Os cavalinhos de Platiplanto de José J. Veiga

[Rosselini Diniz Barbosa Ribeiro]

Introdução

No ensaio intitulado Lima Barreto e o espaço romanesco, Osman Lins (1976, p. 64) diz que a narrativa “é um objeto compacto e inextrincável, todos os seus fios se enlaçam entre si e cada um reflete inúmeros outros”. Por isso, quando isolamos um de seus componentes, devemos ficar atentos para percebermos como o elemento em estudo se reflete particularmente sobre os demais. Com relação aos espaços, o autor afirma que é necessário que se compreenda o tratamento que lhe é concedido, ou mais exatamente “que função desempenham, qual a sua importância e como os introduz o narrador” (LINS, 1976, p. 64).

Em Os cavalinhos de Platiplanto, os espaços onde ocorrem as ações são locais de grande importância para a vida dos narradores e dos personagens, pois neles acontecem os eventos mais brutais da vida cotidiana. As narrativas têm como narradores e/ou protagonistas, crianças diante de preocupações e questionamentos sobre a vida e envolvidas em alguma situação de morte. Tais mortes estão intimamente ligadas ao espaço onde elas acontecem, ou se relacionam de alguma forma com os elementos simbólicos que o compõem. Por isso, neste artigo, pretendemos analisar as diferentes modalidades em que se dimensiona o espaço em alguns contos da referida obra, tendo em vista que tais modalidades possuem significações distintas. Ainda assim, entendemos que é importante observar em que medida tais espaços contribuem para a trajetória pessoal dos narradores e dos personagens, pois consideramos que esses aspectos são de fundamental importância para a compreensão da obra veigueana em questão.

Utilizaremos a tipologia espaço exterior, espaço interior - terminologia proposta por Gaston Bachelard (2003), em A poética do espaço - e espaço do sonho.

 

O espaço exterior

Consideramos como espaço exterior, os locais vistos apenas a partir de seu aspecto externo. Trata-se de espaços físicos, concretos, onde ocorrem as mortes físicas [1], sem nenhuma implicação simbólica e que não possuem outra função senão a de situar a ação dos personagens. Nos contos “A usina atrás do morro”, “Era só brincadeira”, “Tia Zi rezando”, “Roupa no coradouro”, “Entre irmãos” e “A espingarda do Rei da Síria”, os espaços apresentam essa função mais comum da categoria de ser o local onde ocorrem as ações.

Na narrativa “Entre irmãos”, o encontro de dois irmãos que acabam de se conhecer por ocasião da morte da mãe deles se passa numa sala. Este espaço de espera e de dupla agonia - pelos momentos finais da vida da mãe e pelo incômodo que é o encontro com o irmão - apenas enquadra os dois personagens. Durante toda a narrativa, o espaço da sala é citado apenas duas vezes e não há nenhuma descrição alongada de seus componentes. Mas, ao final da narrativa, o narrador, o irmão mais velho, explicita que os elementos daquele cenário o marcam fortemente, pois o espaço da sala representa, na verdade, suas lembranças do passado, sua própria história. Quanto mais ele se nega a aceitar suas raízes, mais os componentes da sala o prendem a seu passado, como vemos no seguinte fragmento:

[...] não sei como fugir daquela sala, dos retratos da parede, do velho espelho embaciado que reflete uma estampa do Sagrado Coração, do assoalho de tábuas empenadas formando ondas. Esforço-me com tanta veemência que a consciência do esforço me amarra cada vez mais àquelas quatro paredes (VEIGA, p. 141).

No conto “A usina atrás do morro”, o espaço onde acontecem as ações é o de uma cidade qualquer do interior. Ao longo do conto, os locais que compõem o cenário são apenas mencionados. A pensão, a agência de correios, os campos, os morros, o rio, a igreja, o cemitério, a ponte, o chafariz, os pequenos comércios e as casas de pequenas propriedades agrárias são os espaços que fazem parte do cenário onde toda a movimentação de uma misteriosa “Companhia” acontece, como se pode ver neste trecho: “[...] mas o tempo passava e nada de fábrica, eram só aqueles passeios todos os dias pelos campos, pelos morros, pela beira do rio” (VEIGA, p. 22).

