O FASCÍNIO E O FETICHE
Por Cunha e Silva Filho Em: 27/02/2022, às 15H46
SESSÃO NOSTALGIA:
NOTA AO LEITOR:
A crõnica abaixo fará parte do meu livro:
POLIEDRO DE INSÂNIAS
(CRÔNICAS)
o ARTIGO O FASCÍNIO E O FETICHE
Cunha e Silva Filho
Nunca conseguia entender aquela visão extraterrestre que, algum tempo atrás, para mim, mais parecia um pandemônio, uma Babel sem torre. Hoje, essa visão é bem mais calma. Esse lugares dos investimos, das cotações, das Bolsas de valores, finalmente se ajustaram a uma visão normal, mais humana e até mais sossegada sem aquela babel de vozes de outrora bradando uns contras os outros como se desejassem se engalfinhar até atingir as vias de fato.
Aqueles homens, alguns com mangas meio arregaçadas, nervosos, por vezes descabelados, sentados diante de computadores da última geração da época, ou em pé numa mixórdia, cujos signos mais concentrados vêm a ser os da gestualidade e da gritaria, me fazem lembrar uma narrativa sobre a loucura humana, cuja intriga se passa na espaço vertiginoso das ações da Bolsa de Valores.
Não conseguia também atinar se aqueles homens estavam brigando ou se estavam simplesmente se comportando segundo padrões de estilos de trabalho que para eles era a coisa mais normal e rotineira. É preciso que eu me justifique sobre essa minha visão particular e um tanto quanto desfavorável.
Até hoje só me recordo daquelas cenas pela TV. Nunca lá estive para entender daquele riscado.Não é que tenha aversão ao vil metal. Acho mesmo que, sem ele, não poderei sobreviver entre os mortais. Entretanto, no mundo dos títulos, das ações das altas e baixas das moedas mais fortes, e sobretudo da moeda-símbolo do capitalismo globalizado, dos pregões, dos dividendos, das perdas e ganhos, dos overnights das aplicações no world business, me sinto ,até hoje, – mesmo estando fora dos umbrais daquele ambiente -, um ser diferente, anormal, uma criatura bizarra, que não se amoldou até agora à avassaladora onda esmagadora do resto da minha individualidade.
Via-me e me vejo tão diferente daquele aglomerado de homens cercados de máquinas eletrônicas, de gadgets, de telões planetários, de gigantescos quadros indicadores de cotações cambiais e de posições acionárias naquele painel constantemente se modificando numa velocidade que, por vezes, dói nos olhos, com cifras marcadas de números em escalas decimais que, ao final e ao acabo, só me sobra na vista o desenho último da cena: homens em movimentos frenéticos, com telefones ou celulares nos ouvidos. Homens automáticos (seriam também, por acaso, os “hollow men! do poema homônimo de T.S.Eliot (1888-1965?) com pensamentos com o pé nos riscos ou nos lucros estratosféricos – delícias das delícias no paraíso profanado de Adão e Eva.
Até que ponto trabalhadores desse ofício conseguem transmitir-me um pouco que seja do que defino como ações humanas voluntárias e conscientes? Por que cada gesto, cada movimento, cada grito deles me soava como algo muito mecânico, algo bem aproximado dos limites das possibilidades robóticas.Tenho para mim que, naquele mundo às avessas, tudo parecia ser simples e normal.
No entanto, a mim se me afigurava e ainda se me afigura, um universo surreal e insuportável, talvez não pela mera exterioridade da sua simbologia, mas pelo que encerrava de complexidade de sua estrutura interior, de realidades e mecanismos próprios, com seus pressupostos somente elucidados se recorrermos ao domínio filosófico. Provavelmente, Platão (c. 429-c.347 a. C.) com as suas “Ideias” e com o “mito da caverna” nos pudesse explicitar esses recônditos espaços da realidade nos seus fins últimos.
O que faz o homem agir levado só por valores materiais, no caso, valores financeiros? A especulação de mercadorias, de bonds e shares, algum dia já produziu algum bem que se possa considerar útil? A valorização de um produto mercadológico já trouxe algum benefício ao aperfeiçoamento do indivíduo?
Não há aqui senão que recorrer ao tema da reificação no romamce São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos (1892-1953) discutido num antigo e percuciente estudo “A reificação de Paulo Honório,” de Luis Costa Lima ( Ver LIMA, Costa Lima. Por que literatura?(Petrópolis, Rj., : Vozes, 1969, cap. 2, p.49-70), tema tão atual como nunca o fora e tão aplicável a uma parte bem considerável da humanidade, entendida esta nos seus vários estratos sociais, desde que comece a ter alguma consciência do valor do dinheiro e dos bens móveis e imóveis da riqueza de nosso planeta.
Minha mulher, que tem a sabedoria da experiência e o dom da inteligência pragmática, de vez em quando, me faz essa observação: - “Tenho receio de que, menos dia, mais dia, o ser humano se transformará numa cédula,” Não está aí, leitor, um bom exemplo de reificação? Estou me lembrando do famoso personagem central, Paulo Honório, do já citado rommane São Bernadrdo
Típico exemplo do personagem-símbolo da reificação. Ao desejar adquirir tudo, ou melhor, se apropriar de tudo, por bem ou por mal, atropelando Deus e o mundo, Paulo Honório, a certo passo da sua narrativa, mostra até que limite leva a sua visão coisificada da vida. Ao afirmar que (...) “Professorinhas de primeiras letras a escola normal fabricava (grifos meus) às dúzias” ( RAMOS, Graciliano. 28 ed. São Bernardo (Rio de Janeiro: Editora Record, 1977, p. 105), não está mais do que reiterando essa visão mercantilista que o fazia colocar, numa escala de valor superior, a sua “fazenda” e não a pessoa de sua esposa professora, a infeliz Madalena, terminando por conduzi-la ao suicídio. Note-se, ademais, que o lexema “fabricava” pertence ao campo semântico do universo reificado
Será que, algum dia, irei ainda compreender que o mais significativo, nesse mundo de Deus, é o cifrão? Ou continuarei sempre procurando decifrar os enigmas que cercam os templos pagãos das Stock Exchanges – fascínio e fetiche do homem capitalista?
NOTA: Texto modificado ligeiramente a partir da sua forma original.