(Miguel Carqueija)

O terror andará por perto?

O QUE EXISTE ENTRE AS ESTAÇÕES DO METRÔ


        


   De há muito que eu percebo em mim uma sensibilidade mórbida e acentuada, de maneira que frequentemente noto coisas que as outras pessoas não suspeitam. O sentido da visão, especialmente, é em mim bastante aguçado sob certas condições; falando em português claro, na penumbra, em ambiente sombrio ou de trevas, desde que não seja a escuridão total. Já em criança fui muitas vezes advertido por meus pais e tios porque, no mato ou em qualquer lugar mais ermo, ou até na cidade, eu via formas estranhas e assustadoras, como morcegos com faces humanas (porém horripilantes) cruzando os ares, ou pássaros com estranhas flamas no olhar empoleirados em galhos altos e protegidos pelas sombras da noite. Sim, porque a minha visão especial mostra, por via de regra, o horrível e medonho! O que as pessoas não crêem e nem querem que exista...
   Nos últimos tempos passei a ter intensas visões dentro do metrô do Rio de Janeiro. Sentado junto à vidraça, olhando para o exterior, quando a composição se move entre as estações, célere. E o que vejo é abominável!
   Você já deve ter reparado que, nas estações, o piso prossegue pelos túneis escuros, por onde é vedada a travessia de pedestres. Certamente que funcionários do próprio metrô por lá podem circular, até porque existem instalações além da área aberta ao público. Desconfio porém que trechos existem, mais para o meio dos percursos entre as estações, por onde ninguém normalmente circula, já que não teria ali o que fazer. Nesses trechos mais escuros, especialmente entre as estações seqüenciais mais afastadas entre si, é que eu enxergo, encostando-me ao vidro do trem, os monstros infames que aí habitam, sem que a população, que caminha na superfície, ao menos desconfie.
   Às vezes são seres bípedes, horrendos, de negras asas de quiróptero que agitam no ar viciado do túnel, enquanto seus olhos vermelhos e perversos fitam a composição que passa, e parecem mesmo me olhar de relance, como se adivinhassem que eu os vejo, enquanto seus aguçados caninos refletem alguma luz de origem desconhecida.
   Quando a composição pára entre as estações, como às vezes faz perto da Saens Peña, posso observar com mais atenção, embora tomando cuidado para que as outras pessoas não me percebam excitado ou agitado. Vejo muitas vezes criaturas execráveis, com patas e escamas reptilianas, estendendo suas línguas bífidas ameaçadoramente em direção ao metrô. Há também seres que desafiam a descrição, que parecem brotados do granito das paredes, como se fossem apavorantes pedras movediças, abrindo goelas imensas. Ou ainda, lobisomens como o que eu vi pouco antes de chegar ao Largo do Machado, agitando o punho fechado na minha direção e atirando-me com expressão feroz alguma ofensa obscena que eu não podia ouvir...
   Quando você passa na Estação Afonso Pena, pode reparar nos painéis azuis e no extintor pendurado logo no início. Pois pouco antes disso eu vi serpentes horripilantes subindo na pedra como lacraias. Entre o Estácio e a Praça Onze (no lado esquerdo do trem, mas olhando para trás, por causa da posição do banco) você pode enxergar o túnel de ventilação, que chega até a rua. Uma estranha mão negra é vislumbrada saindo da penumbra. Não se consegue ver mais nada.
   Entre a Praça Onze e a Central vejo pássaros de fogo, com dentes, esvoaçando no túnel gradeado. Mais adiante, um alojamento. Sim, existem alojamentos de funcionários do metrô, a poucos passos do sobrenatural. E eles nada percebem! Ou será que percebem mas se calam?
   Olho o mapa da cidade na estação Central. Corremos em direção à parada conhecida como Presidente Vargas. A distância é pequena. Dá para ver um banheiro, já fora da grande Estação Central (não há banheiros para o público no Metrô — e os dos empregados já ficam na parte interdita), poucas luzes de néon, que iluminam vagamente uns monstros vegetais, a chapa de interdição e o corredor, que você deixa para trás ao chegar em Presidente Vargas.
   Indo para a Estação Uruguaiana, vejo buracos quadrados onde rastejam vermes asquerosos. Numa das pilastras de cimento, agarrado com as ventosas das patas e de cabeça para baixo, um pterodáctilo ou coisa parecida. Estamos na Estação Carioca e eu presto atenção no circuito fechado de tv e nos relógios.
   Vejo funcionários já nas partes escuras, logo antes e logo depois da Estação Cinelândia.
   Estão todos cegos para o que eu vejo?
   Depois da Glória enxergo fios, luzes e cavernas. Há um dragão numa dessas cavernas, e solta uma labareda na minha direção. Creio que eles me conhecem há tempos e não gostam da minha intromissão. Depois do Catete, uma forma indizível, lustrosa, agarrada num basculante...
   E assim chego ao meu destino com a mente povoada dessas aparições monstruosas. E cada vez mais se firma em mim a convicção de que essas criaturas querem alguma coisa, planejam algo, não estão lá apenas vegetando.
   De onde vieram? Talvez do centro da Terra, onde existem cavernas de tamanho inconcebível. E se agora estão tão próximos da superfície, talvez não sejam mais que a guarda avançada de um exército de monstros que se preparam para invadir o nosso mundo e nos destruir.
   Preciso fazer alguma coisa. Mas o que? Se conseguir matar alguns daqueles seres e exibir suas carcaças, as autoridades acreditarão em mim. Eu sei como se fabricam bombas-relógio. Farei várias. Atravessarei a placa de interdição e invadirei o domínio dos monstros. Ei de matar ao menos um...



(RELATÓRIO DO DETETIVE ELIÉZER)

   "A descoberta desse diário do infeliz Sigmundo Ramos, a meu ver, esclareceu o assunto. Tratava-se evidentemente de um desequilibrado, e só possuía livros de bruxaria ou coisas semelhantes. Curiosamente, era um bancário e seus colegas não sabiam das suas obsessões. Trazia em sua mochila várias bombas de fabricação caseira, mas só uma explodiu, no trecho entre as estações de Glória e Catete. Fora a morte de Sigmundo, quase não houve danos. Na minha opinião ele deixou a mochila no chão para atacar um dos "monstros" com apenas uma bomba; depois usaria as outras. Mas, no estado de superexcitação nervosa em que se encontrava, não calculou bem o tempo...
   Resta somente explicar a origem do chifre negro e quebrado, que encontramos perto do cadáver.”