Ao longo do conto, percebemos que a modificação do espaço está relacionada a uma mudança de hábitos e ao uso de equipamentos, em virtude do progresso que havia chegado. O narrador nos conta as diferenças que, logo, foram evidenciadas entre os que se mantinham como os antigos moradores da região e aqueles que eram trabalhadores da “Companhia”. No fragmento a seguir, o personagem Geraldo é visto como um exemplo do novo modelo que foi estabelecido:

[...] veio à cidade montado numa motocicleta vermelha. Não vinha mais de roupa cáqui de trabalho e botina de vaqueta, mas de parelho de casimira azul-marinho, sapatos de verniz e gravata. Parou no bilhar, cumprimentou todo mundo e convidou para tomarem cerveja. Uns aceitaram, outros ficaram de longe, ressabiados. Ele disse que não havia motivo para malquerenças, reconhecia que havia se excedido nas brincadeiras, mas não fizera nada com intenção de ofender. Os tempos agora eram outros, acabaram-se as brincadeiras (VEIGA, p. 33).

Nos dois contos citados, os espaços exteriores são os cenários onde ocorrem as situações de morte. Na referida obra de Veiga, a especificidade de tais espaços se deve ao fato de que em cada um deles ocorre algum acontecimento de morte física. Por isso, faz-se necessário passar ao estudo dos espaços interiores, a fim de constatarmos as diferenças entre as distintas modalidades do espaço por nós apresentadas.

 

O espaço interior

Os espaços interiores na obra Os cavalinhos de Platiplanto são um desafio para o leitor. Tais espaços, concretos como os que apresentamos no espaço exterior, além de representarem uma dimensão física possuem ainda uma dimensão simbólica. Em geral, eles refletem o conflito vivido pelo narrador e/ou pelo personagem e estão ligados aos destinos deles. Esses espaços contribuem para que o personagem tome decisões e faça escolhas para sua vida, tendo uma morte simbólica ao invés de uma morte física.

No conto “Professor Pulquério”, o protagonista é um ex-professor que vivia a fazer pequenos serviços para “sustentar a mulher e os vários filhos” (VEIGA, p. 98). O homem, sem muita ou quase nenhuma ambição na vida, resolve explorar uma mina que guarda o tesouro de um austríaco. Ele, porém, não conhece bem o roteiro para chegar à mina. Assim, esse desejo se torna o alvo, o sonho da vida de Pulquério.

Schopenhauer (2003), em Da morte - Metafísica do amor - Do sofrimento do mundo, acredita que a vontade é o princípio fundamental da natureza e que só desejamos aquilo que não temos. Assim, a conseqüência da consciência da falta de algo desejado é o sofrimento, como acontece com o professor do conto em estudo. Como nem os habitantes da vila, nem a intendência, nem o presidente se interessaram por seu projeto, ele decide descer ao fundo de um poço como forma de protesto. O recolhimento do protagonista no fundo do poço e a profundidade atingida por ele funcionam como uma forma de silêncio e de sua anulação para o mundo, pois pelo fato de não conseguir realizar seu objetivo, a vida para ele deixou de ter sentido. O conto, em aberto, termina na indefinição do destino do professor. Contudo, a descida ao poço representa para o protagonista a única saída, o encontro com sua própria essência e verdade. Para Chevalier & Gheerbrant, o poço representa

o símbolo do Conhecimento onde a borda é segredo e a profundidade, silêncio. Trata-se bem entendido, do silêncio da Sabedoria contemplativa, estágio superior da evolução espiritual e do domínio de si, onde a palavra se afunda, é absorvida por si mesma (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p. 726-727, grifos do autor).

Nas narrativas que apresentam a modalidade do espaço interior, os locais aparecem de maneira bem mais significativa que no espaço exterior. Em geral, têm-se a descrição dos componentes do espaço, bem como sua caracterização freqüente ao longo de todo o conto. Veja o relato a respeito da ilha, no conto “A Ilha dos Gatos Pingados”:

Lá ninguém ia, o mato era fechado na beira da água, mas varando o mato o resto era limpo, dava muito cará e sangue-de-cristo. Não tinha era canoa, a que costumava ter tinham tirado, com certeza justamente pra menino não atravessar. O jeito era fazer uma jangada de toro de bananeira (VEIGA, p.14-15).

