JOÃO ANTÔNIO: O DISCURSO DA MALANDRAGEM E A MALANDRAGEM DO DISCURSO

CUNHA E SILVA FILHO


       Com o  presente breve ensaio pretendemos  prolongar  a discussão  da ficção brasileira naquele  aspecto que, desde o Modernismo de 1922. não se resolvera satisfatoriamente  como um dos  pressupostos do movimento de ruptura  com o passado  das nossas letras. Queremos   nos referir aqui àquela dimensão   que o novo movimento deixou de focalizar e que se constituiu, assim, como uma das suas falhas mais graves e imperdoáveis: a não  incorporação  dos pobres, na acepção geral do termo,  sobretudo da área  urbana, como matéria  ficcional  que tivesse  vez e voz   na estrutura  da narrativa.
       Ainda que um contingente  da  população tivesse  antes dado o ar de  sua presença  nas raízes  do romance brasileiro  com  Teixeira  e Sousa(1)  em  Tarde de  um   pintor (1847),  e tenha  posteriormente  tido  maior presença  na formação  do romance brasileiro em autores como  Manuel  Antônio de Almeida,  Aluízio de Azevedo, Alcântara Machado, Marques Rebelo, Jorge Amado, Antônio Fraga,   foi com o paulista João Antônio (1937-1996) que  o  povão ganhou particular  interesse. Poder-se-ia afirmar que essas camadas mais humildes  sejam o interesse dominante e nuclear  em  todo a sua obra.       
        A ficção de João Antônio se insere na relação de escritores  surgidos  por volta dos anos sessenta e setenta. Por conseguinte,  atravessaram  quase duas décadas da  do período  discricionário civil-militar propriamente dito. Era a  época de   um verdadeiro boom  do gênero conto na literatura brasileira.
    Segundo  o ensaista Alcmeno Bastos   (2),  grande parte do chamado  período  de exceção da vida  política  nacional . tematizava  conflitos vividos por personagens de extração burguesa como  intelectuais,  artistas, estudantes que foram vítimas da repressão  política e da violência policial em ascensão.         
      O citado  ensaísta, em nota de pé de  página, reporta-se a um pertinente comente[ario do crítico Luciano Trigo (3) , o qual,  em artigo publicado  pelo Suplemento Dominical do Jornal do Brasil,  chama a atenção para o fato  de que a violência não se resumia a só isso.  Ela se manifestava sob ouras formas de violência até hoje  não  resolvida  pelo  governantes do Brasil. Trata-se da violência contra o homem comum o, uomo cualumque, os doentes, os desempregados, o lúmpen-proletariado, enfim,  os desassistidos socialmente.      
     Foi em torno dessa conjuntura  político-social  que João Antônio, através do gênero conto e de reportagens, encontrou  um termo   próprio  para   germinar suas estórias(histórias) e uma forma  oportuna de conquistar seu espaço  no meio  literário  brasileiro. Seu  objetivo maior  e mais ambicioso era realizar o que  chamou de “radiografia  brasileira,” um  projeto obviamente não completamente  concluído, visto que o raio de seu campo ficcional se limitou  apenas um pouco além do eixo urbano  Rio-São Paulo. O que ele deixou, ,  por exemplo, fora do Rio de Janeiro, como no conto “Dois Ramundo, um Lourival", que aparece  na obra Dedo-duro (1982)dá bem a medida  de as  potencialidade como ficcionista. 
     A crítica parece unânime ao considerar a  pobreza com força-motriz na criação ficcional  de João Antônio. Na nossa perspectivam só em  parte pensamos ser a tematização da pobreza o motivo que levou o contista a explorar o seu  universo  imaginário, condição que  o deixaria muito vulnerável  ao rótulo de ser um escritor populista  pelo  qual,  aliás,  já foi direta  ou  indiretamente acusado, o que, a meu  juízo,   foi um erro palmar da parte  de  alguns de seus  analistas. 
     No  entanto, podemos reconhecer que,  no cerne de seu   projeto  ficcional, ele  provavelmente responda a essa  realidade injusta, cruel e criminosa, que é a miséria.asm recorde-se que o escritor não tem  compromissos  só com o engajamento político-ideológico. Ele vai   mais fundo.  Tem preocupações estéticas, inescapáveis a qualquer artista de talento. Neste sentido,  a eleição de temas e formas de linguagem -  fatores decisivos e fundamentais  na composição  da obra literária -  é, de longe, mais forte  do que os  interesses meramente  políticos. O tema é um apelo à forma. Por  outro lado, ambos se completam  e geram o artefato  literário. Não  é à toa que a figura que mais  o consome como   produtor de texto é o malandro. E nos lembramos das palavras do contista em entrevista no JB (08/06/1999):

 - Vá às sinucas da Lapa uma delas ali na Rua  do Riachuelo. depois dos Arcos ou então vá à Praça Tiradentes, em frente a Teatro Carlos Gomes; Você vai encontrar estes mesmos tipos retratados em Malagueta, Perus e Bacanaço. Tenho um grupo de amigos com quem quase   todo fim  de semana  vou bater bola. Isto apesar de não mais existir malandragem.  O que existe é o crime, contravenção, violência e droga.
        
