Cunha e Silva Filho

                                 Eu o vi pela primeira vez na cidade de Teixeira Soares, interior do Paraná. Tinha sido adquirido por meu filho, o professor e advogado Francisco Neto, há pouco tempos e ainda era bem pequeno. Demonstrava, contudo, que seria um cão belo, forte, grandão, como são os de sua raça, pastor belga. Era preto e peludo, elegante, e já dava sinais evidentes de que seria firme e decidido, sempre pronto a proteger o lar que o acolheu até o seu último dia de velho guardião da casa.
                                Deram-lhe o nome de Aquiles, de resto, nome bem escolhido, por certo inspirado naquele herói máximo da Guerra de Tróia, aquele que fora mergulhado no rio Stix para se tornar invulnerável.Sua mãe, a ninfa Tétis, ao colocá-lo na água, esqueceu de molhar-lhe o calcanhar. Daí a expressão que correu mundo,”calcanhar de Aquiles”, pra significar a única parte de seu corpo que poderia atingi-lo mortalmente, ou seja, generalizando, o ponto fraco de alguém. 
                               Aquiles foi crescendo até tornar-se um cão adulto com todo o seu viço, sua beleza apolínea, sua pujança, seu latir portentoso, , assim, impondo-se mitologicamente a quem s e atrevesse a fazer algum mal ao seu dono e à família que o amava e da qual passava a fazer parte integral, como um membro merecedor de cuidados e de carinho. Quantas vezes, falando com meu filho, ouvia pelo telefone o seu latido heróico, ressoando pela vizinhança na sua posição sempre alerta contra qualquer inimigo que pudesse ali surgir! Sua presença, seus movimentos em frente da casa de meu filho, seus sinais , seus aviso sua defesa feroz contra o perigo que pudesse ameaçar aquele lar eram mais do que transparentes. Eram para valer.
                              Todas as vezes que pude vê-lo ainda com toda a sua energia, ele me olhava fixamente, se aproximava de mim com todo aquele peso e tamanho. Era um deus grego. Era um titã do lar, pronto sempre, disponível sempre, a defender a quem amava e por quem velava nas vigílias das noite s e das madrugadas. Ninguém ousaria transpor aquele espaço de lar sem que primeiro sentisse a presença poderosa e decidida daquela fortaleza inexpugnável. E, se o fizesse, sentiria fatalmente o peso enorme daquelas patas preciosas e poderosas.
                             Não é possível que os cães não tenham alma e sentimento humanos. Tantos são os exemplos na vida real, na ficção, no cinema, nos quais os cães se mostram amigos fidelíssimos, até mais do que os familiares, tanto na vida como no túmulo. Os cães têm alma, sim leitores, não tenham dúvidas dessa afirmativa.
                            Agora, me lembro daquela página antológica , escrita com a extraordinária capacidade de descrição de Buffon (17-7-1788), célebre escritor francês, grande naturalista que, na literatura, ficou famosos por aquela frase com a qual compreendia a relação entre a personalidade de um escritor com a sua obra: “O estilo é o homem,” afirmativa que li, pela primeira vez, na velha Gramática Expositiva - curso superior, de Eduardo Carlos Pereira (1855-1923), publicada pela Companhia Editora Nacional, volume da biblioteca de meu pai.

                          A passagem de Buffon faz um perfil psicológico de um cão, ou melhor, de qualquer cão. Página lida na minha adolescência no livro de Marcel Debrot, que foi professor da Faculdade de Filosofia da Universidade de Minas Gerais - Le français au gymnase. -, da Companhia Editora Nacional, livro, por sinal, adotado por meu pai, meu professor de francês, no período ginasiano do Domício, um famoso e popular colégio de Teresina. O texto tem por título "Le chien." Basta esse trechinho  para exprimir todo o valor universal que o cão reúne em si: “Sans avoir comme l’homme, la lumière de la pensée, Il a toute la chaleur du sentiment, il a plus que lui, la fidelité, la constance, dans  ses affections: nulle ambition, nul intérêt, nul désir de vengeance, nulle crainte que celle de déplaire...”
                        Aquiles, nos últimos meses, quando já tinha doze anos – e nessa idade já considerado idoso na sua espécie animal - com largos serviços prestados à família que o recebeu de braços abertos, foi atingido na sua parte vulnerável de herói grego: um câncer na próstata. Era o seu calcanhar incapaz de conter a força indiferente da natureza física. Seu latir começava a fraquejar, seus movimentos não eram mais os mesmos, seus latidos emudeceram, seus afagos se esfumaram. Tinha dificuldade para alimentar-se, seus sintomas estavam a olhos vistos. Quanta tristeza dele não poder mais dar conta da defesa de quem o amava . Veio inclemente a fraqueza geral, a meia-vida, o sofrimento mudo e profundo. À minha mente me vem a figura da Baleia, de Graciliano Ramos (1892-1953) , personagem criada de forma genial na obra Vidas seca, graças à humanidade que transmitia, ou aqueles bichinhos todos, cheios de humanidade na obra de Guimarães Rosa (1908-1967). Isso tudo me veio à tona ao pensar no destino do velho Aquiles, o Cachorrão, como, às vezes, o chamava com ternura.        

                   Era tempo de partir, de “adeuses às disponibilidades.” Aquiles, no meu espírito, tem o seu panteão de honra e glória pela ajuda inestimável prestada à família de meu filho., a quem serviu com denodo, bravura, na chuva, no sol, no frio curitibano. Assim nos deixou na memória e na ternura com as marcas da nossa dor e saudade