Capas de "Tinteiros da casa e do coração desertos" e de "O viajor de Altaíba"
Capas de "Tinteiros da casa e do coração desertos" e de "O viajor de Altaíba"

 

Trecho sobre "Tinteiros da casa e do coração desertos", extraído do longo e conceitual estudo acadêmico do Doutor João Carlos de Carvalho:

 

Vejamos, em outra obra, como o Eu lírico tenta definir uma ideia, a partir do poema “Tinteiros da cinza e do fogo”: “O homem é isto /o fogo em pó /sob a vida luzida” (2019b, p. 29). Nada menos humano que esse homem, puro fenômeno em si, abrasado ao elemento que, na expressão bachelardiana, visa ao repouso, em uma tentativa de reconfigurar o amor como doação, única maneira de permanência ao se autoconsumir, doando-se (BACHELARD, 1999, p. 25-38). Em “Tinteiros do ser a domar”, uma impressionante consolidação de Eu lírico como vagamundo idealista de uma irrealidade a manter o corte entre si e a liberdade para se livrar da loucura que se aproxima da sua utopia do nada: “E abismo, /o meu contínuo/alarmado/de vésperas/e amanhãs, /como ser-do-mar/que hoje sonha/náufrago/sem águas” (2019b, p. 46). O referente é naturalmente disfarçado pela imagem, nesse caso, reconduzindo o desejo para o adiamento do gozo, para a sobrevivência de uma introspecção salvadora, não a que limita a sua relação com o mundo, mas que a reavive em uma outra dimensão de enlace, própria da poesia, ou da sede de vida (dionisíaco) que sacrifica a vida para a claridade apolínea, por meio da supremacia da forma. Em “Pressentimentos da dor”, isso fica bem claro: “Resistir à ansiedade/ vital de estar aqui!” (2019b, p. 53). Sendo assim, é o apelo cotidiano que tem de ser vencido em prol da poesia, em prol da imagem, onde o que se vislumbra é o medo do fracasso, pois nem tudo pode ser poético, por isso, a simulada nostalgia de algum tempo perdido, apoético. Em “Visões da grande noite”, o referente é obnubilado em prol da imaginação de uma felicidade sonhada, de um ensaio de vida que é a própria poesia, agora, pulsando o seu apelo ao eterno: “A noite é vidência e silêncio/e paralisa os barulhos do dia/e comove o alimento dos gatos.” (2019b, p. 60). Ou então: “A noite é Altair/e seus perfumes/e sua seda de pele/e figo” (2019b, p. 61). Todas as comparações aqui – metáforas de engaste[1] – conduzem o Eu lírico à sua utopia, entre a noite retrabalhada e a musa edulcorada, sobretudo, temos a solidificação de um mundo poético casado à poética de vida, mas, tudo, quase pura simulação ainda, e isso não deve se confundir com os estímulos inerciais, por outro lado, pois o sacrifício tem seus predicativos altissonantes e alertas: “A noite é velha escudeira/dos rumores da rua” (2019b, p. 62). Seu mundo poético é uma reinvenção e reivindicação de um quase não lugar – utopia extrema, onde quer que o Eu lírico esteja, sempre próximo à ausência. Não é mais a torre de marfim; agora é a utopia se alimentando das sobras do caos, lutando entre a imagem e o prosaico, herança “maldita” que o pós-pós lateja ao espojar-se nas frinchas de qualquer crepúsculo tardio dos tempos que não estão por vir.

Essa maldição, que se conFORMA em impasse fronteiriço, melhor se alimenta a partir de amplo paradoxo, que sobreavisa a vida e a poesia num mesmo patamar de “vontade de representação”, confundindo-as, mas que não disfarça o cru simulacro por meio de adjetivos bem rumorosos, como vemos no poema “Tinteiros do bandoleiro-mensageiro”:

 

Todos os sonhos se atulham

desertos na casa escudeira

e asseveram

que os nossos assoalhos

de fantasmas e chagas

estão vivos e inglórios,

e o segredo advindo

das noites agressivas,

redime a insônia

das verdades do amanhã

impossível.

