O poeta menor
Por Cunha e Silva Filho Em: 16/11/2009, às 21H20
Cunha e Silva Filho
Já escreveu alguém que os escritores menores, os que não atingem o estrelato, são muito úteis à vida literária, porque é neles que os historiadores vão buscar apreciáveis subsídios para a compreensão da história literária. Por isso, eles fazem parte do rol de escritores como um todo. A posição secundária deles não os impede de serem lidos e até estudados. Os ingleses até têm uma denominação para esses escritores de projeção restrita: minor writers, em oposição aos major writers.
Os autores menores, ficcionistas, poetas ou dramaturgos, têm muito a nos ensinar e a nos transmitir. Todavia, o gênero poético é o que mais inflaciona um contingente enorme de autores menores, os quais tanto podem aparecer nas metrópoles quanto nas cidades menores.Há quem os chame depreciativamente de poetoides ou poetrastros, versejadores ou por outros epítetos análogos. São denominações constrangedoras, que suscetibilizam as pessoas, que devem ser usadas com muito cuidado. Alguém já afirmou que a literatura não só vive de gênios ou de grandes talentos. Não teria grça se assim o fosse. Os gênios são poucos. O que, porém, não falta são escritores de menor expressão. Ainda mesmo entre os talentosos há os que não alcançam notoriedade nacional e muito menos universal.
Basta examinarmos o número de poetas que já apareceram no Brasil pra concluirmos que a maioria deles não vinga. Desaparecem como fumaça pelo tempo afora. São nomes que estão mais nos registros da historiografia literária. Os que se distinguiram são proporcionalmente pouquíssimos. Os que dominam as nossas antologias poéticas atuais são relativamente poucos e quase sempre são os mesmos nomes, os happy few do cânone brasileiro e isso não deixa de ser uma tremenda injustiça.
Tomando, por exemplo, como marco o período do Modernismo na poesia brasileira, constatamos que o número de poetas conhecidos do grande público é muito reduzido: Bandeira, Drummond, João Cabral, Cecília Meireles que, com outros, formam um pequeno círculo da nossa poesia. O país tem dimensões continentais. Em cada estado da Federação, há uma quantidade considerável de poetas, sem falarmos nos municípios. Somando tudo, a estatística oferece número gigantesco. E não estamos falando nos vários estilos, fases ou movimentos por que passou a poesia brasileira.
Com relação a poetas menores e anônimos, um outro tipo abaixo do poeta menor, com uma produção que não atinge mais do que um único pequeno volume, publicado em edições particulares – autores que casualmente nos chegam ao conhecimento -, inexiste registro deles. Ficam de fora das histórias literárias.
O que diferencia o poeta menor do poeta maior: Eis uma questão que não é tão fácil assim de resolver, pois depende de vários fatores valorativos e formais, tendo à frente a questão da expressão verbal, enfim, da linguagem literária, da literariedade, da densidade temático-conteudística, da formação intelectual, do talento, da genialidade, da atividade poética contínua, entre outros.
Em geral, o que separa o grande poeta do mau poeta é semelhante ao teste da diferenciação entre um bom compositor de música popular de um mau compositor. Numa palavra, é uma questão de valor estético.
Um dos traços pertinentes e caracterizadores da poesia é o seu caráter de imprevisibilidade, e é esse traço distintivo que delimita a fronteira do nível elevado de expectativa lingüístico-formal. O poeta menor não é alguém visceralmente preocupado com a linguagem elevada ao estatuto metalinguístico.Esse nível altíssimo de elaboração formal tem por meta perseguida pelo artista da palavra a construção de metáforas e imagens que traduzam sentimentos humanos, emoções e realidades diversificadas. Poesia maior é "luta pela expressão" . É a “palavra mágica’ drummondiana.
