O que uma charge carrega
Por Gabriel Perissé Em: 02/03/2006, às 21H00
Charge, em francês, é carga. Designa a ilustração que carrega nos traços, com o objetivo de ridicularizar alguém ou caricaturizar determinada situação.
Carregar (carga de cavalaria) pode significar investida impetuosa. Ou surrar. Carga pode ser o conteúdo pronto a ser disparado pela arma de fogo. No futebol, carga é entrada faltosa com o intuito de derrubar o jogador adversário.
As charges, boas ou más, mudas ou com legendas, provocam o riso. Riso maldoso ou embaraçado, saudável ou zombeteiro.
Charge pesada pode prejudicar reputações. Mas a charge, por natureza, pouco respeita a imagem alheia, as intenções e esforços alheios. Figuras públicas estão expostas e os chargistas estão a postos. Um deles desenha Lula revoltado, pegando o telefone: “Pra mim chega! Eu vou acabar com a fome agora! Dona Maria, traz um pedaço de bolo e um cafezinho pra mim...”.
Chargista é humorista, e o humor gosta de ultrapassar os limites. E daí a raiva que provoca. Contra charges não há argumentos. Ou rimos, ou partimos para a briga. O chargista perde os dentes, mas não pede demissão. Ou até perde o emprego porque não quer deixar a profissão...
A charge é irreverente, é a ruptura com a burocracia, com a sisudez. Mesmo a charge de mau gosto tem algo de libertador. O piadista olha para a política e acha graça. O rapaz traz um pedaço de pizza. “O que é isso?”, pergunta o outro. O rapaz responde: “Relatório parcial da CPI”.
Agora uma que mereceria processo. O Lula com os irmãos Metralha, e a legenda: “Presidente Lula, em seu gabinete, posando para fotógrafos, ao lado de um grupo de aliados do governo”.
A charge é iconoclasta. Todo fanático ficará irritado. E convicções religiosas então... são alvo fácil.
Nas ruínas de Roma encontrou-se um grafito anticristão do século II, provavelmente feito por algum estudante gozador. Pendurado na cruz, um homem com cabeça de burro, e aos pés do desenho a frase “Alexâmenos adora seu Deus”. Alexâmenos não deixou por menos. Podia ter dado a outra face, mas preferiu escrever ao lado uma resposta afirmativa ao insulto gratuito: “Alexâmenos fiel”.
O exemplo arqueológico, em que a “vítima” consegue dialogar com o chargista amador, talvez seja uma sugestão de alternativa aos recentes rompantes de ódio de fiéis muçulmanos contra as charges européias. Manifestações compreensíveis, mas, com todo respeito, desproporcionadas.
Gabriel Perissé é doutor em educação pela USP e professor do mestrado em educação da Uninove-SP