O IMORTAL
Por Elmar Carvalho Em: 22/01/2014, às 08H01
ELMAR CARVALHO
Eu olhava fixamente para a escultura que encimava o mausoléu. Fora feita à imagem e semelhança do morto ali inumado. A estátua era uma reprodução perfeita do célebre membro da Academia Brasileira de Letras. Parecia uma peça do Museu de Cera de Londres, tal a perfeição como o escritor e laureado poeta fora esculpido. Entretanto, eu podia notar que o material era resistente, podendo ficar exposto de forma contínua à chuva e ao sol. Embora não seja eu um crítico de arte, tinha a certeza de que o artista adotara o estilo e os materiais usados pelos hiperrealistas.
O fardão acadêmico aparentava haver sido feito com um tecido de verdade, tanto pela cor como pelas dobras, assim como também pelo bordado, costura, embainhados, arremates e botões. O espadim acredito fosse o verdadeiro, que o morto orgulhosamente empunhara no dia de sua solenidade de posse. As unhas pareciam de verdade, tal a imitação perfeita da consistência, cor, textura e transparência das verdadeiras. Os olhos aparentemente haviam sido extraídos do defunto, e implantados cuidadosamente na obra de arte.
A estátua fora posta em decúbito dorsal sobre a lápide de granito preto, mas como se estivesse deitada em um estrado mortuário. Dava a impressão de haver sido esculpida de modo autônomo, para somente depois haver sido deitada sobre o leito lapidar. Contudo, ao ser deposta na lápide, ganhara o contorno, formato e deformações que um corpo humano e suas vestes tomariam. Cheguei a pensar que ali estava o próprio cadáver do acadêmico, devidamente mumificado.
Em certo momento, quando fixei o rosto da escultura, admirando-lhe mais uma vez a perfeição do contorno, das feições e órgãos, inclusive das rugas, dos cílios e das sobrancelhas e de um sinal que o morto tinha no canto esquerdo da boca, tive a nítida sensação de que os grandes olhos azuis piscaram. Depois, como não os tenha visto piscar novamente, mentalizei que eu sofrera uma ilusão de ótica ou uma alucinação momentânea.
Porém, quando percebi que o corpo se mexera levemente, como se estivesse procurando uma posição mais confortável, tive um arrepio de medo e deixei o local. Para não correr o risco de me transformar numa estátua de sal, como no episódio bíblico, ou mesmo de outro qualquer material, não olhei para trás, nem mesmo de soslaio. Concluí que talvez a alma do morto tivesse se incorporado na estátua de que fora modelo.
Ou talvez o imortal acadêmico fosse literalmente imortal e a (suposta) estátua fosse o seu corpo.
Um comentário sobre o texto O Imortal
Cunha e Silva Filho
Elmar, acabo de ler seu texto "O imortal" e me pergunto se o mesmo seria um conto. O que sei é que o texto se inscreve na linha de alguns que você tem classificado de composições impulsionadas pela mágica e pelo mistério dos sonhos.
Os sonhos são ora indecifráveis, ora tendem a se associar a alguma coisa que antes consideramos ocorrências e experiências ao nível da realidade empírica.
Entretanto, o seu texto, escrito com tantos detalhes e perfeição, sobretudo na descrição visivelmente plástica, me surpreende como peça literária.
Se você diz que não é um crítico de arte, o texto nega a sua afirmativa, já que a força de sua escrita equivale àquela capacidade que o observador-artista possui na possibilidade de fazer uma leitura objetiva do que vê diante de si.
Esta argúcia do olhar do escritor-poeta diante do analisado, seja um objeto qualquer, seja a figura humana, é que, repito, me deixa intrigado.
Não sei se em alguma parte afirmei que a habilidade de um verdadeiro ficcionista está no seu talento descritivo-narrativo e o texto em exame o demonstra. Você sabe empregar, em doses certas, o que se movimenta (ação narrativa) e o que permanece ou está estático (traço essencial da descrição).