O protagonista da narrativa em questão, Cedil, sofre agressões físicas pelo namorado de sua irmã, o Zoaldo. Por esse motivo, o garoto se refugia na ilha para brincar. Antes de tudo, a ilha é um espaço físico concreto, porém, no conto, além de ser um ambiente de prazer e de brincadeira, é um local que funciona como consolo. A ilha é também ambiente de fuga, é o local onde o menino, momentaneamente, pode se esquecer dos espancamentos. Aliás, Held (1980, p. 81) ratifica essa simbologia da ilha ao dizer que “a ilha, elemento fixo, estável, representa a segurança, o que protege a criança, que a isola também das importunações”. O comentário do narrador nos confirma a validade dessas assertivas, ao mencionar: “Para nós a ilha era brinquedo, pra ele era consolo” (VEIGA, p. 18). A primeira idéia do garoto com relação ao que faria de sua vida foi pensar em suicídio (morte física). Depois da experiência de conviver na ilha, o garoto chega a opção da fuga (que é um tipo de morte simbólica). A ilha, portanto, é o elo entre duas possibilidades de morte. Dessa forma, a significação da ilha para o personagem Cedil passa por uma gradação: a ilha é vista como local de brinquedo, de consolo, de refúgio e de fuga definitiva.

Nos contos “A Ilha dos Gatos Pingados”, “Os do outro lado”, “Fronteira” e “Professor Pulquério”, os espaços se revelam por meio da dimensão simbólica, a fim de suavizar os acontecimentos difíceis do dia-a-dia. Nas narrativas “Os cavalinhos de Platiplanto” e “A Invernada do Sossego”, os espaços são locais onde se vêem realizados os desejos irrealizados da vida por meio do sonho. Isso nos leva a crer que os espaços interiores suavizam os eventos difíceis da vida e, também, contribuem para que os personagens encontrem saídas para suas trajetórias pessoais. Na terceira modalidade do espaço, veremos que o espaço composto por elementos simbólicos permite que o narrador, através do sonho, veja seu desejo realizado. Esses elementos contribuem para que o narrador resolva seu conflito interno e supere e/ou compreenda uma situação de morte.

 

O espaço do sonho

Na narrativa “Os cavalinhos de Platiplanto”, o espaço do sonho se torna o local onde as frustrações podem ser atenuadas e os desejos realizados já que em suas próprias vidas isso não é possível. Antecipando-nos ao estudo do sonho do narrador, podemos afirmar que o desejo que ele tinha de receber o cavalinho prometido por seu avô aparece de modo realizado. No sonho, o narrador toma conhecimento de tal concretização:

— Meu tio Torim? O que é que ele quer comigo?

É por causa dos cavalos que seu avô encomendou para você. São animais raros, como não existe lá fora. Seu tio quer tomá-los (VEIGA, p. 48).

A realização do desejo do garoto acontece por meio do sonho. Segundo Freud (1973), o desejo conhecido da consciência, é centro de interesse e parte da vida diurna, e quando utilizado na composição de uma situação onírica se apresenta de forma realizada.

os sonhos nos mostram o desejo como já realizado; representam sua realização como real e presente; e o material empregado na representação onírica consiste principalmente, embora não exclusivamente, em situações e em imagens sensórias, principalmente de um caráter visual. Desse modo, mesmo neste grupo infantil, uma espécie de transformação, que merece ser descrita como elaboração onírica, não se acha completamente ausente: um pensamento expresso no optativo foi substituído por uma representação no tempo presente (1973, p. 33, grifos do autor).

