Paulo Ghiraldelli Jr., 62, filósofo

Minha neta Mariana ainda não sabe falar. Mas ela já sabe ver o “Monica Toy” no tablet. Ela toca a mão naquilo, no gesto de deslizar, e se delicia com as aventuras dos bonecos mauricianos. Há uma imediaticidade nisso: os sentidos da visão e da audição são acionados conjuntamente com o do tato. São três formas de imagens: tátil, visual e auditiva, não mais separadas, mas dadas em conjunto. Nossas crianças estão sendo educadas, já corporalmente, para o imediatismo das imagens. O imediatismo, ou seja, o sem mediação, é antes de tudo o rápido. Acesso e entendimento precisam, agora, de velocidade.
 
As pessoas aceleram meus vídeos. Não querem pensar. Se irritam se não recebem toda a informação de uma vez só, como quem recebe um tapa na cara, e não um beijo. São pessoas que já foram educadas pela minha neta. Que sabe beijar já, mas que estará propensa a estapear, aposto.
 
As imagens dominam a Terra, em três dimensões dos sentidos, que se dão conjuntamente, e que obrigam o pensamento a se modificar e, ele também, a se tornar peça do imagético. O pensamento, que era por definição uma mediação, agora se põe como arauto da degradação da imediaticidade. Desse modo, o pensamento não pensa. The Flash era um cara rápido. Agora, o flash é algo que se impõe ao pensamento, como se este só pudesse funcionar no seu não funcionamento, ou seja, no piscar de receber imagens. O mundo não faz sentido (Weber nos avisou), então, o sentido é dado pelas imagens disparatadas, dadas por um fluxo louco. Se podemos chamar isso de espetáculo, eis que agarramos tal situação para que, pelo nome, saibamos que alguma coisa está ocorrendo, que ainda estamos vivos e passando por alguma coisa, ou alguma coisa passando por nós.
 
Não foi a TV que nos preparou para isso, embora ela tenha ajudado. Não foi a Internet vinda pelo celular à mão que nos jogou nisso, embora tal coisa tenha fundado um novo reino para sermos súditos. O que nos preparou para tal foram, seguindo Heidegger e Debord, duas grandes viradas. Uma que foi a da “subjetivação do mundo”, estrelada pelo Humanismo, tendo Descartes à frente. Outra foi a do império da mercadoria, que forjou o mundo fetichizado, e que empurrou a subjetividade para outro plano. Marx foi o herói crítico dessa segunda fase.
 
Na amostragem de Heidegger, Descartes fez a verdade passar do desvelado para o certo (para a certeza), e fez o mundo apresentado, então, tornar-se representação – algo feito pelo homem. Tendo assim agido, colocou o mundo como algo do homem para o homem. Inaugurou uma época em que tudo é manipulado pelos olhos humanos, quando faz ciência, e pelas mãos, quando faz tecnologia, e pela guerra, quando quer testar tudo isso.
 
Na amostragem de Debord, Marx denunciou o advento da mercadoria como portadora de valor, ou seja, de hora de trabalho abstrato, algo que é o social humano embutido numa peça material. Sendo assim, a mercadoria, se tem utilidade, é algo que se impõe ao homem como tendo subjetividade, como o que aparece ao homem comandando sua ação, e transformando-o em objeto. Ela mostra ao homem seu modo de ser sensível e supra sensível ao mesmo tempo. Nisso, se põe como fantasma, como fetiche. Essa fetichização é seu espetáculo. A imagem fantástica disso nos embasbaca.
 
Assim, para Heidegger a modernidade é a época em que o mundo vira imagem, enquanto que para Debord a contemporaneidade é a época em que as imagens são já feitas em forma de espetáculo, de algo fantasmático. A imediaticidade da minha neta com as imagens, ou a daqueles que olham o vídeo do celular com pressa, ou, ainda, a dos que se deixam seduzir por tudo que é imagem tátil-sonora-visual imediata, como as simplórias imagens da campanha de Bolsonaro, revelam que a operação descrita por Heidegger e Debord foram eficientes. Primeiro, transformamos o mundo em imagem. Depois, transformamos o mundo das imagens em espetáculos. Primeiro, a ação humana de trazer tudo para o homem. Depois, a ação do capital de trazer tudo que é do homem e da terra para o fetiche. Vivemos sob o domínio disso. E criamos o Humanismo e o Capitalismo em comum acordo. Não à toa, eles nasceram praticamente juntos. Foram embalados por gôndolas de Veneza.
 
Esse projeto nos fez duplamente dominado: a dominação do homem pelo homem e a dominação do fetiche, do fantasma, sobre o homem. Dominação não em pensamento que passa, para nos dominar, pela cabeça, mas dominação que nos torna súdito por vivermos realmente numa situação de súditos. Súditos do homem pela técnica, súditos do homem pelo fantasma. Ninguém acha que pode ter o mundo, mas acha que pode ter representações dele. Daí a força do Facebook e do Youtube na produção de ontologia. Ninguém acha que pode escapar da mercadoria lhe dando ordens, como sujeito humano, daí a força das imagens de compra e venda das mercadorias que dominam nossa vontade, desejo, ação e, enfim, nossa subserviência ao valor, expresso numericamente em dinheiro.
 
Podemos nos libertar do humanismo e do capitalismo? Duvido que só a política faça isso. Todavia, enquanto cidadão, continuarei assinado petições por liberdade de imprensa, lutando pelo voto correto, cobrando meu deputado, condenando o genocídio e os ataques às minorias. Farei tudo isso como cidadão liberal americano, ou social democrata europeu. Mas, se eu fizer demais isso, matarei minha rebeldia e deixarei de tentar pensar em horizontes utópicos, livre da sociedade do espetáculo e seu humanismo? É um desafio ainda, mesmo para mim, aos 62 anos. Estou como quem começa agora.
 
 
PS: as passagens do texto, ao falar de Heidegger e Debord, precisam de leitura e estudo acadêmico. Dependem de se entender Heidegger em “A era das imagens de mundo”, e de se entender Debord em A sociedade do espetáculo. Não se faz filosofia sem estudo e sem passar pela confraria universitária. Mas isso não é o fim do mundo. Em 60 anos, você pega alguma coisa.