O simbolismo no Brasil

[Otto Maria Carpeaux]

O Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro (2 volumes; Instituto Nacional do Livro), do Sr. Andrade Muricy, é obra cuja publicação esperávamos há muito tempo, com certa impaciência. Pois só agora pode-se empreender a tentativa de determinar o lugar do simbolismo na história da poesia brasileira. Além disso há, quanto ao autor destas linhas, motivos subjetivos que lhe inspiram o maior interesse pela obra citada.

Pedindo licença para começar com esses motivos pessoais, devo dizer que conheci relativamente tarde a poesia moderna, de que depois me tornei adepto impenitente. Em todos os países do mundo a escola faz os maiores esforços para sufocar, nos alunos, o senso poético, inculcando-lhes os versos célebres de falsas celebridades e estragando, pela análise gramatical, o gosto pelas autênticas. Dessa poesia de “trechos seletos” libertou-me, cedo, a leitura dos grandes poetas simbolistas aos quais sempre fiquei fiel. Quando disse isto, ocasionalmente, no Brasil, sempre me responderam: “Toda grande poesia é simboliza”. Historicamente, está certo. Mas enquanto se fala assim para desvalorizar o simbolismo digamos de 1890, de 1900, então a resposta apenas reflete o desprezo, muito comum no Brasil, pela poesia simbolista brasileira e pelo simbolismo em geral.

Panorama do movimento

É impossível defini-lo. Os maiores poetas simbolistas teriam sido Baudelaire, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud. Mas da poesia de Rimbaud só nos importa hoje a parte pré-modernista; Verlaine é grande, sobretudo, como autor de liederautenticamente românticos; Mallarmé só representa determinada face do movimento simbolista. E Baudelaire? “Clássico ou romântico? No sé”, assim como Antonio Machado disse de si mesmo. Talvez seja mais fácil definir o simbolismo como expressão de determinado état d’âme. Pelo menos é possível, então, distinguir o simbolismo autêntico, reação espiritualista de importância permanente, e o falso simbolismo decadentista, que o Sr. Andrade Muricy caracteriza (pág. 41) como expressão de sentimentalismo afetado, liturgicismo oco e hermetismo sem chave. Tudo isso já passou. Mas o simbolismo verdadeiro, este restabeleceu, depois do longo predomínio de um prosaísmo antipoético, a verdadeira função da poesia: isto é, a de dizer o que não se pode dizer em prosa.

Neste sentido, sempre houve, realmente, simbolistas. Blake é simbolista em pleno século XVIII. Também existe grande poesia que realizou aquele fim por outros caminhos e recursos: pois não é simbolista, em sentido mais estreito, a poesia de Dante, de Fray Luis de León, de Racine, de Goethe, de Leopardi, grandes entre os grandes. Todas essas observações, por mais necessárias que sejam, em nada modificam a verificação do fato histórico que o simbolismo de 1880, de 1890 representa: foi, depois do romantismo, o mais poderoso movimento poético, de trajetória universal, que já se viu.

O Sr. Andrade Muricy, na introdução de sua obra, dá um excelente esboço desse movimento simbolista internacional. São especialmente dignas de atenção as páginas 49 segg., sobre o simbolismo português, com respeito ao qual me permito discordar, um pouco, das opiniões do meu amigo e mestre João Gaspar Simões. Para uma futura segunda edição da obra do Sr. Andrade Muricy desejo sugerir umas ligeiras emendas nas páginas 18 e 19 da citada introdução: falta, incompreensivelmente, qualquer referência ao simbolismo italiano; “Hugh von Hoffmansthal” chamava-se Hugo von Hofmannsthal; o poeta alemão Holz nunca foi simbolista (e sim naturalista), em seu lugar figuraria melhor a poesia da mocidade de Rilke; Blok não é, na Rússia, uma “figura isolada” e sim o maior poeta, ao lado de Annenski, Briussov, Biely e Remisov, do poderoso movimento simbolista russo. Mas tudo isso não tem importância maior. Assinalar umas palavras erradas, como se se tratasse de um trabalho de aluno, é tarefa de professor; o crítico que o fizesse seria injusto para com o autor criticado e para consigo mesmo. Vamos à antologia dos simbolistas brasileiros, do Sr. Andrade Muricy.

