Oeiras na Independência do Brasil
Por Reginaldo Miranda Em: 26/01/2023, às 19H14
Reginaldo Miranda[1]
Com a precipitação dos acontecimentos em Parnaíba, o sargento-mor[2] João José da Cunha Fidié para ali dirige-se com sua tropa, a fim de abafar os sediciosos que conspiravam contra os interesses de Portugal. Desde a Revolução do Porto, com convocação e instalação das Cortes Constituintes de Lisboa, grande parte da sociedade lusitana defendia abertamente o retorno da família Real, que se encontrava residindo no Rio de Janeiro e o rebaixamento do reino brasileiro à condição de colônia portuguesa. Contra essa situação levantou-se a sociedade brasileira. Não era mais possível subjugar-nos novamente à condição de colônia, pois a nossa sociedade estava amadurecida, consciente de seu poder, não mais aceitando essa humilhação. Foi com esse propósito que a câmara municipal de Parnaíba proclamou solenemente sua adesão à independência e união com Portugal. Mas o que significava essa aparente contradição? Na verdade, não havia contradição. O que proclamaram os parnaibanos foi a permanência do status quo brasileiro: reino livre, independente e por livre vontade, unido a Portugal. Em outras palavras, a manutenção do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, invenção recente de D. João VI.
Contudo, essa manifestação contrariava os interesses colonialistas dos constituintes de Portugal, que nos queriam reduzir à situação de colônia e explorar nossos recursos naturais de forma predatória, escravizando-nos. Por essa razão, para abafar essas manifestações, marchou o comandante das armas para Parnaíba, obrigando a retirada dos conspiradores para o Ceará e reduzindo aquela vila à obediência. No entanto, os fatos que se sucederam naquela vila litorânea, as idas e vindas, os altos e baixos, escapam aos objetivos desta solenidade. Aqui, agora, estamos para dizer da participação de Oeiras, a velha capital, nesses sucessos da Independência.
Desde que o major Fidié deixara a cidade de Oeiras, a situação modificara-se sensivelmente. Aqueles em que ele mais confiava foram os primeiros que se levantaram em armas para depô-lo e proclamar nossa solene e completa independência do reino de Portugal. Fidié deixara Oeiras em 13 de novembro de 1822, à frente do Batalhão de Primeira Linha e da tropa miliciana. Simbolicamente, trinta dias depois, em 13 de dezembro – Dia de Santa Luzia – seis homens encapuzados invadiram a Casa da Pólvora, surpreendendo os guardas, tomando-lhes as armas e lhes aplicando algumas chibatadas, sem que ninguém os socorresse. Em torno do episódio houve devassa, mas nada foi apurado, sendo o silêncio bastante eloquente. Oeiras tramava. Oeiras conspirava. No silêncio da noite, urdia-se a tessitura da Independência.
Esse silêncio só era quebrado pelos sermões de um padre pró-lusitano, vigário colado José Joaquim Monteiro de Carvalho e Oliveira, que pressentia os fatos e fazia alardes, chegando a firmar uma representação, em 31 de dezembro, pedindo a convocação de um conselho civil e militar para apurar assunto muito sério, segundo ele. Reunido o conselho no dia seguinte, com a presença das principais autoridades civis e militares, escusou-se o vigário de indicar nomes alegando que essa indiscrição seria incompatível com seu ministério sagrado. No entanto, depois de votação secreta, deliberou-se pela prisão em suas próprias casas, com sentinela à vista, por conspiração, de José de Sousa Coelho de Faria, José Félix Barbosa, Lourenço de Araújo Barbosa, João Barbosa de Freitas e tenente Ignacio Gomes Correia. Nenhum membro da elite dominante, sendo essa uma mera satisfação momentânea, para continuarem a tramar com segurança.
Nessa altura dos acontecimentos chega a Oeiras um correio de Jacobina, na Bahia. Era 11 de janeiro de 1823. Foi quando, depois de quatro meses, as autoridades locais tomaram conhecimento do Grito do Ipiranga e da aclamação de D. Pedro como Imperador Constitucional do Brasil. A situação mudava de figura. Uma portaria e proclamações do novo governo imperial brasileiro noticiava os fatos e os conclamava à adesão. O general Labatut informava que, por ordem do novo imperador brasileiro, se encontrava à frente de um grande exército, sitiando a cidade da Bahia; que no último dia 8 de novembro, patriotas baianos, de armas à mão, haviam mostrado seu valor aos portugueses, matando em combate mais de 200 e ferindo 300, além de fazerem muitos prisioneiros; informava dos reforços que esperava e assegurava-lhes que tão logo subjugasse os lusitanos de Salvador marcharia sobre o Piauí, para ajudar os patriotas locais. Essa notícia coincidia com um levante do destacamento militar da vila de Marvão, hoje Castelo do Piauí, que aderira à Independência. O vale do Crateús ameaçava a capital.