        Por isso,  o tema ao caro a ele, a malandragem é um veio  preferido  e onde se realiza melhor ficcionalmente. De seu primeiro livro de contos, único gênero que cultivou na esfera da ficção, Malagueta,  Perus e Bacanaço (1963) até seus  últimos trabalhos há uma coerência admirável de um  autor  que,  circulando por um mesmo  tema,  a marginalia,  não esgotou a ponto de enfraquecer-se  como criador de tipos elevados à função de protagonistas na maioria  de seus contos.
     Todo grande  artista se aprofunda em determinada área de interesse ficcional. Em João Antônio, o submundo da malandragem. no qual  a figura  do  herói, ou melhor,  do anti-herói, é a do malandro elevado a uma  condição de semideus daquele   universo  fechado  e ritualizado, constituindo  um verdadeiro espaço mitológico desse underground   de seres que,  na sinuca,   e na arte da trapaça, sobrevivem  na corda bamba,  cujos extremos são a pobreza e a violência. A picardia e a trapaça inegavelmente existem, mas  são usadas dentro de um  ética da vida malandra com seus próprios códigos de honra. É por essa razão que o aprendiz da sinuca e da malandragem   mitifica. os grandes tacos e os grandes malandros e com eles se identifica e neles se  espelha nessa “ciranda” sem  fim de carência e marginalidade.
     A linguagem a que  recorre  o contista não é como parece a alguns  exegetas de sua obra nada descompromissada com a arte literária. Ao contista  importa, e muito, o componente linguístico. Ou, como queriam  os formalistas russos, a literariedade. O estranhamento que o leitor  experimenta no primeiro contato com  a ficção  joãantoniana é o de um  universo autocentrado na expressão da linguagem que nos lembra logo  uma realidade  que mal  conhecemos,  porém  onde  podemos   identificar  em determinadas situações  da comunicação social. O saldo que obtemos  pela persistência  da  leitura não é desanimador, embora  por vezes haja certos  trechos  de discurso  que nos enredam   e causam perplexidade  pelo  inusitado da sua sintaxe  e sobretudo  de seu campo vocabular.
    Compreendemos, depois,  que esse  estranhamento,  ao contrário, se funda na própria realidade violenta  e ambígua do jogo da vida desses seres geradores de sua  própria linguagem, cifrada pela dor do medo e da força bruta de usar vidas na luta  pela sobrevivência, quer a condenemos ou  não, nós outros  bem instalados em sofás burgueses. 
    O  idioleto literário de João Antônio,  a nosso ver,   guarda certa analogia com  o de Guimarães Rosa. Este é responsável por uma escrita configurada pela realidade material e  psicológica do sertão mineiro. Ou, para ficarmos com a penetrante  observação de Paulo Rónai a propósito  da linguagem  rosiana: esta   utiliza uma forma   elaborada, criada pelo artista no sentido  de convencer o leitor, sem cair no artificialismo  neo-naturalista, de que a  psique   dos  personagens  somente   seria  verdadeira  se verbalizada e montada nos termos formulados  por Rosa.(4) 
     O mesmo   poder-se-ia ia afirmar da linguagem do contista   paulistano-carioca. Não vale, portanto, a afirmação de  estudiosos da literatura brasileira  que não veem  em João Antônio uma preocupação maior   com os recursos narrativos que  enfatizem   mais a  novidade e  o estilo da linguagem,   ou seja , que sejam menos  voltados  para os problemas  de natureza  populista e, ao  contrário,   trabalhem mais a linguagem    na sua relação  com o discurso narrativo. Ora,   não   é preciso  ler João Antônio por inteiro para se constatar os  inúmeros recursos e estratégias  retóricas   da sua ficção  e da  qualidade que nele  se manifestam renovadores traço de  originalidade -.  a partir  mesmo  de sua  obra de estreia. 
       Que exemplo mais taxativo de sua  capacidade de  escrita  renovadora   na forma  e avanço  de um tipo de narrativa  originalíssimo do que  aquela  magnífica  peça  de composição literária que  é “Amsterdã, ai,”   a qual se encontra  na obra  Abraçado ao meu rancor (1986). Esse conto de João Antônio é uma pequena obra-prima   suficiente  para  o situarmos  como  um ficcionista que atingiu o  ponto  mais sobranceiro  de sua maestria   e de sua  consciência  técnica  de  produzir literatura de qualidade  universal.
     O discurso ficcional de João Antônio subverte  padrões estabelecidos  pelo conto tradicional, possibilitando na tematização do malandro  dois aspectos dessa visão, ainda que  esquemática,  que estamos tentando mostrar nesta Comunicação: o discurso  da malandragem e a malandragem   do  discurso,    
      O primeiro entremostraria a incursão de uma narrativa no interior do submundo representado sobretudo  pelo malandragem sua formação  e seu aprendizagem seus variados  expedientes  de sobrevivência   à semelhança do  pícaro  clássico  do  Século de Ouro da literatura espanhola),  sua solidão,  sua falta  de sentimento amoroso e sua visão  desencantada e violenta do mundo. O segundo aspecto compreenderia aquilo que tão bem foi entrevisto   no   breve  e penetrante ensaio “João Antônio e a ciranda  da malandragem,” de Jesus Antônio Durigan.(5)  Segundo esse ensaísta, o que sustenta  o potencial ficcional  do discurso malandro em João Antônio é a falta, a carência. Pois é da  falta  que se alimenta  sua  ficção. 
        Por isso,  é no alheio, seja este  linguagem ou tema, é na matéria  dos  outros, até  mesmo  nas situações do cotidiano, nos dramalhões, nos aspectos biográficos  ou autobiográficos que o escritor vai apanhar a substância   de sua escrita. Isto equivale a afirmar: a sua escrita malandra luta para sobreviver. 
         Daí os recursos variados que ele   incorpora   na sua  matéria ficcional: montagem, bricolage, técnica cinematográfica, oralidade no fluxo da narrativa,  discursividade, ditos    populares  provérbios, frases  feitas,  gírias, frases truncadas,  especialmente  da gíria da sinuca, da qual   ele revela  ser  um  profundo  conhecedor,  intercalando numa de suas obras verdadeiros  ensaios sobre  o jogo de sinuca.  O grande salto porém, de tudo isso é a maestria do contista em transformar o alheio em texto original, a linguagem  popular e  a das gíria do submundo   em refinada elaboração  estética,  rítmica  e poética.     
      O seu discurso ficcional se caracterizadamente malandro, mas essa malandragem, graças a talento do artista, atinge, não conforme  declaram Heloísa Buarque    de Holanda e Marcos Augusto Gonçalves(6)  apenas um bom nível  literário.  Isso é muito  pouco para definir  sua estética  malandra       
       O contista,  em muitos  instantes de sua ficção, alcança um  patamar de obra-prima no contexto  do conto  brasileiro  contemporâneo, Isso  não por  mera  indulgência   que lhe devemos conceder   como escritor, porém  por obrigação  que à crítica  se impõe  por amor à verdade ainda que    póstuma. 