Ali encontro, na primeira linha da introdução, uma frase que desarma a crítica: “Não é uma antologia”. Não há dois antologistas nem dois leitores de antologias cujos critérios de seleção sejam os mesmos. Mas a obra do Sr. Andrade Muricy não está sujeita a essas dissensões. Não é uma antologia. O critério que a informou não foi o do valor poético e sim o da importância representativa, típica. Não quero dizer, com isso, que o Sr. Andrade Muricy tenha sacrificado a crítica à história. Ao contrário, reparou várias injustiças inveteradas; nota-se, com satisfação especial, a reabilitação de Nestor Vitor, ao qual a cultura literária brasileira deve serviços inestimáveis. No resto, o Sr. Andrade Muricy, fiel ao seu programa, foi muito generoso. Incluindo em seu panorama, ao lado de alguns poetas injustamente esquecidos, os versos de numerosos poetastros, conseguiu demonstrar o que quis demonstrar: que o simbolismo brasileiro não foi uma moda efêmera, limitada a poucos pequenos grupos e sim um movimento nacional, de amplas repercussões. Até os parnasianos não conseguiram escapar de todo à sua influência. E ao simbolismo se deve o que há de melhor nos poucos neoparnasianos de valor real: em Augusto dos Anjos e Raul de Leoni, poetas extremamente dessemelhantes, o que constitui mais uma prova da força do simbolismo brasileiro. No entanto ouso repetir o que escrevi há anos: o simbolismo brasileiro fracassou.

Nas páginas 32 e 33 de sua introdução, o Sr. Andrade Muricy me honra com a citação das frases que já escrevi a respeito, discordando delas. Relendo-as agora, faço questão de dizer que não encerram desprezo nenhum pelo simbolismo brasileiro. Segundo o método de Croce e Russo, individualizando concretamente os fenômenos, eu diria: o simbolismo brasileiro, como fenômeno poético, está plenamente justificado pelos dois grandes poetas que produziu, o a que “uma cruz infernal prendeu os braços”, e o outro pelo qual “os sinos choravam em lúgubres responsos”. Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens.

Alphonsus-Guimaraens
Alphonsus de Guimaraens

Mas como movimento — e é este o objeto do livro do Sr. Andrade Muricy — o simbolismo brasileiro não cumpriu a tarefa histórica que conseguiu cumprir em outras literaturas. Pois tão poderosa como o próprio simbolismo foi e é, lá fora, sua sobrevivência. Como “post-simbolistas” caracteriza Bowra os grandes poetas Valéry, Rilke, George, Blok, Yeats, nomes aos quais eu gostaria de associar os de Antonio Machado e Juan Ramón Jiménez. Também são incontestáveis as influências do simbolismo em Apollinaire e nos surrealistas. Como síntese de simbolismo e naturalismo pôde Harry Levin definir a obra de Joyce. Mas no Brasil não houve “post-simbolistas”. Há fortes resíduos simbolistas no modernismo brasileiro (o próprio Mário de Andrade confessou que foi despertado do sono parnasiano pela poesia de Verhaeren). Mas não os herdou do simbolismo brasileiro; importou-os do estrangeiro, onde o simbolismo tinha cumprido sua função histórica. Na história não tem, aliás, sentido a pergunta pela “culpa”. Mas enquanto houve, pode-se dizer que a culpa pelo fracasso do simbolismo brasileiro não foi dos próprios simbolistas e sim de outras forças, aliás, nada ocultas.

Está, porém, certo o fato seguinte: a derrota do simbolismo brasileiro interrompeu a continuidade da tradição poética no Brasil. As conseqüências não foram, até hoje, superadas. Infelizmente, o processo histórico é irreversível. O que foi feito, não pode ser desfeito. Mas é preciso reconhecer o que se perdeu. Temos de pagar, ao simbolismo brasileiro, uma dívida de gratidão. Não foi possível isto enquanto não estava à nossa disposição a documentação necessária. Agora, o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, do Sr. Andrade Muricy, apresenta essa documentação. É uma obra que ficará, como indispensável instrumento de trabalho, na literatura brasileira.

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Nota bibliográfica. Otto M. Carpeaux, ‘O simbolismo no Brasil’, Letras e Artes, suplemento do Diário Carioca, Rio de Janeiro, ano 25, n. 7.436, 28 set. 1952, pp. 2, 6.