O DENTE DE OURO
Por Elmar Carvalho Em: 31/10/2013, às 18H05
ELMAR CARVALHO
Um dos companheiros de tratamento da radioterapia do Hospital São Marcos me narrou uma história, que é um verdadeiro conto, sem necessidade de nenhum enfeite e torneio literário. A narrativa segue abaixo, do jeito que a recordo neste instante; apenas tomarei a precaução de alterar os nomes dos personagens citados, a fim de evitar fuxicos e eventuais retaliações, inclusive judiciais.
O coronel Ozildo Bezerra, pouco tempo depois de enviuvar, se casou com uma cabocla nova, bonita, com todo jeito de fogosa, de nome Maria das Graças. Todos a chamavam apenas de Gracinha, o que era muito justo, uma vez que ela, com efeito, era uma gracinha, por sua formosura e alegria contagiante. Não tardou muito, a moça passou a enfeitar a fronte do sexagenário coronel com duas belas e formidáveis aspas.
Os murmúrios foram se espalhando, e terminaram chegando aos ouvidos do coronel, que já vinha desconfiando dos modos ariscos e furtivos da mulher. Ela, em alguns momentos, se tornava muito alegre e em outros, um tanto amuada, e por vezes lhe negaceava certos agrados nas horas das camaradagens. Parecia estar enojada e enfastiada do fazendeiro, que tudo percebia, mas ainda sem querer acreditar no que já se anunciava, de forma quase escancarada.
Ozildo chamou a mulher às falas, e ela, embora negando traí-lo, respondeu com certa insolência e leve zombaria. Ferido em seu brio de marido e macho, o coronel desferiu um forte soco em Gracinha, que não tentou revidar. Entretanto, passada a raiva, e seguindo velha filosofia, preferiu continuar compartilhando seu doce de leite a comer sozinho titica de galinha.
A fazenda contígua à de Ozildo pertencia ao coronel Lucas Soares Pereira, que mantinha na parede de seu alpendre doze armadores, nos quais cochilavam, dependurados, doze rifles, que eram periodicamente limpos e lubrificados. Comentava-se que Lucas, ao longo de décadas, acoitara alguns fugitivos do Ceará, que supostamente teriam cometido um ou outro homicídio, geralmente por vingança a alguma desfeita ou injustiça ou para lavagem da honra, em virtude de infidelidade conjugal. Fora os cearenses, o coronel tinha seus próprios agregados, que não se negariam a cometer uma ou outra “missão de sangue”, que ele lhes determinasse.
Contudo, não se pense que Lucas fosse um homem brabo, violento, de maus bofes. Muito pelo contrário; parecia a própria mansidão em figura de gente. Falava baixo e de forma pausada. De extrema gentileza quando recebia algum visitante, ofertava a sua melhor comida e a sua rede mais confortável. Ostentava sempre notável bom-humor, e estimava inventar as suas próprias anedotas e “pegadinhas”. Não gostando de banguelas e nem de que seus agregados sentissem dores desnecessárias, mantinha um dentista prático ou protético em sua fazenda, mestre em arrancar dentes de forma indolor e em preparar belas dentaduras.
Exatamente por causa da existência do dentista protético, como se dizia nos velhos tempos, Gracinha chegou à casa-grande do coronel Lucas, que lhe indagou sobre o motivo da visita. Ela explicou que Ozildo lhe arrancara um dente da parte frontal de sua boca, e por isso desejava colocar em seu lugar um dente de ouro. Não explicou a causa da agressão, e nada lhe foi perguntado a esse respeito, até porque Lucas era um amigo fraterno de seu marido. O serviço foi feito, tendo Gracinha exibido o seu melhor sorriso, em que se via o brilho dourado da prótese, feita com todo esmero e capricho.
O coronel Lucas mandou que seu motorista levasse em seu jeep a jovem mulher e um bilhete ao seu amigo Ozildo Bezerra das Areias, como era mais conhecido. O positivo deveria aguardar a resposta. O destinatário imediatamente leu a missiva, sem maiores dificuldades, posto que a letra era graúda, bonita e bem delineada. Nela estava dito: “Devolvo sua mulher mais bonita do que quando a recebi, uma vez que ela agora tem um dente de ouro. Peço que me mande o valor do serviço, que custou a importância de ...”
Prontamente, Ozildo entregou o valor solicitado ao mensageiro, dizendo:
– O Lucas não tem jeito mesmo; sempre fazendo as suas brincadeiras!
Em seguida, de mãos dadas, levou Gracinha para a alcova, para melhor apreciar o dente de ouro.