O sonho do garoto se inicia com a ida dele a uma fazenda nova e desconhecida. O espaço se apresenta como um lugar novo, re-elaborado, idealizado pelo inconsciente, totalmente diferente dos locais que o sonhador está acostumado a freqüentar. Aliás, como é comum nos sonhos. Por isso, a chegada a esse local é feita por uma ponte que não era de atravessar, mas de subir. Segundo Rezende (1998, p. 58), a ponte é um símbolo recorrente nas narrativas veigueanas e indica uma passagem para o distanciamento entre o plano real e o plano onírico. A presença da ponte para se chegar ao outro lado também comprova a idéia do simbolismo da passagem contida neste elemento, e que é relacionada, constantemente, a um caráter perigoso de toda viagem iniciatória, conforme Chevalier & Gheerbrant (1999) nos esclarecem. Ainda, segundo os referidos autores, a imagem da ponte indica

a angústia que suscita uma passagem difícil sobre um local perigoso e reforçam a simbólica geral da ponte e sua significação onírica: um perigo a superar, mas, do mesmo modo, a necessidade de se dar um passo. A ponte coloca o homem sobre uma via estreita, onde ele encontra inexoravelmente a obrigação de escolher. E sua escolha o dana ou o salva (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1999, p. 730).

O garoto escolhe atravessar a ponte. Mas, nesse trajeto, é preciso que ele execute algumas tarefas para conseguir realizar a travessia, condição imprescindível para atingir o crescimento psíquico. O narrador nos conta as dificuldades encontradas ao longo de seu caminho:

A gente chegava até lá indo por uma ponte, mas não era de atravessar, era de subir. Tinha uns homens trabalhando nela, miudinhos lá no alto, no meio de uma porçoeira de vigas de tábuas soltas. Eu subi até uma certa altura, mas desanimei quando olhei para cima e vi o tantão que faltava. Comecei a descer devagarinho para não falsear o pé, mas um dos homens me viu e pediu-me que o ajudasse (VEIGA, p. 45).

O encontro do garoto com homens que estavam no alto da ponte confirma que a chegada ao topo corresponderia ao alcance do amadurecimento. Porém, o receio de fazer a travessia representa o medo que ele tem de se deparar com as dificuldades dessa viagem interna, pois o caminho do crescimento psíquico e da evolução do ser passa por dores e sofrimentos. A esse respeito, Bachelard (1998, p. 05) se pronuncia: “Sofremos pelos sonhos e curamo-nos pelo sonho”.

A trajetória do garoto, no sonho, corresponde à retomada de um dos mitos que povoam nossa psique, é o mito do herói. Joseph L. Henderson (2000), baseado nos estudos junguianos, afirma que esse mito é marcado pela reprodução de um ciclo que vai do nascimento até a morte, simbolizando as difíceis tarefas que a vida há de impor àquele que sonha com a conquista da maturidade. A imagem do herói evolui de maneira a refletir cada estágio da evolução da personalidade humana. No conto, em particular, percebe-se que o mito do herói não representa toda a totalidade da vida humana, mas um estágio de sua evolução, uma dificuldade em especial, ou seja, sua necessidade de lidar com a aceitação da morte de seu avô.

A fraqueza inicial do herói - o medo de subir a ponte - é contrabalançada pelo aparecimento de um homem que solicita sua ajuda. Essa figura, do mesmo sexo do herói, corresponde a uma figura “tutelar” ou a um “guardião” que lhe permite realizar as tarefas, sem cuja ajuda seria impossível a conclusão. É ele quem instiga o herói à jornada e o convoca para a realização da tarefa, pois conhece os segredos de como proceder para atravessar a ponte. Esta figura representa o self [2], ou a totalidade absoluta da psique que emerge à consciência individualizada do ego à medida que o indivíduo cresce, ou seja, uma entidade maior e mais ampla que supre o ego da força que lhe falta. Tais considerações sobre o papel do guardião podem ser observadas pelas indicações do próprio narrador:

Era um serviço que eles precisavam acabar [...].

Fiquei com medo [...]. Eu era muito pequeno, e só de olhar para cima perdia o fôlego. Eu disse isso ao homem, mas ele riu e respondeu que eu não estava com medo nenhum, eu estava era imitando os outros. E antes que eu falasse qualquer coisa, ele pegou um balde cheio de pedrinhas e jogou para mim.

— Vai colocando essas pedrinhas nos lugares, uma depois da outra, sem olhar para cima nem para baixo, de repente você vê que acabou (VEIGA, p. 45-46).