Mesmo diante desses fatos, a temerosa e vacilante Junta de Governo do Piauí, avisou ao general Labatut, pelo mesmo estafeta, que permanecia fiel ao governo de Lisboa. E toma medidas tendentes a evitar ser surpreendida pela invasão de patriotas pela divisa cearense. Contudo, sabiam que sua causa estava severamente ameaçada e perdendo apoios. Não sabiam mais em quem confiar. Por essa razão, o ouvidor da comarca, Dr. Francisco Zuzarte Mendes Barreto pede licença para retornar a Portugal, o que foi negado pela Junta de Governo. Era desconfortável a situação para os defensores da causa lusitana.
Estavam as coisas nesses termos quando um alvoroço tomou conta da cidade de Oeiras, na manhã de 24 de janeiro de 1823. A cidade acordara novidadesca, com movimento de tropas no largo da matriz. Fugiram na madrugada alguns membros da Junta. Novo governo se instalava. Também, novo sistema político, nova realidade. Estavam completamente desligados de Lisboa e para sempre unidos politicamente ao Rio de Janeiro. Ao romper do dia era grande a agitação e todos buscavam saber das novidades, entender o que realmente acontecia. Os relatos ainda eram desencontrados e somente aos poucos as peças iam se encaixando.
De fato, seguindo um plano adredemente traçado, na madrugada daquele dia os patriotas que tramavam em silêncio, derrubaram o governo pró-lusitano e assumiram as rédeas da província. Lideraram o levante o brigadeiro Manuel de Sousa Martins e seu irmão tenente-coronel Joaquim de Sousa Martins, que ficara no comando da força, como delegado de Fidié. Naquela madrugada, Raimundo de Sousa Martins e Francisco Manuel de Araújo Costa, rebelaram o Regimento de Cavalaria n.º 1; Manuel Pinheiro de Miranda Osório e José de Sousa Martins, assaltaram o Quartel de Linha; Ignácio Francisco de Araújo Costa e José Martins de Sousa, cada uma por sua parte, cercaram as residências e prenderam dois comandantes militares pró-lusitanos[3]; Manuel Clementino de Sousa Martins tomou a Casa da Pólvora. Enquanto esses fatos se desenrolavam, faziam patrulha pela cidade, com seu regimento de cavalaria rebelado, os majores Bernardo Antônio Saraiva e Honorato José de Moraes Rego, para apoiarem onde se fizesse necessário.
Enfim, assim se desenrolaram os fatos e ao romper do dia o povo respondeu com vivas, aos brados que os irmãos Sousa Martins, os irmãos Araújo Costa, Miranda Osório e outros erguiam à Independência e ao Imperador.
Reunidos naquela manhã, os vereadores, chefes militares, juiz de fora e os demais graúdos, em sessão extraordinária do senado da câmara, por unanimidade, ratificaram os fatos e aclamaram com entusiasmo o príncipe D. Pedro como Imperador Constitucional do Brasil. Em seguida, foi eleita a Junta Provisória de Governo, assim composta: presidente Manuel de Sousa Martins; secretário Manuel Pinheiro de Miranda Osório; e vogais Miguel José Ferreira, Ignacio Francisco de Araújo Costa e Honorato José de Moraes Rego. Na mesma ocasião fizeram os eleitos o juramento e tomaram posse de seus respectivos cargos, de tudo lavrando-se ata de vereação para a perpétua memória dos tempos.
Desde então, foi ação primordial do novo governo cooptar as demais vilas da província, arregimentar os corpos militares e consolidar o movimento emancipacionista. No dia seguinte, despacharam mensagem às câmaras das seis vilas piauienses, comunicando os fatos e ordenando que fizessem o mesmo imediatamente; aos dois comandantes militares de Campo Maior, ordenaram que cessassem suas ações e não embaraçassem, direta ou indiretamente, o Sistema do Brasil; ao major Fidié, para abandonar o Piauí; e ao governo pró-lusitano do Maranhão, para guardar neutralidade. Por via das dúvidas, suspenderam a exportação de carnes e tomaram medidas de segurança com relação à divisa maranhense.