NOTAS

1,CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. 6 ed Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1981, 2 vol., p. 135.

2 BASTOS. Alcmeno. A ficção brasileira contemporânea. Tubingen. Revista dedicada a las lenguas y literaturas  iberoamericanas de Europa  y America, Nº 38, 1993.  - A   problemática social  na literatura brasileira. Organização de Antônio Carlos Sechin, 1993, p. 114, UFRJ.
3  Idem  ibidem,  p. 112.

  4 CUNHA E  SILVA FILHO, Francisco da.  Bernardo  Guimarães e João Guimarães Rosa.: 2 casos de metarrativa. Monografia. Faculdade  de Letras,  UFRJ, 2º Semestre de 1992, p. 16.

 5,, DURIGAN,  Jesus Antônio.  João Antônio e a ciranda da malandragem.: SCHARWZ, Roberto. (org,). Os pobres na literatura brasileira. São Paulo: Brasilisense, 1983, p. 214-218.
6., HOLLANDA, Heloísa Buarque  de. E GONÇALVES, Marcos Augusto. Política e literatura: A ficção da realidade brasileira In ____Anos 70 – Literatura . Rio de Janeiro: Europa Editora,  1979-1980. 

NOTA  FINAL:

O  ENSAIO ACIMA  FOI,  PELA  PRIMEIRA VEZ,  APRESENTADO COMO  UMA COMUNICAÇÃO  NA SEMANA DE LETRAS, DE 10 A 13 DE MAIO DE 1999.    UNIVERSIDDE CASTELO BRANCO (UCB). A VERSÃO ATUAL DO ENSAIO  FOI  MELHORADA E REVISTA. PELO AUTOR.