Tampar os buracos é fechar as feridas. Por isso, após a tarefa cumprida, há uma mudança na vida do garoto, pois este não se sente mais como antes. Ele próprio declara: “Olhei a ponte mais uma vez e segui o meu caminho, sentindo-me capaz de fazer tudo o que eu bem quisesse” (VEIGA, p. 46). Atravessar a ponte de subir é sair da infância para a maturidade, é alçar um degrau para a aceitação de não ter recebido o cavalinho, ou o primeiro passo para a compreensão de que o avô morrera.

Mircea Eliade (2001, p. 172) considera que “a atividade inconsciente do homem moderno não cessa de lhe apresentar inúmeros símbolos, e cada um tem uma certa mensagem a transmitir, uma certa missão a desempenhar, tendo em vista assegurar o equilíbrio da psique ou restabelecê-lo”. No sonho do narrador do conto “Os cavalinhos de Platiplanto”, a ponte, o guardião, as tarefas executadas contribuem para que esse restabelecimento da psique aconteça.

Assim, ao continuar a trajetória onírica, o garoto se encontra com um menino que tinha medo de tocar bandolim por causa dos “bichos-feras”. À maneira de Jung, podemos considerar o tocador como a sombra projetada pela sua mente consciente que contém aspectos ocultos, reprimidos e desfavoráveis de sua personalidade. Joseph L. Henderson (2000, p. 118), especificando os mitos antigos e sua representação no sonho de homens modernos, esclarece: “Para a maioria das pessoas o lado escuro ou negativo da personalidade permanece inconsciente. O herói, ao contrário, precisa convencer-se de que a sombra existe e que dela pode retirar sua força”. Por isso, o garoto fornece ao tocador uma solução para seu problema, sugerindo-lhe que toque o bandolim de olhos fechados.

Depois disso, o sonhador é levado pela música do tocador de bandolim à presença do major, dono da fazenda. O major também é considerado como um guardião, uma força que age em defesa do garoto, pois ele o adverte que seu tio Torim quer tomar os cavalos que o avô havia encomendado para ele. A partir desse encontro, o garoto consegue satisfazer seu desejo de encontrar os cavalinhos encomendados. O garoto se depara com uma piscina de ladrilhos onde os cavalinhos se banham num “espetáculo que ninguém enjoava de ver” (VEIGA, p. 50). Como se sabe, a água é um elemento portador de vários significados. Nessa situação onírica, a água se apresenta como símbolo que se reveste de um sentido de eternidade, por isso aquele momento ficou guardado na memória do garoto. Porém, o menino é advertido de que não poderia levar os cavalinhos porque eles só existiam em Platiplanto. Depois de todo o espetáculo do banho, o garoto retorna à sua realidade.

O banho foi outro espetáculo que ninguém enjoava de ver. Os cavalinhos pulavam na água de ponta, de costas, davam cambalhotas, mergulhavam, deitavam-se de costas e esguichavam água pelas ventas fazendo repuxo.

Todo mundo ficou triste quando o clarim tocou mais uma vez, e os cavalinhos cessaram as brincadeiras (VEIGA, p. 50).

O sonho possibilitou ao narrador um alívio para a frustração de nunca ter podido receber o presente do avô. Mas, muitas vezes, a intensidade do desejo se confunde com a intensidade do sonho e faz com que o sonhador fique com a sensação de que tudo era real, como acontece com o narrador do conto “Os cavalinhos de Platiplanto”. Ao acordar, o garoto resiste em contar aquela experiência e declara: “Pensei muito se devia contar aos outros, e acabei achando que não. Podiam não acreditar em mim; e eu queria guardar aquele lugar perfeitinho como vi, para poder voltar lá quando quisesse, nem que fosse em pensamento” (VEIGA, p. 51). Como esclarece Jung (1985), o sonho retifica uma situação que está em aberto, completa o que está faltando. Anita Resende (1998), a respeito do sonho como projeção das impossibilidades da vida real, acrescenta:

os sonhos podem revelar a limitação de uma realidade com a qual se está em permanente confronto. Afinal, os desejos que só são possíveis nas câmaras do sonho revelam as impossibilidades e os obstáculos da vida real. Esse aspecto constitui o sonho como portador de um sentido contestador enquanto ilumina limites, impossibilidades e realizações incompletas. O sonho aponta assim sempre para o incompleto, o finito, a falta (RESENDE, 1998, p. 19).