(2019b, p. 76)

 

Neste trecho, caberia toda uma poética de autossimulação, podemos entender. O Eu lírico assevera a si o poder de sonhar o sonho infértil (“desertos”) e se defender deles (“casa escudeira”). Defende-se, sobretudo, de uma ideia de vida traduzindo seus anseios em um aceno sem desespero para a própria utopia acenada, sempre nostálgica de um tempo apoético (“amanhã impossível”). Poesia que sabe seus limites e conhece seus emplastros (“redime a insônia”). O término desse poema é ainda mais sintomático da situação de um eu vagamundo, onde a disposição dos versos fala tanto como os signos em si:

 

Nossos rostos de febre

no retrato escurecido

de coração inacessível:

 

                 seus estrondos e açoites

 

                            ouçamos! (2019b, p. 77)

 

Toda a vagueza sugerida, que se espraia e termina exclamativamente, apenas insiste na transação de fronteira entre o sintoma da vida (im)possível e o rumor que alerta a perda da pureza. Sua utopia é a de dar a esse “eu” arruinado uma situação contemplativa por meio de uma consciência que se constrói, enquanto desmorona. Em “Promotor de alquimias”, passagens diversas se apresentam na mesma linha defensiva e faz da poesia a guardiã das trevas do “eu” que se incendeia e se esfria: “Com medo do luar feiticeiro e inquisitivo,/a noite fomentara seus segredos”, ou então, “Enquanto os vastos dezembros/permeavam uma névoa branca/na alma explosiva e estribeira,/os cajueiros na distância/ promoviam fumaça nas chuvas de agora”, ou “O Poeta acusara os seus faróis./Sabia também que a procela,/ao longe,/caçava uma fera insular/de dupla entidade.”, ou “O despenhadeiro do olhar queria claridade/ e as mãos sondavam eternidade/até que o espetáculo da linguagem/fosse apenas alquimia arruinada” (2019b, p. 80-1). Não há a mínima segurança nesses versos em relação a suposta “verdadeira vida deixada em algum outro tempo”, ou “a memória de resgate”, ou mesmo “os traços do esforço de ser feliz”, pois em nenhuma elevação que o Eu lírico procurasse se enganchar não passaria de crua simulação, ou de aceno a um tempo passado que não existe e um presente que se sustenta apenas em mais metáforas de engaste, produzindo ruídos de um ser inquieto e que deseja o nada como remediação de sua própria (sobre)natureza poética por destino. No entanto, fugir ao nada, à loucura, é o grande desafio de qualquer grande poeta na transação com o “consolo metafísico”, e na poesia de Diego Mendes Sousa isso se torna ainda mais agudo ao querer reunir, num assoberbamento de adjetivos estratégicos e altissonantes, as vozes ruinosas em um transe impossível entre a vida e a pureza ansiada: o resultado é ancoragem desesperada no imagístico, ou no perdulário que a linguagem (impotente) possa ainda sugerir como resgate. Tudo deságua numa poesia radical (mergulhada nas raízes do nada) e seus estilhaços de deslocamento[2] cada vez mais utópicos, dependente dos “estribos” dos recursos da linguagem. 

 

 


[1] Chamo metáforas de engaste aquilo que permite uma intercalação quase direta entre o referente e a ânsia de representação de permanência.

[2] Estilhaços de deslocamentos retoma uma compreensão cara à psicanálise estrutural que trabalha com as sobras discursivas para descobrir as pistas da construção da consciência que não deixa ser uma outra matéria para o que o próprio discurso deixou de dizer, mas que está implícito ao interpretante. 

 

 

Estudo de João Carlos de Carvalho, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É poeta, contista, romancista e ensaísta. Professor Titular da Universidade Federal do Acre (UFAC) há 28 anos.

 

Fonte:

 

SOUSA, D. M. Gravidade das xananas. Guaratinguetá: Penalux, 2019a. 60 p.

 

___. Tinteiros da casa e do coração desertos. Guaratinguetá: Penalux, 2019b. 98 p.

 

___. O viajor de Altaíba. Guaratinguetá: Penalux, 2019c. 99 p.

 

___. Velas náufragas. Guaratinguetá: Penalux, 2019d. 99 p.

 

___. Fanais dos verdes luzeiros. Guaratinguetá: Penalux, 2019e. 89 p.