Sem preparo artístico, aperfeiçoamento de técnicas e sólida formação literária, não há grande poeta. Ao contrario, o poeta menor, o versejador, esse resulta mais da improvisação, do mimetismo fácil, do que do estudo. Seria poeta mais dependente do fogo da inspiração fácil e artificial, do narcisismo pessoal, da imitação ingênua, da espontaneidade circunstancial que pensa fazer poesia quando apenas está dando largas a desabafos subjetivos, a dores de cotovelo, a particulares circunstâncias enfrentadas em dado momento da vida. Alguns deles há que conseguem até ser felizes em alguns poemas escritos, mas, no geral, não conseguem um bom nível formal e inventivo de produção poética.
Os poetas menores por vezes nos causam alguma comoção, porquanto, em geral, nos vêm bater à porta. Decididamente, não devemos fechar-lhes as portas, quando não, pela educação devida, pela obrigação que temos de ler o que escreveram, ainda que não tenham sido ungidos pela consagração da crítica.
Todos conhecemos esses poetas que nos vêm com as suas pequenas produções impressas em alguma gráfica ou editora modesta, sem o chamado selo das editoras famosas. Seus livros foram escritos com o desejo - como é natural – de serem lidos. São autores que não vendem sua obra, antes saem distribuindo-a casualmente entre leitores acidentais, amigos, conhecidos. São os poetas anônimos, desconhecidos, esperançosos de elogios que nunca lhes chegam. Procuram por vezes, vender até alguns exemplares em bancas de jornal, nas estações rodoviárias, ou pessoalmente, como faziam os escritores marginais, os poetas do mimeógrafo dos anos setenta do século passado. Na rua, nos bares, nas esquinas, em todos esses lugares lá estão eles, esperançosos do aceno de alguém que manifeste a vontade de ficar com um exemplar, até mesmo para não o ler, mas apenas para ser solidário com eles.
Nenhum pesquisador até hoje, ao que eu saiba, se deu ao trabalho de catalogá-los pelo país afora. Seria uma tarefa que demandaria uma grande equipe nos moldes das pesquisas do IBGE.
Imagine-se a publicação em vida desses anônimos, rotulados de poeta menores. Causaria, por certo uma convulsão social, pois nenhum deles , em vida, se sentiria poeta menor. Portanto, afigura-se-me paradoxal o registro deles em vida, já que haveria a possibilidade de criar sérios constrangimentos e melindres de natureza bairrista. A publicação teria que ser mesmo póstuma. Alguns deles, de tão anônimos, nem mesmo chegariam ao conhecimento do historiador. Todavia, não se pode negar que a existência deles sirva para ensejar uma visão global da produção marginal,2 material farto e útil para a sociologia da literatura. As gráficas e tipografias espalhadas pelos quatro cantos do país seriam indicações certas para a coleta de informações sobre esses poetas menores.
Entretanto, alguns desses poetas se julgam ingenuamente com talento e dignos de publicação. Abrimos-lhes as primeiras páginas e ali vamos seguramente encontrar o déjá vu : os habituais acrósticos, as dores amorosas, versos às flores, o canto aos símbolos nacionais, os versos à natureza, e frequentemente o clássico lugar-comum: os poemas sobre o amor, correspondido ou não, as palavras adocicadas, com rimas, estrofes, a linguagem correta, a métrica certinha, tudo segundo o emparedamento tradicionalista do tipo romântico (mais frequente), simbolista ou parnasiano, que pensa que Poesia se faz apenas de rimas, métrica, estrofe, algum ritmo, sentimentos de boa intenção ou palavras de efeito. Nada tão distante da Poesia. ,
Notas:
1. Ver SOUSA DANTAS, José Maria de. Discurso poético e Discurso não-poético, in: SOUSA DANTAS, Jose Maria de. Didática da literatura. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1982, p. 18.
2.Emprego o termo “marginal” aqui no sentido de publicar uma obra sem as exigências de fichas catalogação nos órgãos competentes, i. e., trata-se de publicações particulares em gráficas ou tipografias. O termo, neste contexto, nada tem a ver com poesia marginal, ou ficção marginal, que são formas literárias diferentes e já bem conceituadas teoricamente.