O conforto dos estranhos
Por Bráulio Tavares Em: 19/01/2010, às 17H09
Bráulio Tavares
“The Comfort of Strangers” é um romance de Ian McEwan, escritor inglês cujo livro mais conhecido aqui no Brasil parece ser “Desejo e Reparação” (Atonement), que não li. Acabei lendo este, que é de 1990, porque assisti algum tempo atrás o filme feito por Paul Schrader, ambientado em Veneza e impregnado daquilo que Macalé chamava de “morbeza romântica”, a mistura perigosa de morbidez com beleza. O livro de McEwan é um romance de crime, uma dessas histórias em que uma situação ominosa vai se desenhando aos poucos, com a implacabilidade de uma tragédia grega ou de dois petroleiros em rota de colisão.
Colin e Mary são um jovem casal inglês fazendo turismo numa cidade histórica europeia, que em momento algum é identificada (o autor não diz sequer em que país a história acontece). Vários detalhes (canais, barcos, uma praça principal) sugerem Veneza, e foi em Veneza que Paul Schrader ambientou o filme; mas um dos charmes do livro é o fato de que sua Veneza é implícita, sugerida nas entrelinhas. Em momento algum o autor fornece qualquer nome próprio (da cidade, dos pontos turísticos, das pessoas, das ruas); em nenhum momento ele diz que ali se fala italiano; mas mesmo quem não tenha visto o filme irá pressentindo a cada capítulo que tudo aquilo ocorre em Veneza.
Essa cidade onipresente, invisível, nunca nomeada mas inconfundível, é a imagem que melhor exprime o funcionamento desse romance em que “a coisa principal” nunca é dita às claras, embora seja desvelada o tempo todo. Porque Colin e Mary logo conhecem um casal mais velho, Robert e Caroline, e entre eles se estabelece uma relação mórbida de sedução e repulsa que resulta num final cruel, inexplicável e arrepiante. Sabemos, ao terminar a leitura, o que aconteceu, e temos uma idéia aproximada de como deve ter acontecido. Podemos até mesmo arriscar um “por quê”, uma explicação psiquiátrica para o que sucede. Depois de nove capítulos de preparação, o capítulo final não nos traz uma surpresa (é uma daquelas histórias que a gente lê pensando “isso não vai acabar bem”), mas um mistério.
“O Conforto dos Estranhos” pertence ao sub-gênero que chamo de “Pesadelo Turístico”: histórias de viajantes que vão para lugares distantes em busca e excitação e aventura, e encontram o horror. (Lembrei de “Song of Kali” de Dan Simmons, “Don’t Look Now” de Daphne du Maurier, “O Caminho do Poço Verde” de Rubem Figueiredo, o filme “Kalifornia” de Dominic Sena.) Mexe com profundidades inquietantes da mente humana, como certos livros de Ruth Rendell ou de Patricia Highsmith. Existe no casal mais velho a malignidade de quem vive em função de um vício torturantemente cultivado. E existe no casal mais jovem a atração pelo abismo, o “demônio da perversidade”. Julio Cortázar já observou que a Vitimologia é uma ciência tão legítima quanto a Criminologia, porque em muitos casos vê-se na relação entre criminoso e vítima uma “aura de fatalidade e consentimento”.