Os elementos presentes no espaço do sonho no conto veigueano têm a função de contribuir para que o sonhador atinja uma maturidade ainda não conquistada. A trajetória onírica iniciada com a passagem pela ponte e as provas até o encontro com os cavalinhos levam o narrador à superação interna de seu conflito e, por isso mesmo, a escolha do garoto, no início do sonho, de concluir ou não a travessia, implica esta superação.

O estudo dessas três modalidades do espaço na obra Os cavalinhos de Platiplanto nos permite concluir que o espaço na referida obra é impregnado de sentidos e assume papel fundamental na construção dos contos, pois se configura por meio de modalidades diversificadas e está ligado às diferentes possibilidades de morte. Os locais referidos pelo narrador são espaços físicos que podem ou não assumir uma dimensão simbólica e refletem, de alguma forma, a maneira de sentir e de agir dos personagens e, particularmente, contribuem para a aclimatação das situações de morte.

 

Notas

[*] Comunicação apresentada em outubro de 2005, em Goiânia, Brasil, no Simpósio “Leitura de Narrativas”, Universidade Federal de Goiás.

[1] Em Os cavalinhos de Platiplanto, a morte acontece particularmente sob duas formas: a “morte física” em que o personagem morre de acontecimento natural em decorrência de alguma enfermidade ou outro motivo que tenha como conseqüência a perda da vida e a “morte simbólica” em que o personagem não morre fisicamente, mas de uma forma ou de outra se anula para o mundo.

[2] “O self não é somente o centro”, escreve Jung, “mas também a circunferência total que abrange tanto o consciente como o inconsciente” (SAMUELS, 1988, p. 193).

 

Referências

BACHELARD, Gaston. (1998) A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Trad. Antônio de Paula Danesi. São Paulo: Martins Fontes.

______. A poética do espaço. (2003) Trad. Antônio de Paula Danesi. São Paulo: Martins Fontes.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. (1999) Dicionário de símbolos. 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio.

ELIADE, Mircea. (2001) O sagrado e o profano: a essência das religiões. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes.

FREUD, Sigmund. (1973) Sobre os sonhos. Trad. Walderedo Ismael de Oliveira. Rio de Janeiro: Imago.

HELD, Jaqueline. (1980) O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. Trad. Carlos Rizzi. São Paulo: Summus.

HENDERSON, Joseph L. (2000) Os mitos antigos e o homem moderno. In: JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 104-157.

JUNG, Carl Gustav. (1985) Fundamentos de psicologia analítica. Trad. Araceli Elman. 3.ed. Petrópolis: Vozes.

______. Chegando ao inconsciente (2000) In: ____. O homem e seus símbolos. Trad. Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 18-103.

LINS, Osman. (1976) Lima Barreto e o espaço romanesco: ensaios. São Paulo: Ática.

RESENDE, Anita C. Azevedo. (1998) Sonho: o guardião do sono. In: MONINI, Italiano. Sonho. Goiânia: UCG, p.15-21.

REZENDE, Vânia Maria. (1998) Fantástico e maravilhoso na obra de José J. Veiga. In: ______. O menino na literatura brasileira. São Paulo: Perspectiva, p. 53-66.

SAMUELS, Andrew e Colaboradores. (1988) Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago.

SCHOPENHAUER, Arthur. (2003) Da morte. Metafísica do amor. Do sofrimento do mundo. São Paulo: Martin Claret.

VEIGA, José J. (1997) Os cavalinhos de Platiplanto. 20.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.

 

Rosselini Diniz Barbosa Ribeiro é Mestre em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás. Professora de Literatura Brasileira e Infanto Juvenil na Universidade Estadual Vale do Acaraú - Goiânia.

 

© Rosselini Diniz Barbosa Ribeiro 2009