Aliás, foi preocupação permanente do governo proteger as passagens do rio Parnaíba, com receio de invasão de tropas maranhenses. Não mostraram receios do retorno de Fidié, mas temiam ataques do governo do Maranhão, que não se concretizou. Talvez, se tivessem concentrado suas ações para deter o major Fidié, em vez de preocupar-se com o Maranhão, teríamos tido melhor sorte na Batalha do Jenipapo.
De toda forma, o presidente Manuel de Sousa Martins e seus aliados juntaram tropas e as enviaram para as passagens do rio Parnaíba. Em pouco tempo o capitão Francisco Manuel de Araújo Costa está com sua tropa nos portos de São Gonçalo, Santo Antônio e Poti, onde vai reunir-se ao tenente-coronel Raimundo de Sousa Martins, seu primo e cunhado. Foram dois denodados lutadores. Recebem reforços de Valença, liderados por Claro Luís Pereira de Abreu Bacelar, João da Costa Sousa e Antônio José Leite Pereira de Castelo Branco, gente intemerata, representantes das principais famílias do vale do Berlengas; de Parnaguá, veio somar-se a eles o capitão Tibúrcio José de Borges; cujo contingente engrossa as fileiras do capitão-mor João Gomes Caminha, oeirense que liderava um regimento de Jerumenha.
Não se pode esquecer os nomes de Thomé Mendes Vieira, Arnaldo José de Carvalho, José Ignácio Madeira, Mathias de Sousa Rebelo, Francisco Irineu Gomes Correia, João Damasceno Rodrigues, para ficar apenas entre os combatentes do centro e sul piauiense. Tudo gente denodada, brava, que não fugiu ao chamado da pátria.
Entram os cearenses arregimentados por Simplício Dias da Silva, João Cândido de Deus e Silva e outros lidadores parnaibanos.
Enfim, vem a Batalha do Jenipapo e o posterior cerco de Caxias obrigando a rendição do major João José da Cunha Fidié, que vem trazido para Oeiras e, posteriormente, enviado para a Bahia. É importante ressaltar que o brigadeiro Manuel de Sousa Martins, presidente da Junta de Governo do Piauí, com o irmão Joaquim, governador das armas e os cearenses capitão-mor José Pereira Filgueiras, comandante das armas do Ceará e Tristão Gonçalves Pereira, vogal da Junta de Governo cearense, tomaram parte pessoalmente no cerco e nas negociações para rendição de Caxias.
Depois vieram as chantagens a aleivosias dos cearenses, mas é assunto para outra oportunidade.
Manuel de Sousa Martins foi o braço forte, o grande líder desse movimento, por isso assumindo a testa do governo da província, como presidente da Junta de Governo. Não esmoreceu com a derrota dos patriotas em 13 de março, na histórica Batalha do Jenipapo, em Campo Maior, só descansando com a derrota total dos portugueses e prisão de Fidié, depois do cerco de Caxias, em agosto de 1823. É a grande referência da política piauiense durante a fase provincial, com poder inconteste, daí que somente conseguiram transferir a capital quando ele já beirava à senilidade.
Concluindo, pode-se dizer que a proclamação de Oeiras, em 24 de janeiro, foi a primeira declaração oficial dos piauienses pela separação política de Portugal. Foi o primeiro ato que ecoou o Grito do Ipiranga no Piauí. E a participação dos piauienses foi decisiva para consolidação da unidade nacional, evitando que o Brasil se desintegrasse como ocorrera na colônia espanhola. Por essas razões, merecem figurar nossos patriotas da Independência entre os heróis da pátria. Muito obrigado.
[1] REGINALDO MIRANDA, advogado com mais de 30 anos de efetiva atividade profissional, cofundador e ex-presidente da Associação de Advogados Previdenciaristas do Piauí (AAPP), ex-membro do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI, em duas gestões, ex-presidente da Academia Piauiense de Letras, em dois biênios. Autor de diversos livros e artigos. Possui curso de Preparação à Magistratura (ESMEPI) e de especialização em Direito Constitucional e em Direito Processual (UFPI-ESAPI). Contato: [email protected]
[2] Antiga patente militar ou correspondente a major.
[3] Capitão Agostinho Pires e alferes Dâmaso Pinto da Veiga.