O látex, em Álvaro Maia

Por João Pinto - especial para o Entretextos

 

Situada como obra regionalista, cuja publicação primeira data de 1958, o Beiradão, de Álvaro Maia, se insinua como registro histórico do ciclo da borracha, a hévea no Amazonas. Fala do nordestino como elemento desse processo de conquista, do mistério e da grandeza adversa da floresta, e reúne o lado fausto e patético do que representou o extrativismo mais importante da região amazônica.


O livro traz dúvida em que gênero se define, pois em sua leitura vem todo esse dilema ao leitor. Romance, novela ou um conjunto de contos? A essa interrogação, talvez se justifique que a obra pouco tenha uma intenção  como projeto macro literário ao romance, pouca ação e poucos conflitos, daí fugir ao sentido de obra que se defina num gênero característico.


 Entretanto, a diluição de pequenos relatos na fala de alguns personagens, além de concorrer para catalogação do inventário oral desse ciclo econômico, constitui uma marca estilística do escritor como forma sugestiva de valorizar o papel do nordestino em um novo ambiente, ambiente este de sofrimento e degradação humana.


Nesses casos, que são verdadeiros contos de pessoas anônimas – do seringueiro espoliado ou do seringalista ávido pelo lucro – são histórias popularizadas entre os seringueiros, as quais funcionam como código de honra ou exemplo entre essa gente, no imaginário delas. Parece que a preocupação maior do escritor não era com a parte formal em si da obra, mas com a exposição dessas histórias de anônimos, em cujo gesto simbolizaria as autênticas raízes de nascimento do povo do Amazonas.


Apenas três personagens são seguidos de forma mais uniforme no enredo: Fábio Moura, Firmo Segadais e o Pe. Silveira. Na narrativa, são os principais, e representam a saga do homem nordestino como conquistador ou eterno migrante: soldado da borracha no Amazonas, candango em Brasília ou pau-de-arara em São Paulo. Assim, o nordestino ora é um indivíduo esperto ou aventureiro, que não cria raízes porque só veio para fazer o pé-de-meia e depois bater em retirada; ora ele se distingue como elemento fixador ou abnegado, que cria laços à nova terra, capaz de submeter-se ao meio, conquistá-lo e miscigenar-se.  Para o primeiro nordestino, vê-se a figura de Firmo Segadais; e, em Fábio Moura, a síntese do outro nordestino.


Na esteira naturalista, Álvaro move boa parte de suas páginas para a descrição de temas macabros e bestiais, demonstrando que, na extração do látex e no povoamento da terra, quando a morte não vinha pela adversidade da selva, vinha pelo cano das espingardas dos coronéis da borracha. Aliás, o seringalista era o verdadeiro agente do processo seletivo da vida.


O livro é constituído de três partes. Em bamburral, por exemplo, o escritor insere os dois figurantes dos seringais: o seringalista e o seringueiro, ambos dentro de um mesmo ambiente de cobiça. Nessas primeiras páginas, a borracha vive seus dias de glória, o seringalista é donatário do dinheiro e da vida miserável dos pobres nordestinos. Em serras e centros, e na última parte beiradão, o escritor descreve o declínio e a decadência do ciclo, o que restou de trágico e de miséria para as pessoas. Para esse contexto de insolvência da extração do látex, o Estado é lembrado como agente omisso e despreparado para gerenciar as crises que afetam a sobrevivência das pessoas.


Beiradão, portanto, é um livro de compromisso histórico como legado literário para o povo do Amazonas. De um lado, economicamente, traduz um elo com um passado de gente explorada e exploradora, mas de grandeza questionada como herança ainda vívida nos monumentos da cidade; e de outro, esteticamente, como um escritor é capaz de traduzir em código literário suas raízes culturais mais profundas.