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Por Braúlio Tavares
 
Todo tradutor profissional deveria mandar imprimir uma placa, ou um pôster de bom tamanho, e pregá-lo na parede do seu escritório, transcrevendo este comentário de Jorge Luís Borges, numa de suas entrevistas parisienses com Georges Charbonnier:
 
Talvez o ofício de tradutor seja mais sutil, mais civilizado, do que o de escritor. O tradutor chega evidentemente depois do escritor. A tradução é uma etapa mais avançada.
 
Borges era fértil em paradoxos (era discípulo atento dos insuperáveis G. K. Chesterton e Oscar Wilde), e não devemos ver nestas suas “boutades” nenhuma afirmação peremptória. Ele se divertia em fazer inverter papéis, para mostrar ao interlocutor que tudo depende do ponto de vista. Por que não ver um texto como algo que evolui sem cessar, ao passar pelas mãos de diferentes indivíduos?
 
Em frases assim, Borges está meio que seguindo aquela visão evolucionista, bem século 19 (ele foi um homem do século 19 durante a vida inteira), de que as coisas inevitavelmente evoluem, de que a passagem do tempo é benéfica para quem sobrevive a ela.
 
Basta lembrar aquela outra frase sua, de que os séculos fazem com uma frase o que faz com as pedras de um rio: dão-lhes polimento, reduzem-nas ao essencial, desbastam tudo que é acessório.
 
Infelizmente não é assim: toda tradução é uma espécie de retorno de um texto à estaca zero. Tudo vai recomeçar dali. Não importa quantas vezes a Divina Comédia já tenha sido traduzida: quando alguém começa a traduzi-la de novo todos os problemas possíveis voltam a ser colocados.
 
As soluções encontradas pelos outros tradutores podem até ser uma ajuda; mas também podem (isso acontece tanto!) ser armadilhas. Os outros também erram.
 
Eu falo às vezes sobre a necessidade, em certas ocasiões, de ser infiel à letra do texto para ser fiel à intenção do autor. Por exemplo: o autor põe na boca um um personagem uma menção à cultural local, lá dele. Isso deve ser traduzido ao pé da letra, ou deve ser substituído por uma menção à cultura do leitor?
 
Uma vez, um norte-americano conhecido meu começou a traduzir um conto meu para o inglês. Havia um trecho onde o personagem descreve uma cena dizendo algo como: “Eu tinha deixado meu carro estacionado na calçada da direita, entre uma Brasília e um Santana...”
 
Eram os carros brasileiros da época. Ele fez com tanta boa vontade que ao traduzir trocou por duas marcas de carros norte-americanos que não existiam no Brasil, argumentando que o leitor dos EUA (onde eu ia tentar publicar o conto) não sabia o que eram “Brasília” e “Santana”.
 
Mas o resultado ficou meio zé-limeira, com aqueles dois carros desconhecidos estacionados numa rua de Copacabana.
 
Há um episódio engraçado no folclore da tradução de cinema. Vi um faroeste norte-americano onde o cowboy foi visitar a professorinha do vilarejo, chegou lá de chapéu na mão, cheio de intenções. Todo tímido, sentado no sofá, ele perguntou, pra puxar conversa:
 
– Você sabia que foi Pedro Álvares Cabral que descobriu o Brasil?...
 
O Cine Capitólio não veio abaixo com aquela gargalhada unânime, numa prova de que é mesmo um herói da resistência. A frase do original devia se referir a algum lugar-comum dos ianques, os “peregrinos do navio Mayflower” ou coisa equivalente. Em vez de meramente traduzir, o cara das legendas fez uma valorosa tentativa para achar um equivalente.
 
Ele percebeu que se o cowboy dissesse: “Você sabia que o Mayflower aportou na América em 1620?” a maior parte do público brasileiro, que não sabe do que se trata, não perceberia que ele estava dizendo apenas um clichê espantoso, meramente para quebrar-o-gelo da conversa. A intenção do diálogo seria desviada.
 
O tradutor tentou (compreensivelmente) mostrar ao espectador brasileiro que o rapaz estava encabulado e estava puxando conversa da maneira mais canhestra possível. Mas ele não se colocou no lugar do público, para ver como ficava absurdo o vaqueiro norte-mericano dizendo a frase brasileira.
 
Ou então ele teve essa idéia, de falar em Pedro Álvares Cabral, e pensou: “Quer saber duma coisa? Pelo preço que me pagam, tá bom demais”. É uma guilda de gente calejada.