempos de garimpo para melhorar a vida de seus conterrâneos e fazer de sua cidade um exemplo em gestão pública e desenvolvimento responsável.
Podemos notar os traços de personalidade dos personagens de acordo com suas atitudes, o que fica bastante claro na resignação de Jaciara, no propósito de Jurandir, na lealdade de Norberto, na amizade de Lucas e sobretudo, na altivez de Alberto, que não se sujeita as injustiças ou agruras que a vida lhe impõe.
Ao se deixar levar pela leitura, viaja-se por Manaus, Marimbá, Entrocamento dos Ipês, Ouromante, Letícia e outros lugares descritos no livro como se o leitor fosse profundamente íntimo deles. O ouro e diamante, objetos de cobiça na construção da fortuna no garimpo e responsáveis pela depedração da floresta é a referência para construção do nome de Ouromante, a cidade referência e lugar de pertencimento dos personagens. Há uma presença da mistura que da vida à nossa gente, através do elemento indígena, em Jaciara; do negro em Norberto; do descedente de estrangeiro em
Alberto Nasser; entre outros tão ricamente descritos.
Ao ler Caminhos dos Ventos notamos como nossas maiores oportunidades de ser um país melhor se desfazem em caminhos que se vão e não nos levam a lugar algum, tão sem propósitos como uma folha levada ao sabor dos ventos.
Caminho dos Ventos não é só mais um livro do autor, é uma obra densa, cativante, reveladora e autêntica ao que se propõe.
Conhecer a alma humana é desvendar o íntimo de cada um de nós em personagens fictícios tão reais. Nessa matéria, posso afirmar, José Ribamar Garcia é um mestre.