ELMAR CARVALHO

 

No final da semana retrasada, ao retornar a Teresina, encontrei um livro, que algum carteiro deixara na portaria do condomínio onde moro, cuja chegada já me fora anunciada por minha mulher ao telefone. Ainda a velha empresa de Correios é usada, ao menos para o envio de livros e outros objetos. Já pouco se enviam carta e cartão-postal. Usa-se hoje, quase sempre, o recurso de e-mail, pela internet, ou de torpedos, pelo telefone celular. O mundo se torna cada vez mais instantâneo e virtual.

 

Não resta dúvida, as mensagens eletrônicas exigem menos trabalho e despesas. Não se precisa de envelope, cola, selo, papel, deslocamento para a agência postal, espera em fila e talvez mais algum inconveniente, que sempre surge. Entretanto, perdemos o romantismo da espera por uma carta, e de sua manual, singela e ansiosa abertura do envelope, seja com tesoura ou espátula, bem como o manuseio do papel onde a mensagem foi escrita. No caso de apaixonados missivistas, poderia haver vestígios de beijos, lágrimas ou perfumes, ou mesmo marcas vermelhas de batom ou sangue.

 

O livro era o Só, do poeta Antônio Nobre. Tratava-se de um exemplar da 4ª edição, publicada em 1921 pela tipografia de A Tribuna, sediada em Porto – Portugal. Em sua folha de rosto consta que “Deste livro, publicado por Augusto Nobre, tiraram-se três mil exemplares”. Certamente, a edição fora custeada pelo professor Augusto Nobre, irmão do poeta. O bardo já era falecido, desde precisamente 18 de março, domingo de 1900, às dez e meia da manhã. O próprio autor, referindo-se a esse livro, o único publicado em sua vida, o considerava o mais triste livro de Portugal.

 

O meu primeiro contato com esse grande poeta português data, aproximadamente, de 1972, quando eu tinha 16 anos de idade e cursava o terceiro ano do antigo ginásio. Seus poemas estavam na excelente Antologia Escolar Portuguesa, organizada por Marques Rebelo, e publicada pela extinta Fename, órgão do Ministério da Educação e Cultura. Para o meu gosto pessoal, trata-se de uma das melhores seletas em prosa e verso, tanto pela escolha rigorosa dos autores como dos textos.

 

Eu a adquiri através de uma negociação com minha mãe. Pedi-lhe dinheiro para comprá-la, alegando que não iria exigir que me fosse comprado um dos livros didáticos recomendados pelos professores. Um pouco depois, terminei conseguindo que meus pais me comprassem o compêndio de que havia dito abrir mão. Li e reli essa antologia várias vezes, sempre com muito encanto e atenção. Suponho que isso serviu para firmar o meu estilo. Através desse livro paradidático, tomei conhecimento dos clássicos e dos modernos escritores lusitanos, entre os quais Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, posto que outros já conhecia, como Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Almeida Garrett, Bulhões Pato, Antônio Vieira e Camões.

 

Depois, voltei a reler o poeta em outras antologias, e sobretudo em exemplar da coleção Nossos Clássicos, da editora Agir, que relevantes serviços prestou à literatura, ao publicar textos dos principais poetas e escritores do Brasil e de Portugal. Essa coletânea era publicada sob a responsabilidade de Alceu Amoroso Lima, Roberto Alvim Corrêa e Jorge de Sena. O volume dedicado a Antônio Nobre era o de número 41, e o seu organizador era Luís da Câmara Cascudo, que lhe fez uma bela apresentação, erudita, lírica e concisa, vertida em prosa límpida, rítmica, elegante e castiça.

 

No domingo, dia 12, recebi uma ligação telefônica do amigo e poeta Walter Lima, hoje residente no Estado de São Paulo, perguntando-me se eu recebera o livro que ele me havia enviado, como presente de meu aniversário, ocorrido no dia 9 de abril. Walter é um leitor permanente e antenado. Lê os autores do passado e os atuais, de forma atenta e crítica, de modo a fazer pertinentes comentários. É também um poeta criativo e contido, sem explosões emocionais ou verborrágicas. No meu aniversário do ano passado, homenageou-me com um poema, em que faz verdadeiro malabarismo e ludismo em torno de meu nome.

 

O vate Walter Lima, na página de rosto, logo abaixo do título Só, escreveu os seguintes versos: “Nascemos sós. / Um pouco crescemos pós. / Por um instante, juntos / ficamos, parceiramente. / Mas no fim / Na chegada da infausta / A “indesejada das gentes” / Partimos sós. / In.feliz.mente / S.O.S”. Poema melancólico e verdadeiro, certeiro como um punhal na mão de um circense atirador de facas. O SOS do verso final parece o uivo de um homem solitário, abandonado, sem esperança em face da aparente indiferença do infinito e da vastidão do cosmos, como no poema elegíaco de Rainer Maria Rilk: “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos / me ouviria?”

 

O livro que me foi enviado revela a sua idade, que remonta, como disse, a 1921, através de suas páginas encardidas e manchadas. A capa azul-escura já não estampa seu título, nem o nome do autor; ou talvez não seja a original. As folhas iniciais foram cortadas, por navalha afiada ou estilete. Algumas manchas podem ser de lágrimas ou de suor, ou apenas de prosaicos dedos sujos.

 

Isso me faz lembrar belo poema de Manuel Bandeira, em que ele fala de uma estatuazinha de gesso, que o tempo envelheceu e manchou de pátina. A vida nos marca com traumas, rugas e cicatrizes, e nos fere no corpo e na alma com sofrimentos que tentamos driblar ou suportar. Ou, ao menos, torná-los invisíveis, por orgulho ou pudor.